Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Junho 2020

Quem não vive para servir...

…  não serve  para viver.  Este é um ditado ou um provérbio que se repete a toda hora. Ele nos remete para a cena sempre atual do lava-pés do evangelho de João. O Senhor, aquele que vive na Trindade, aquele se reveste do ser homem, diz nos ter dado exemplo:  “Dei-vos o exemplo, para que como eu vos fiz, também vós o façais”  (Jo 13, 15).

Fomos todos lançados na aventura de viver. Num determinado  momento de nossa existência, quem sabe em torno dos 16-20 anos,  fomos  compreendendo que a vida nos estava sendo dada, de graça, um presente. Cabe a cada um encontrar seu caminho. Nossos pais, tomando-nos pela mão, foram nos levando para descobrir tudo: a vida, o bem, o mal, tudo.  Primeiro não tínhamos consciência de nada: quebrávamos as coisas, abríamos a barriga da boneca, jogávamos por terra os bibelôs da mesinha da sala. Depois com a cara mais inocente do mundo, dizíamos: “Ihhhh …quebô!!!” Fomos travando conhecimentos e vivendo experiências: o  balanço no quintal,  as jabuticabeiras, os primos, as  festas de aniversário, primeira comunhão, missa de domingo,  sepultamento da tia avó, a escola primária, ginásio, cientifico,  curso de mecânica no  Senai.

Para que viver? Talvez esta pergunta tenha surgido nas aulas de história, de literatura e mesmo durante homilias ou encontro de  catequese.  Adolescentes e jovens. Sacramentos bem ou mal recebidos.  Jeitinho de moça, moça feita. Barbicha rala ou cerrada no rapazinho que andava meio desengonçado.  Explosão da sexualidade.  Homem e mulher, pequenas aventuras, exames, estudos, trabalhos, acertos e desacertos. Casar, ter filhos, se aposentar, ter netos e bisnetos.  Sei  lá…  Aqui ou ali aparece a questão:  Para que viver? No meu catecismo estava escrito: “Vivemos na terra para salvar a nossa alma”. Errado? Não.  Mas dá para entender?  Deviam nos ter explicado melhor.

Acontece, por  vezes,  que  Jesus vivo e ressuscitado  irrompa numa existência como apelo, força, caminho, rumo, estrada a percorrer. As pessoas se dão conta que até um tempo  viveram um relacionamento frio, engessado, estéril  com  Jesus.  Uma religião herdada,  uma camisa apertada demais. Jesus seria como uma lição terminada, feita, engessada.  Patrimônio  familiar, sem mais.   Mas ele pode e costuma nos esperar  numa das viradas da caminhada.

Fomos “inventados” para viver em plenitude.  Viver o ser mulher,  o ser homem com todas as conotações.  Viver extasiados diante da criança que  nasce,   cresce que começa a falar e nos criva de seus  “porquês”.  Ficar profundamente marcado pela certeza  do Amor que se torna  presépio, cruz e sol na manhã da ressurreição. Deixar-se enamorar por Cristo e compreender a  que a  vida é dom.  Seu sentido é o serviço.  Servir é ser com o outro e ser para o outro.

Fazer da vida um alegre e contínuo  serviço,  um êxodo constante de nosso pequeno mundo.  Servir nas coisas cotidianas.  Servir ao  cônjuge.  Filhos servindo aos pais.

Ter  consciência de que vivemos porque muitos nos serviram não remunerados ou  remunerados:  professores, motoristas de ônibus, faxineiras e garis, dentistas e médicos,  enfermeiros e  funcionários  dos hospitais   nesses tempos  sombrios de pandemia.  Os cristãos servem os  mais abandonados  porque ali surpreendem o seu  Senhor.

Jesus não veio para ser  servido, mas para servir.

“Dei-vos o exemplo para como eu fiz, vós também façais”

Quem não vive para servir, não serve para  viver.

O arrependimento do publicano

 Neste mês de junho  ocorre  a festa de um  santo frade menor muito  querido:  Santo Antônio de  Lisboa e de Pádua.  Transcrevemos  agora umas poucas linhas do  sermão  do santo  sobre o arrependimento do  publicano.

O publicano conservando-se a distância, não  ousava nem levantar  os olhos ao céu,  antes batia no peito, dizendo:  Meu  Deus,  tem piedade de mim, pecador.  Em verdade  eu vos  digo que este voltou  justificado  para sua casa e não o outro, porque quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado (Lc 18, 13-14).

Neste cláusula,  notam-se seis coisas, a saber:  a recordação da própria iniquidade, a humilhação do espírito e do coração,  a contrição, a confissão, a satisfação e a justificação do próprio publicano.

