Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Maio 2013

MAIO 2013

É urgente atravessar a soleira da fé

 

No contexto do Ano da Fé multiplicam-se artigos, estudos e textos sobre este delicado e fundamental tema. Vamos  nos deter em alguns aspectos do assunto tendo em mãos reflexões de Frei José Rodriguez Carballo, ex-Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores, em sua Carta aos Frades, escrita por ocasião da Páscoa de 2013, como também meditações de nosso confrade francês Michel Hubaut, homem fecundo em estudos sobre  a espiritualidade franciscana.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

I. LEITURA ESPIRITUAL

E se falássemos mais um pouco da fé?

 

À guisa de introdução

 

Começou o reino da vida e foi dissolvido o império da morte. Apareceu um novo nascimento, uma vida nova, um novo modo de viver; a nossa própria natureza foi transformada. Que novo nascimento é este? É o daqueles que não nasceram do sangue nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo (Jo 1, 13).  Tu perguntas: como isto pode acontecer? Escuta-me, vou te explicar em poucas palavras. Este novo ser é concebido pela fé; é dado à luz pela  regeneração do batismo; tem por mãe a Igreja que o amamenta com sua doutrina e tradições. Seu alimento é o pão celeste, sua idade adulta é a santidade; seus filhos são a esperança; sua casa é o reino; sua herança e riqueza são as delícias  do paraíso; seu fim não é a morte, mas aquela vida feliz e eterna que está preparada para aqueles que são dignos dela” (Gregório de Nissa, Liturgia as Horas II, p. 743). Muitas vezes se diz que o problema das Igreja são os  “afastados”. Pessoalmente penso que não só eles são o problema, mas também os “de perto”  podem ser  um problema quando permanecem na soleira da “Porta da fé” sem nunca atravessá-la. (Frei José Rodriguez Carballo, OFM)

1. Nos albores de sua trajetória espiritual, Francisco de Assis descobre que a fé é uma chama muito frágil no meio da noite. Vai andar ao seu encalço como alguém que procura um poço no deserto ou tesouro escondido num campo. O Poverello, na perquirição da fé, sente que o velho homem vai morrendo, fazendo barulho estridente, desvencilhando-se de amarras e de falsos apoios. Os primeiros anos da conversão de Francisco foram marcados pela busca da fé. “O evangelho fazia-lhe sofrer tanto quanto o bisturi de um cirurgião. A pacífica homilia que mantinha adormecida a assembleia dominical se converteu para ele em um evangelho de fogo. O medo é precisamente o contrário da fé. Esta aponta para a coragem de tudo arriscar. Renunciar ao desejo de manejar a própria vida, seus talentos, seus bens e seguir cada um, solitariamente, seu caminho para se entregar à vontade de Deus,  para entrar em seu projeto amoroso para conosco: esse é todo o mistério da fé (…). Nada se pode compreender de sua vida se se esquece este fundamento inicial. A conversão de Francisco consistiu  no desejo do homem se abrir ao desejo de Deus” (El camino franciscano, Estella, p. 19). O carisma de Francisco não é a pobreza, mas a fé viva.

2. Esse trabalho de fé-conversão demanda tempo. Dídimo de Alexandria fala da ação do Espírito nesse desejo de Deus e no cultivo da fé: “Precisamos, pois, do Espírito Santo para nossa perfeição e renovação. Pois o fogo espiritual sabe também regar, e a água batismal é também capaz de queimar como o fogo” (L. Horas II, p. 795).

3. “Durante toda a sua vida, Francisco cultivará uma fé desperta e vigilante, aberta ao apelo de Deus e do Espírito do Senhor. Seu cuidado foi o de desobstruir as fontes interiores, escutar o Senhor, deixar-se amar e plasmar por Deus; deixar-se conduzir na noite pela esperança que ganhou um rosto em Jesus Cristo; despertar de um torpor espiritual. Este é o projeto de Francisco que se enraíza na fé. Fé de quem descobre Deus como um dinamismo de amor que não ameaça nossa liberdade, mas nos estrutura, nos constrói, nos realiza” (Hubaut, Chemins d’intériorité avec saint François, Paris, p.31).

