Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Junho 2012

JUNHO 2012

Eis mais uma página de leitura espiritual deste nossa revista eletrônica

 

Ao longo dos números de 2012  estamos tentando refletir sobre as fontes da vida espiritual. No número precedente fizemos uma longa reflexão a respeito da  oração. Precisamos ainda nos debruçar sobre o tema da conversão e do seguimento de Cristo entre os outros. Continuamos, neste número, a tecer algumas considerações ainda sobre o tema da oração. Desejamos transcrever aqui, nesta leitura espiritual, alguns testemunhos sobre a difícil e belíssima aventura da oração.

I. LEITURA ESPIRITUAL

Oração, fonte de espiritualidade

 

1. Começamos com um pensamento do cardeal Martini, antigo arcebispo de Milão e incentivador de grupos seletos de Leitura Orante da Bíblia em sua diocese: “A oração é, antes de tudo, resposta à Palavra de Deus que, por primeiro me interpela e me atinge em minha fraqueza, mas também no meu silêncio e na minha capacidade de escuta. A oração é deixar-se acolher pelo mistério santo indo pelo Cristo, no Espírito, rumo ao Pai. Mais do que rezar a um Deus estranho e longínquo, o cristão reza em Deus, reza escondido com Cristo na Trindade, fonte e germe de vida. Então, quando rezares,  antes de pensar que és tu que amas a Deus, deixa-te amar por ele, docilmente, cegamente, abandonando-te totalmente a ele, tudo lhe confiando, num espírito de louvor e de ação de graças. Comigo, pergunta a ti mesmo: será que eu encontro momentos em que me coloco face a face com Deus, ouvindo-o e abrindo-me a ele? (Carta Pastoral de 1996). Rezar é deixar-se acolher pelo Mistério. Onde? Na vida, de modo especial  na ruminação dos salmos, na meditação antes da aurora explodir,  nos dias de retiro que sejam efetivamente de retiro, na tentativa de instaurar grupos sólidos de leitura orante da Palavra.

2. Na linha da escuta da Palavra e oração, um pensamento do Ministro Geral dos Frades Menores: “Se rezar é entrar em relação pessoal  com Deus, escutá-lo, far-lhe-a agir segundo Deus na Escritura, o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro de seus filhos e com eles fala. Se rezar é responder a Deus depois de tê-lo escutado, na proclamação ou leitura da Palavra o escutamos e lhe respondemos quando devolvemos a  Deus a palavra que ele mesmo nos entregou. Se rezar é fazer a experiência de encontro com o Senhor,  toda a Sagrada Escritura é uma história de encontros: a grande epopeia do encontro de Deus com os homens e do homem com Deus” (Fr.  José Rodriguez Carballo, OFM.  Guiados pela Palavra/ Mendicantes de Sentido,  n. 12).  Ora, o discípulo que ama o Senhor vive na frequência e na persistência desses encontros suculentos com a Palavra no mistério da oração. E na oração responde aos sinais amorosos do Esposo.

3. No dia a dia da vida,  o homem não está espontaneamente em consonância com o Senhor. A vida interior cristã é muito mais do que um fenômeno psicológico, de experiência ou contágio de massa, uma exacerbação nervosa da voz e dos gestos.  A compreensão definitiva da oração vem da frase lapidar de Paulo aos Gálatas: “Deus enviou aos nossos corações o espírito de seu Filho, que clama: ‘Abba! Pai’ (Gl 4,6)”. Para entrar e perseverar na vida de oração  temos que ter a convicção de sermos habitados pelo Espírito que clama, murmura, inspira, respira, intercede e adora no coração humano. A oração é tarefa do Espírito que habita em nós e no coração da Igreja. Michel Hubaut, refletindo sobre  a oração de São Francisco,  assim escreve: “O Espírito Santo ocupa um lugar importante nos escritos de São Francisco que falam com frequência das  “visitas” do Senhor” e da “inspiração” de Deus. Para ele, a vida de oração não é em primeiro lugar alguma coisa que faço, mas uma presença que recebo. Presença que é mais poderosa do que nossos pobres esforços ou sentimentos humanos, que não depende da riqueza de nosso vocabulário nem de nossas formas de viver. As biografias de Francisco estão pontilhadas de expressões chaves como as seguintes: “Movido e fortalecido pelo Espírito”, “no fervor do Espírito”. O segredo da fecundidade de  sua vida apostólica e contemplativa é,  sem dúvida alguma, sua disponibilidade à ação do Espírito em seu interior.  Boaventura  escreve: “Toda sua vida interior foi hospitalidade total ao Espírito, uma perfeita docilidade a seus ensinamentos” (cf. Michel Hubaut, El camino franciscano,  Estella (Navarra), 1984, p. 54).