A recordação da iniquidade,  ao começar.    O publicano conservando-se à distância.    Cônscio da própria iniquidade, conservou-se à distância, reputou-se indigno de entrar no templo.  O fariseu  julgava-se  próximo, mas esteve longe.  O publicano  julgava estar longe,  e estava próximo.  O ramo quebrou e foi enxertado o zambujeiro.  Israel  não  conseguiu o que procurava.  Mas a eleição foi conseguida.  Conserva-te, ó pecador à  distância,  considera-te indigno, dizendo com Abraão:   Falarei ao meu Senhor, ainda que eu seja pó e cinza.

A humildade do espírito e do coração:  Não ousava  nem ainda levantar os olhos ao céu.   O sinal da  humildade começa a aparecer nos olhos. O olho impudico,  escreve,  Santo Agostinho, é o mensageiro do coração impudico.

No bater no peito  observam-se três coisas:  no percutir, a contrição; no som,  a confissão; na mão, a satisfação de obra.  Meu Deus, diz o publicano,  tem piedade de mim, sê benévolo para comigo,  que sou pecador. O publicano, humilde  como  é,   não ousa aproximar-se, para que  Deus se aproxime dele, para que seja olhado; bate no peito, exige de si o arrependimento, para que Deus perdoe.  Atende e considera diligentemente  quanta concórdia   havia nesse penitente! Brilhava em seu espírito a humildade, refletida na humildade do olhar:  o coração doía-se das ações cometidas,  a mão batia  e  a língua proclamava:   Meu  Deus, tem piedade de mim,  pecador.


Santo  Antônio  Legendas e Sermões
Ed.  Franciscana,  Portugal,  p. 1150-1151

Fazendo algo de bom

Um homem mau ao morrer, encontra um anjo na porta do inferno, que lhe diz:

– Basta você ter feito alguma coisa boa na vida e esta coisa boa o ajudará.

O homem responde:  “Nunca fiz nada de bom na vida”.

–  Pense bem, disse o anjo.

O homem então se lembra de que certa vez, enquanto andava por uma floresta, viu uma aranha em seu caminho e deu a volta evitando pisa-la.  O anjo sorri e um fio de aranha desce dos céus, permitindo que o homem  suba até o paraíso.  Outros  condenados aproveitam para subir  também, mas o homem se vira e começa a empurra-los, pois tem medo que o  fio se rompa.  Nesse momento o fio arrebenta, e o homem é novamente projetado no inferno.

– Que pena –  o homem escuta o anjo dizer.  –   Seu egoísmo  transformou em mal a única coisa boa que você fez.

 Alexandre Rangel

As mais belas parábolas de todos os tempos,  I, p. 112

O memorial eucarístico

LEMBRAR-SE  (1)

 Joseph  Moingt é  um teólogo jesuíta  francês bastante conhecido.  Na revista  Christus  (n. 219 –  julho 2008, p. 293ss) publicou  um artigo  rico e profundo sobre a Eucaristia. Ao longo de  algumas edições do  Tirando  do Baú,  queremos refletir sobre  pontos de reflexão  expostos  por   Moingt. Começamos com o “lembrar-se”  ou  “rememorar-se”.

 Introdução

             O cristianismo se funda  num “dever de lembrança”:  “Fazei isto em minha memória”.  Foram as últimas palavras pronunciadas  por Jesus aos seus discípulos em torno da mesa  antes que ele fosse  “entregue”,  palavras de despedida, última mensagem, seu testamento.  A singularidade do cristianismo se deve fundamentalmente ao modo de  cumprir esse dever.

Nos relatos da Ceia transmitidos por Mateus, Marcos e Lucas, o ato de memória  consiste  num duplo  fazer:  fazer a memória de Jesus refazendo o que pediu que fosse feito.  Trata-se antes de mais  nada da lembrança de sua pessoa, sobretudo do que ia lhe acontecer e que evocado pelas palavras que ele pronuncia,   naquele momento, sobre o pão e o vinho: “Meu corpo dado por vos, meu sangue derramado por vós”.  Trata-se de repetir o que ele realizou junto daquela mesa, de realizar  o  que ele  prescreveu, ou seja,  o ato de partilhar  uma refeição:  “Tomai e comei,  tomai e bebei”.  O primeiro  fazer   dá sentido ao segundo,  este último confere efetividade ao primeiro.  São inseparáveis um do outro.

O apóstolo  Paulo  onde encontramos o primeiro relato  da Ceia  do  Senhor especifica o significado  que ela tomava nas celebrações dos tempos apostólicos, o que tem  valor fundamental para  nós, concluindo assim seu  regis  olttro:  “Cada vez que comeis deste pão e bebeis deste vinho,  anunciais a morte do  Senhor até que ele venha”.  A  lembrança,  a memória  deverá   se transformar em anúncio e espera,  ou seja,  voltar do de dentro para o de fora  e do passado para o futuro.  O anúncio se dirige aos que ainda não sabem, que  não se encontram à mesa. Tal  anúncio  informa e  convida.  A espera coloca os convidados em estado de vigilância e os aciona rumo àquele que vem. O anúncio projeta no  futuro  o sentido do que se passou e a espera torna o presente aquilo que deve ser.