4. Tomamos as reflexões de Frei Carballo: “Penso dizer a verdade  ao afirmar  que a crise da fé vivida dentro da Igreja, como muitas vezes denunciou o Papa, também é palpável  entre nós. Ao afirmar isso não penso tanto numa fé teórica e conceitual, mas naquela celebrada, vivida e confessada na vida cotidiana. Sem negar que a maior parte dos irmãos dão constantemente, sem holofotes, sem aplausos e sem grandes discursos, testemunho humilde de uma fé confessada, vivida e celebrada, permanecendo fiéis contra toda esperança e fazendo em sua vida experiência do mistério pascal, também é verdade que o secularismo, entendido como um conjunto de  atitudes hostis à fé e que afeta vastos setores da sociedade, pode ter penetrado em nossas fraternidades e em nossas vidas; e que o desaparecimento do horizonte da eternidade e a redução do real à única dimensão terrena tem sobre a fé o efeito da areia jogada sobre o fogo: sufoca-o e acaba por apagá-lo”.

5. O ex-Ministro Geral retoma ideias e questionamentos feitos pelo Papa Bento XVI em algumas de suas audiências. Eis algumas de  suas  interrogações:  Ter fé no Senhor não é um fato que interessa só à inteligência, mas leva a uma transformação que atinge toda a vida, a totalidade do ser humano: sentimento, coração, corporeidade, vontade, inteligência, relações humanas. O então Papa Bento XVI perguntava: “A fé é realmente uma força transformadora em nossa vida, em minha vida? Ou é só um dos elementos que fazem parte do pano de fundo de minha existência, sem ser  a determinante que a envolve totalmente?”

6. “A atestação da fé dos discípulos e a biografia dos santos não deixam dúvida: a fé cristã se dá sempre como conversão. O reconhecimento-acolhida de Jesus como verdade da vida acontece em termos de conversão. O contexto atual do desaparecimento de uma “sociedade  cristã” pede atenção especial no tocante à questão da fé. Não se nasce mais cristão, será preciso tornar-se cristão. Falamos, então, de  um itinerário espiritual de iniciação” (“Mario Antonelli,  La fede radice de la vita Cristiana, in Rivista de Clero Italiano 11/ 2012, p.757).

7. Converter-se e crer são verbos que são sempre associados. Isso já se dava no Antigo Testamento. “Converter-se é essencialmente e antes de tudo crer nesse acontecimento inaudito que mal podemos crer. Em todo o Antigo Testamento, a fé era um ato de confiança nas promessas do Deus da Aliança que revela progressivamente aos homens seu grandioso desígnio de amor. A fé era, já então, resposta do homem a esta iniciativa de Deus. Converter-se é sempre voltar para ele com confiança. Jesus pede a mesma confiança nele como a que era prestada ao Deus da Aliança. Pede que nele creiamos  porque ele é o Reino, a força do Amor de Deus que se aproximou de nós.

8. Converter-se é acolher na fé esta iniciativa gratuita, imprevisível de Deus que decidiu em Jesus nos visitar em pessoa para nos salvar, quer dizer, nos fazer ingressar numa felicidade sem fim. Converter-se é aceitar de ser salvo  gratuitamente  e fazer com que a vida seja colocada em sintonia com este acontecimento. Converter-se é mudar a direção da vida, é renunciar a viver como centro do mundo e como autossuficiente. É arriscar ou apostar nossa vida, nosso futuro, nossa busca de plenitude em Jesus que nos chama para seu seguimento. É caminhar com certeza que não são vistas.

9. A conversão não quer dizer, em primeiro lugar, passar do vício à virtude, mas viver uma mudança radical:  aceitar nunca mais querer fazer a vida sozinho, à força de teimosia, mas acolher em Jesus a iniciativa de Deus, a gratuidade de seu amor.  No começo de tudo, não há mais o eu, o homem, mas o Amor de Deus.

10. A fé é descentralização de si. É morte a si mesmo. Supõe o combate, como esse corpo-a-corpo de Jacó com Deus. Como aconteceu com São Paulo, mais dia menos dia, somos convidados a consentir que sejamos “desarrumados” por Alguém em nossos projetos, em nossas ideias feitas a respeito de Deus. É Deus que procura o Homem. “Adão, onde estás?”.

11. Em sua reflexão, Frei José Carballo faz alusão a uma palavra de São Boaventura. “São Boaventura, no Prólogo do Brevloquium, define a fé com três imagens que considero muito esclarecedoras em relação ao que estamos dizendo: “fundamentum stabiliens”, fundamento que dá estabilidade; “lucerna dirigens”, lâmpada que dirige;  “ianua introducens”, porta que introduz.  Enquanto fundamento, a fé é o que dá estabilidade à nossa vida; enquanto lâmpada, a fé é a luz que  permite ver e indica a direção correta;  enquanto porta, é a que permite ir mais além e que introduz à comunhão com o Santo dos santos”.  Belas imagens: fundamento, luz e porta.

12. “Tentando sintetizar ao máximo, penso que a resposta à pergunta, o que é a fé?, seja adesão. Adesão cordial a uma pessoa, à pessoa de Cristo, e adesão gozosa aos conteúdos, os que a Igreja nos propõe no Credo e através do Magistério. A adesão à pessoa de Jesus Cristo, essencial na vida da pessoa que crê, comporta um encontro pessoal com Jesus através de uma intensa vida de oração, de uma rica vida sacramental e da Leitura orante da Palavra. Temos que ser muito conscientes que no campo da fé jogamos tudo no encontro com a  pessoa de Jesus. Sem este encontro, nossa adesão será uma ideia ou uma ideologia, nunca a uma pessoa e a uma forma de vida” (Frei José R. Carballo).

13. “A adesão aos conteúdos da fé que nos apresenta a Igreja comporta o conhecimento de tais conteúdos e uma reflexão profunda sobre eles, assim como uma visão de fé sobre a própria Igreja. Não se trata de professar “a minha fé”, mas de fazer minha a fé da Igreja (…) faço meu o convite do último Sínodo para reanimar o nosso entusiasmo de pertencer à Igreja (cf. Inst. Laboris 87). Somente com este entusiasmo poderemos restaurá-la, como fez Francisco”.

14. Quase no final de sua Carta Apostólica Bento XVI escrevia: “Já no termo de sua vida, o Apóstolo Paulo pede ao discípulo Timóteo que “procure a fé” (cf. 2Tm 2,22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2Tm 3,15). Sintamos esse convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a se tornar sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo  tem hoje particular necessidade é o testemunho credível  de quantos iluminados na mente e no coração pela Palavra do Senhor são capazes de abrir o coração e a mente de muitos ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim” (. 15).

15. Retomamos a citação de Gregório de Nissa. O cristão, esse novo ser é concebido pela fé, vem à luz pelo batismo, ele tem por mãe a Igreja. Esta o alimenta com sua doutrina e suas tradições. O alimento dos renascidos é o pão celeste, sua idade adulta é a santidade, seu matrimônio é a familiaridade com a sabedoria; os filhos do que creem é a esperança, sua riqueza são as delícias do paraíso, seu fim não e a morte, mas a vida feliz e eterna. A beleza de nossa vida cristã é conviver com pessoas que caminhando entre nós têm os olhos fitos no Senhor. Somos peregrinos que juntos acreditamos.

II. JANELA ABERTA

O coração do Redentor

 

Poucos dias após a solenidade de Pentecostes, que encerra o tempo pascal, experimentamos particular alegria em celebrar o mistério da fenda aberta no lado de Jesus,  a solenidade do Coração do Redentor. Pela nossa rubrica “Janela aberta” desta Revista Eletrônica, contemplamos a beleza do Coração traspassado pela lança.

 

A. Bebida para a vida eterna

Considera, ó homem redimido, quem é aquele que por tua causa, está pregado na cruz, qual a sua dignidade e grandeza. A sua vida dá vida aos mortos; por sua morte choram o céu e a terra, e fendem-se até as pedras mais duras. Para que do lado de Cristo, morto na cruz, se formasse a Igreja e se cumprisse a Escritura que diz: Olharão para aquele que traspassaram (Jo 19,37), a divina Providência permitiu que um dos soldados lhe abrisse com a lança o sagrado lado, de onde jorraram sangue e água. Este é o preço de nossa salvação. Saído daquela fonte divina, isto é, do íntimo de seu Coração, iria dar aos sacramentos da Igreja o poder de conferir a vida da graça, tornando-se para os que já vivem no Cristo bebida da fonte  viva que jorra para a vida eterna.

Levanta-te, pois, tu que amas o Cristo, sê como um pomba que faz o seu ninho na borda do rochedo (Jr 48,28), e aí como o pássaro que encontrou sua morada (cf. Sl 83, 4) não cesses de estar vigilante: aí esconde como a andorinha os filhos nascidos do casto amor;  aí aproxima os teus lábios para beber a água da fonte do Salvador ( cf. Is 12,3). Pois esta é a fonte que brota no meio do paraíso e, dividida em quatro rios  (cf Gn 2,10), se derrama nos corações dos fiéis para irrigar e fecundar a terra inteira.