Lembrar-se,  partilhar,  anunciar e antecipar:  são marcas, quatro momentos do memorial  eucarístico.  Vejamos, em seguida,  o “lembrar-se”.

            Mais do que um lembrança que poderia ser  devaneio ou  recordação lancinante  de um passado doloroso,  o memorial eucarístico,  enquanto recordação,  é um trabalho de reminiscência,  ato de trazer novamente o que se poderia ou se quereria esquecer, de “remexer” na memória para extrair seu significado.

“Fazei isto, em memória de mim”:    de minha pessoa, de minha missão,  um esforço para compreender  quem eu sou,  porque vim da parte do  Pai.    Só  se faz memória, de um ausente, de um morto.  O pensamento de  Jesus na última ceia   é  um  borbulhar dos acontecimentos que vão se dar.  Ele tem a percepção de estar  preso, traído,  abandonado pelos seus,  fala como se não estivesse mais ali.  Convida os seus discípulos a buscar a razão, o sentido de sua morte e orienta sua reflexão por meio do simbolismo  do  pão partido e do  vinho versado.  Não esquecer  os gestos de antanho, mas antes de tudo  aprender a conhece-los de verdade.

Enganar-nos-íamos  em pensar que  Jesus  queria imediatamente fixar a atenção dos apóstolos na transformação do pão e do vinho  em seu corpo e seu sangue.   O ato de memória que ele lhes pede é mais amplo e remonta bem longe no passado.  Vemo-lo,  após a  Ressurreição,  lembrar a seus discípulos  que lhes tinha anunciado o que haveria de acontecer,  repreende-os  de faltar com inteligência das  Escrituras.   Coloca-se, então, a explicar-lhes  o  que essas Escrituras  diziam ao seu respeito “começando por Moisés”.  Não foi partindo de Moisés,  do maná  caído do céu  a seu pedido desse  que Jesus havia ensinado aos apóstolos que ele era o verdadeiro pão de vida  dado por  Deus aos homens  para que recebessem como  uma semente de eternidade? Ele  os nutre com este pão  vivificante  por sua palavra cheia  de verdade que contempla de junto do Pai. Ele os alimentará e saciará sua sede,  quando de seu corpo  entregue  à morte, jorrar um Rio de água viva,  o  Espirito da imortalidade que nele habita.  Os discípulos  não haviam  compreendido  o que ele estava a lhes   dizer, melhor  que os judeus;   muitos  dentre eles resmungavam e o abandonaram, o que haveria de se repetir ao longo da história.  Por isso Jesus na Ceia envia a eles e a nós à paciência do trabalho da memória.

Trata-se,  e haverá de se tratar até o fim dos séculos, de “exorcizar” o escândalo da cruz:  a salvação do mundo  pode  sair de um corpo crucificado e jogado numa vala?  Necessário se faz  deixar instruir-se  pela parábola do grão que cai e apodrece na terra,  a lenta  germinação sempre recomeçada da  vida que vem da morte.  Somente o  Espírito  pode esclarecer verdades tão simples:  “É o Espírito que vivifica. De nada serve  a carne”, senão  que com sua morte  liberta o Espírito de que é portadora.  Quando se medita longamente,  à luz das Escrituras vindas do longínquo da história,  a última parábola que  Jesus  nos deu para decifrar  pelo  gesto de romper o pão e de derramar o vinho, então o  Espírito   testemunha  dentro de nós,   pela iluminação da fé,  que  Jesus veio de Deus não somente com a água, mas  também com o sangue.  Não somente pela água de seu batismo,  quando o  Espírito desceu do Pai sobre ele, mas igualmente pelo  sangue que recebeu de sua  Mãe  que derramou na  cruz, em total solidariedade  com a condição  humana.  O fiel que toma o pão e o vinho  é alimentado e abeberado   do Espírito  Santo  que o une ao  corpo  ressuscitado de Jesus  num só corpo.    Mas a parábola não revela  seu conteúdo,  que é  “espírito e vida” a não ser aos que a reproduzem  efetivamente pela partilha do pão e do vinho.

(continua  em julho)

A verdadeira paz

Dá-nos,  Senhor, a verdadeira paz

que é dom de Deus;

livra-nos da falsa paz,

que é produto do  nosso egoísmo.

Dá-nos a paz que une na amizade;

livra-nos da paz do isolamento

e da recusa dos outros.

Dá-nos a paz que se aprofunda no sofrimento;

livra-nos da paz que se esvai   na provação.

Dá-nos a paz que suporta o fracasso;

livra-nos da paz que nos incha com o sucesso.

Dá-nos a paz que dilata a esperança;

livra-nos da paz que se veste de desprezo.

Dá-nos  a paz dos humildes;

livra-nos da paz  dos vencedores  Amém

Aubert  Collard

 

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TIRANDO DO BAÚ COISAS NOVAS E VELHAS

Reinventando a vida a cada dia

Edição de junho de 2020

Frei Almir Guimarães

freialmir@gmail.com