São Boaventura – Liturgia das Horas III, p. 571

B. Teu lado aberto

Teu lado foi rasgado,
para que nos fosse aberta a entrada.
Teu coração foi ferido,
para que pudéssemos
descansar sob aquela videira,
livres das agitações exteriores;
e foi também ferido,
para que pela chaga visível,
víssemos a chaga do amor.
Pois quem ama ardentemente,
está ferido de amor.
Como se poderia mostrar melhor
este incêndio,
senão deixando traspassar com a lança
não só o corpo, mas também o Coração?
Assim, a ferida do corpo
mostra  a ferida espiritual…
e, de ambas as feridas,
a esposa é a causadora;
por isso, o Esposo diz:
– “Feriste-me o Coração, minha irmã;
ó esposa, feriste-me o Coração”.
Peçamos ao Esposo
que acenda  o nosso coração,
ainda duro e impenitente, e o amarre
com  os suaves laços de seu amor,
e digne-se feri-lo com as suas  flechas. Amém.

São Boaventura – Videira Mística cap. III, 5-6

C. No alto da colina

Foi no alto de uma colina que o Amor se entregou.
Foi no alto da cruz que Jesus terminou sua trajetória.
Passara ele no meio dos homens fazendo o bem,
caminhara pelos vales e planícies.
Encontrara muitos à beira da estrada:  mãos estendidas, corpos doentes, vidas pela metade, destroços humanos.
Aos poucos foi se dando conta que não podia escapar.
Apertava-se o cerco.
Fora traído com um beijo falso de um amigo.
Colocam-lhe a cruz sobre os ombros.
Extenuado sobe a colina.
No meio do dia é pregado e suspenso entre o céu e a terra.
Como ele já havia dito: haveria então de atrair o olhar de todos.
Elevado da terra,
na colina do amor,
com os cabelos ao vento,
com aperto no fundo do coração,
ele se sente só.

Quando tudo está consumado,
a cabeça pende,
a mãe ao pé da cruz sofre
e ele entrega o espírito.

O soldado toca-lhe o peito
o Coração se abre e mostra
os infinitos tesouros de sabedoria e bondade.
Jesus é bom até o fim, no alto da colina,
com Coração dilacerado.

III. FAMÍLIA

Espiritualidade familiar

 

Os casais e as famílias precisam alimentar ou reencontrar um modo de se vincularem a Deus. Na Igreja doméstica se reza, se ouve a Palavra, se fala do Evangelho, se vive até o fim o sinal da presença do Senhor no sacramento do matrimônio e nas reuniões da Igreja doméstica. Mas, sobretudo, se vive sob o olhar de Deus no tecido do cotidiano. Inspiramo-nos no texto: “A Liturgia Doméstica, in Casamento, sacramento do dia a dia”, Maria do Carmo e José Maria Whitaker Neto, publicação interna das ENS.

 

1. Henri Caffarel, sacerdote francês, fundador das Equipes de Nossa Senhora, assim fala da liturgia na Igreja doméstica: “Vocês que estão casados dispõem de pouco tempo para estudar, para aprofundar  a fé. Alguns sofrem com isso, enquanto outros se conformam com facilidade, felizes por contar com um pretexto que os dispensa de uma laboriosa busca. Esquecem que não apenas os livros  falam de Deus e que, em sua casa, têm à sua disposição uma “bíblia doméstica”, se é que assim posso me exprimir. Não deixem de consultá-la. Refiro-me a todas essas realidades familiares que vocês possuem: o amor conjugal, a paternidade, a maternidade, a infância, a casa… É o que de mais explícito Deus encontrou para se dar a conhecer. Algo capaz de fazer sentir inveja aos que não se casam”.

2. Liturgia doméstica, culto a Deus prestado ao Senhor em casa, oferenda religiosa da vida conjugal, iluminação dos caminhos da vida do casal e dos filhos. De maneira muito simples, mas cheia de verdade, lemos: “O casal tem também sua liturgia. É no seu viver cotidiano que se desenvolve a sua espiritualidade conjugal, seu modo peculiar de se relacionar com Deus. É no dia a dia que o casal se aprofunda no seu amor e no amor de Deus, e procura pôr em prática o plano de amor que Deus lhe confiou.  As ações corriqueiras de cada dia são manifestações da liturgia do casal, não apenas para aqueles momentos em que o casal se une para rezar. Proporcionar  ao cônjuge  as coisas pequenas e simples que o façam feliz: um agrado, um sorriso, uma palavras de ânimo, dedicar-lhe mais tempo quando está cansado ou aborrecido, surpreendê-lo com algo inesperado (uma flor, um bilhete), incentivar  a luta para vencer a indolência, o orgulho, o egoísmo, desinstalar-se para prestar pequenos serviços (atender ao telefone, apanhar um copo de água, apagar uma luz), nunca deixar o cônjuge mal perante outras pessoas… Todas essas ações fazem parte da liturgia do casal e são verdadeiros ritos que expressam  amor, que é o  sinal sensível do sacramento da sua união”

3. Há  a liturgia familiar. “No meio das realidades terrenas e temporais, os cônjuges e os filhos marcam o ritmo da vida doméstica, pelos seus ritos diários. Os costumes de cada família, o bom dia que se desejam os cônjuges, o simples fato de os pais acordarem os filhos abrindo as janelas para que recebam a luz do sol, a refeição que tomam juntos, a despedida quando saem para a escola e para o trabalho, o retorno à casa ao final do dia, os telefonemas que fazem para se fazerem presentes na vida deles, são pequenos ritos que os unem a Deus e os santificam”.

4. “A família é o resultado da relação que se estabelece entre pais, filhos e netos, e do vínculo de união e de afeto que os coloca todos, pela convivência, na busca da realização pessoal e da felicidade. Aniversários e festas de família, casamentos, batizados, comemorações dos êxitos e das conquistas dos membros da família, refeições em comum, viagens passeios e ocasiões de lazer, a execução de tarefas domésticas e a participação em atividades sociais, as memórias e lembranças que dão conteúdo à história da família são momentos  marcantes da vida familiar. Tornam-se costumes, transformam-se em verdadeiros ritos que possibilitam a vivência do amor e da caridade. Daí a sacralidade da família”.

5. O Corão afirma: “Quem se casa realiza a metade da religião”. O sacramento do matrimônio não pode ser apenas  tido como  um evento fugidio perdido num passado longínquo. O próprio corpo participa do sacramento. Agora quem nos fala desse assunto é  Xavier Lacroix, teólogo leigo francês: “A ideia de sacramento não é tão abstrata quanto possa parecer. Ela está ligada à existência corporal. Numerosos são, na existência, gestos que realizam o que significam. As mais das vezes são os gestos mais carregados de valor e de sentido, os mais concretos, os mais encarnados: gestos de amizade ou de ternura, da mão sobre o ombro à carícia,  união carnal também, mas também presentes, refeições compartilhadas etc.  São atos simbólicos, mas reais. Através deles se realiza alguma coisa: o encontro, a renovação da ternura, a construção da relação. Nesse sentido, todo o corpo é sacramento, todo ele é significativo e realiza a presença da pessoa e mesmo a de Deus” (Le Mariage… tout simplement,  Ed. de l’Atelier, p. 75).

6. Mais ainda: “Muitas vezes se entende a palavra “sacramento” num sentido limitado no tempo, ao momento da cerimônia. Ora, a própria palavra sacramento designa não somente a inauguração desse estado de vida, mas este estado de vida em toda a sua duração, da mesma forma sacramento se estende por todo o tempo da duração de um casamento.  É todo o casamento que é sacramento. Entra-se progressivamente no sacramento. Sacramentais são os atos que o constituem: as refeições tomadas em comum, o envolvimento dos corpos, a acolhida  dos hóspedes, a educação dos filhos, as atenções mútuas e  mesmo as crises e as reconciliações. O lugar do sacramento  não é somente o altar da igreja mas a cama, a mesa, a casa” (p.89).

IV. PASTORAL

Cuidado da Igreja pelos enfermos

 

Pequenas notas a respeito da Unção dos Enfermos  e atenção para com os doentes

 

Bem-aventurados aqueles que suportarem enfermidades e tribulação em paz, porque por ti, Altíssimo serão coroados. (Francisco de Assis. Cântico das Criaturas)

 

● A vida não nos poupa de momentos de sofrimento, insegurança e ansiedade. Tudo é conquista e, cada passo dado,  demanda esforço e  exigente empenho. Também a doença que a todos atinge, mais cedo ou mais tarde, é momento de provação, por vezes dramático, uma dilaceração que tem como consequência o afastamento de nossas atividades e  distanciamento das pessoas. Parece que palavras e gestos de alívio humano não significam quase nada perante a gravidade de determinadas  tribulações físicas e sofrimentos espirituais, de modo particular, diante da iminência da morte. Os que vivem uma doença grave fazem a experiência de impotência e de fragilidade, renunciam à sua autonomia. Vivem inativos. Não podem fazer projetos. Pensam quase só em seu estado de debilitação. É sobretudo nesses momentos que os cristãos devem se tornar mais solidários uns com os outros exprimindo com verdadeiros gestos de amor a misericórdia de Cristo e a sua proximidade ao doente. Cristo se aproxima hoje dos enfermos através de nós, seus discípulos.

● As curas de doentes operadas por Jesus são sinais claros do Reino que vem. Cotidianamente, a Igreja manifesta esta sua fé no Reino através da assistência aos doentes. “Como Cristo percorria todas as  cidades e aldeias, curando todas as doenças e enfermidades para mostrar a vinda do Reino de Deus, assim também a Igreja, através de seus filhos, se une aos homens de qualquer condição, mas sobretudo aos pobres e aos que sofrem, e cuida deles de boa vontade” (Ad Gentes12).

● A assistência aos doentes é para a Igreja momento privilegiado de evangelização. À luz da paixão e morte de Cristo, ela anuncia o significado e o valor autêntico do sofrimento humano, assumido como instrumento eficaz de salvação para o doente e para todos os homens. O empenho de solidariedade da Igreja manifesta-se também quando ela apoia esforços e pesquisas da ciência na luta contra o mal em beneficio dos doentes. Isto faz parte de sua missão de caridade exercida também por Ordens Religiosas e Institutos de Assistência e de Saúde  fundados precisamente para o cuidado dos doentes.

● Sua caridade, no entanto, não acaba aqui. A Igreja ajuda e conforta os doentes com um sinal particular do amor misericordioso de Deus, um dom especial da graça, o sacramento da Unção dos Enfermos. Instituído por Jesus Cristo foi anunciado por São Tiago  com estas palavras: “Quem está doente, chame os presbíteros da Igreja e que estes orem sobre ele, ungindo-o com o óleo no nome do Senhor. A oração da fé salvará o doente e o Senhor restabelecê-lo-á. Se cometeu pecados ser-lhes-ão perdoados” (Tg 5, 14-15). Desde os tempos antigos, quer o Oriente quer o Ocidente, atestam a presença deste sacramento na Tradição da Igreja, especialmente na Liturgia. Na Igreja de rito latino, o sacramento administra-se ungindo o doente sobre a fronte e a as mãos com azeite, ou óleo de outras plantas, para esse fim abençoado.  A unção é acompanhada  pela fórmula:

Por esta santa unção e pela sua infinita misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio  com a graça do Espírito Santo, para que, liberto de teus pecados, ele te salve e , na sua bondade, alivie os teus sofrimentos. Amém.

● Normalmente falando, a comunidade cristã deveria participar da cerimônia da Unção dos Enfermos. Seria um modo para que demonstrasse publicamente  sua fé na força vitoriosa de Cristo sobre o mal e a morte. Necessário se faz salientar a dimensão comunitária deste  sacramento. O costume das famílias de chamarem o sacerdote somente nos  últimos momentos de vida do doente foi tirando todo caráter comunitário de tal sacramento. Assim foi sendo favorecida uma ideia privatista.

● Junto ao doente, a presença solidária da Igreja manifesta-se através do sacerdote ministro do sacramento e dos fiéis cristãos que cercam o enfermo.

● Um sinal particularmente expressivo da participação da Igreja  é manifestado pelas celebrações comunitárias do sacramento da Unção. Enquanto sublinham  a natureza eclesial deste sacramento, oferecem ao povo cristão  a ocasião de um crescimento na compreensão de sua eficácia e da riqueza da graça que ele derrama sobre toda a  Igreja. Tais celebrações comunitárias põem em realce o carisma específico dos doentes na comunidade. Eles se associam ao Cristo em vista do bem do Corpo da Igreja. O testemunho de sua fé e a oferenda de si no sacrifício é um convite a não absolutizar nada do que é  humano e a procurar em primeiro lugar  os bens essenciais e duradouros.

● Da mesma forma como para os batizados, os crismados, os esposos, os ordenados e os penitentes, assim ainda para os doentes, os cristãos devem tornar-se comunidade de oração não só durante a doença mais especialmente durante a agonia – que é como diz a própria palavra – “hora de luta”. A Igreja, sacramento universal da salvação, sabe que pode colher  no mistério da morte e da ressurreição de Cristo e oferecer ao seu filho que sofre, a graça de lutar contra o mal que o atormenta.  É a graça do sacramento da Unção que continua e aperfeiçoa a obra de outro sacramento, o da Reconciliação.  Com este último é oferecida ao crente a possibilidade de vencer as resistências do pecado e de voltar a Deus  na plenitude de uma comunhão renovada e refeita: com a Unção são oferecidas a libertação do pecado, o alívio na doença ou na velhice que já enfraqueceu as forças e a disponibilidade na aceitação cristã da morte.

● Devido à profunda união existente entre corpo e espírito,  deve-se dizer que a doença  aumenta a fragilidade espiritual, própria de cada cristão e poderia  levá-lo, sem uma graça especial,  a fechar-se egoisticamente  em si mesmo e até  mesmo a revoltar-se contra o  Senhor e a desesperar. O sacramento, na força do Cristo ressuscitado, quer ser remédio para o corpo e para o espírito do cristão doente. Quer curá-lo e dar-lhe coragem para o dom de  si aos irmãos. Por isso, a Unção tem quer celebrada num clima de  confiante esperança. Temos que vencer a mentalidade tão difundida de se recorrer ao sacramento quando o doente está inconsciente, celebrá-lo depressa, quase que  às escondidas.

● Num caso de doença grave não se pode deixar de administrar este sacramento. Será sempre público testemunho de fé na vitória  sobre a morte. O Sacramento da Unção destina-se a todos cujo estado de saúde encontra-se seriamente comprometido. O Concilio considera “tempo oportuno” o momento em que o fiel, por doença ou velhice, começa estar em perigo de morte (Sacrossanctum Concilium 73). Uma doença declarada sem cura pode ser considerada “tempo oportuno”.

● O que pede a Igreja para o doente com a administração do sacramento da unção dos enfermos? A Igreja suplica a Deus que a pessoa do doente, associada ao sofrimento redentor de Jesus, encontre novo vigor  nas suas energias físicas, aprofunde o significado da dor, recupere a força para suportá-la em união com Cristo e possa vencer toda sorte de tentação e o temor da morte.  Quando o doente supera o perigo e recupera a saúde, a graça do sacramento ajuda-o redescobrir a vida como um dom de um segundo nascimento e a receber o apelo para um renovado empenho de amor e dedicação aos irmãos. Cura para si e para os outros. Em todo caso, a Unção fará crescer no doente a fé e a esperança e lhe dará a força necessária para enfrentar a última prova.

● Pela presença dinâmica do Senhor ressuscitado e de seu Espírito vivificador, a Unção será o sinal operativo da última e definitiva inserção  na Páscoa do Senhor. O doente poderá então sentir-se preparado  para habitar junto do Senhor  na espera da  ressurreição final e da salvação última.

● Desde muitos tempos, a Igreja teve o costume de  ministrar a Eucaristia como viático aos cristãos que estavam para sofrer o martírio ou os que se encontravam prestes a morrer. Alimento para a viagem, o Pão Eucarístico ampara o doente em sua passagem desta vida para o Pai e garante-lhe a ressurreição, conforme as palavras do Senhor:  “Quem come a  minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu ressuscitá-lo-ei no último dia. Receber o viático é testemunhar de forma significativa aquela fé  na vida eterna de que o cristão é herdeiro desde o seu batismo. Trata-se de um ato de verdadeiro amor confortar os próprios amigos com este sacramento, o último antes que eles vejam a Deus face a face, já sem necessidade dos sinais sacramentais e participem  alegres do banquete do Reino.

● A Eucaristia celebrada com o doente antes de sua partida revela-se, de maneira mais autêntica e eficaz, germe e antecipação da ressurreição. Então, a verdadeira dimensão da vida, fora do espaço e do tempo, manifestar-se-á em toda a sua plenitude. Não haverá mais sinais, mas a imortal e feliz comunhão com Cristo e com os irmãos.

V. NOSSO GÊNERO DE VIDA

Castidade (II)

 

Art. 9 § 2 -Todos os irmãos considerem a castidade um dom de Deus, sinal do mundo  futuro e fonte da mais abundante fecundidade;  para conservar este dom, usem de todos os meios, naturais e sobrenaturais, recomendados pela Igreja e pela Ordem.

Art. 9 § 3 – Os ministros, os guardiães e todos os irmãos lembrem-se que a castidade é mais seguramente guardada se, na vida comunitária, florescer a caridade;  por isso, cuidem que na Fraternidade se fomente o amor fraterno.

Art. 9§ 4 – Para viver o voto de castidade, os irmãos guardem a pureza de coração e procurem olhar para  todas as criaturas com humildade e devoção, conscientes de que elas foram criadas para a glória de Deus.

 

● A leitura que estamos fazendo de nossas Constituições Gerais continuam  apresentando orientações  preciosas para a vivência do voto de castidade consagrada que fizemos no albor de nossas vidas e que continua a marcar nosso gênero de vida. Lembramos, mais uma vez, que a castidade está vinculada à pureza e transparência de coração segundo as palavras de Francisco em sua Admoestação XVI. A pureza de coração que deve levar à castidade consagrada começa quando o coração tem harmonia e busca sinceramente a Deus, quando não é partido. Ser puro de coração é ser um buscador constante de Deus, simples, sem dobras. Frei Caetano Esser, no seu comentário a respeito da Admoestação em questão, escreve: “… o homem puro deve estar intimamente despojado. Nesse caso, não pode haver nele nada que não diga respeito a Deus, que não se dirija a Deus. Aquele que quer ser limpo de coração deve varrer tudo: todo apego ao seu eu, toda afeição às coisas, aos homens e a si mesmo toda dependência da avaliação e da estima  dos homens. Vemos como o homem deve ter o seu íntimo verdadeiramente varrido de tudo aquilo que possa aproveitar ao seu eu. Terá de dizer sem cessar “não” a si mesmo. Poderemos, então, entender a pureza no sentido de São Francisco  como limpidez, clareza, ou também como estar desimpedido, lavado de todas as coisas terrestres, como vitória completa sobre nós mesmos, homem com liberdade interior, sem obstáculos, totalmente disponível para Deus”.

● Um jovem, na plenitude de suas forças, promete castidade como voto, consagra-se.  Sua vida de todos os dias, seus trabalhos e tarefas, o conjunto de meios busca de santidade, tudo é perpassado por esta convicção de um amor irrestrito orientado para o Senhor com Esposo e amor límpido, generoso e criativo para com os  irmãos. Um coração sem divisão, um ser desapropriado que vive na mente e na carne a virgindade consagrada como núpcias de sua vida.

● A castidade consagrada é um dom. Os que fazem o voto são pessoas sempre agradecidas, porque agraciadas. A decisão pela vida de consagração virginal se faz a partir de um generoso olhar do Senhor. Quem puder compreender, que compreenda. Em sua carne e em seu coração os que fazem o voto apontam para esse mundo futuro onde não haverá mais homem, nem mulher, nem solteiro ou casado, mas todos serão tudo em Deus. Antecipam o mundo que está para vir em sua trajetória existencial.

● São pessoas fecundas. Há os religiosos que permanecem em suas casas,  realizando tarefas de todos  os dias. Fazem-no em união estreita com o Senhor, esta união esponsal que colore suas ações a partir da escolha que fizeram. Ajudam o Corpo de Cristo, que é a Igreja, a ser mais límpido e transparente. São fecundas na medida em que, pastoral ou fraternamente, orientam vidas,  trabalham na catequese, dedicam-se à prática da caridade, que tem sua fonte nessa intimidade pura e transparente. No aparente  “vazio”  da castidade há uma plenitude de Deus. Quem puder compreender que compreenda. A castidade consagrada é profundamente fecunda.

● Os meios para alimentar e vivificar a vida de castidade consagrada: trabalhar o amadurecimento pessoal, alimentar uma profunda  amizade com o Ressuscitado, ter uma vida de oração bem ritmada, viver em profunda união com Cristo na celebração cotidiana da Eucaristia, não permitir que a ociosidade tome conta da vida, sempre cuidar da guarda dos sentidos, fazer constantemente exame de consciência para não perder a delicadeza de consciência , dedicação total a causas gratuitas onde se  pode viver um amor gratuito.

● As CCGG pedem a ministros e guardiães que fomentem a vida fraterna em nossas casas. O interesse sincero e simples de uns pelos ouros, o amor mútuo manifestado nos momentos de alegria e de preocupação, a oração de uns pelos outros: uma oração verdadeiramente comum, o ir pelo mundo uns com os outros, a presença de coração na vida uns dos outros.

● Um olhar purificado de toda sorte de cobiça será garantia de vivência límpida da castidade. Os pobres de nada se apropriam. Querem ser livres para tudo restituir ao Senhor.