4. Sim, não se trata de praticar uma oração mecânica, formal, legalista. Homens e mulheres que vivem  no mundo, religiosos contemplativos, consagrados preocupados com a evangelização, entramos na movimento do Espírito.  Simples, sinceros, fraternos vivemos em comunidades ou fraternidades e vamos nos esvaziando de nós mesmos e deixando de lado acertos que mais são desacertos e esperamos juntos, na humildade e na confiança, que o Espírito que vive em nós possa nos apontar para o amanha da paróquia, da vida consagrada da Igreja. O Espírito Santo abriu os horizontes de Francisco para um porvir imprevisto. Desperta-se em Francisco uma faculdade interior e ele descobre: o homem está dotado de um sentido interior  que ele chama de coração. Se custa ao homem entrar em relação com Deus é porque perdeu o sentido do coração. Francisco encontrou um caminho novo em que o Espírito se une ao nosso espírito.

5. Já insistimos na questão do desejo. Sem desejo de Deus não há oração. Santo Agostinho já dizia: “Um desejo que clama por Deus já é oração. Se queres rezar sempre, nunca deixes de desejar”. Não há dúvida. Cada um organizará sua vida de oração comunitária e pessoal. Temos que consagrar tempo à oração: leitura de um breve texto bíblico, repetição muito singela de palavras que dirigimos ao Senhor que nos ama e nos vê,  manter-nos em silêncio num canto, deixando que nosso corpo expresse sua espera por Deus e por sua visita. Há, é claro, esses momentos longos e demorados de aridez e de desgosto na oração:  “O tempo que consagro à oração não é tempo que experimento proximidade especial de Deus. Nem consigo fixar minha atenção nos mistérios divinos. Quem dera que assim o fosse! Pelo contrário, os momentos que reservo para a oração estão cheios de distrações, inquietude interior, sonhos, confusão e enfado. Raramente vejo meus sentidos gratificados. Mas o simples fato de me colocar na presença do Senhor e mostrar-lhe tudo o que sinto, percebo e experimento, sem nada esconder, que devo agradar a Deus. No meio de tudo isso, sei que ele me ama mesmo que eu não sinta seu abraço como um abraço humano e não ouça sua voz como ouço uma voz humana”  (Henry Nouwen).  Vivemos a cultura do entretenimento. Quando não fazemos nada temos a impressão de viver tempos vazios.  Por isso fugimos desse  “tempo perdido”  que para muitos é o tempo da oração. Expressar a Deus nossa espera por ele com palavras simples e mesmo com silêncio pode dar a impressão de ser tempo perdido. Nesses instantes estamos dando tempo ao Senhor para que ele transpareça na trama dos acontecimentos. Sem o que somos seres banais.  Sem o que, como cristãos ou religiosos, simplesmente fazemos rodar a máquina fria da organização. Vidas sem alma.

6. O ser humano não foi feito para a mediocridade. Ele é chamado a transcender-se. Não pode perder-se numa horizontalidade de posse ou da satisfação imediata de seus desejos no âmbito do que vai conseguindo obter e ter. Foi escolhido para ruminar no coração a semente da Palavra que aí foi lançada. O orante é aquele que se aplica com zelo à leitura amorosa da Escritura. Os que permanecem na palavra dizem palavras boas, têm um coração bom. Desta forma, vive uma vida em abundância, que vai da ação de graças à súplica até a contemplação. Os cristãos que rezam de verdade atingem maturidade. São seres unificados pelo Espírito. Thomas Merton:  “A contemplação é uma compreensão profunda do fato de que, em nós, a vida e o ser procedem de uma  Fonte invisível, transcendente e ilimitadamente abundante. A contemplação consiste em ter consciência dessa Fonte… É ser tocado por aquele que não tem mãos, mas é Realidade pura e fonte de tudo o que é real”. Os corações humildes e pequenos ouvem a Palavra e são capazes de alojá-la no mais íntimo de suas vidas,  no dia a dia de suas existências e na perseverança  àquele que é  ontem, hoje e amanhã.

7. Encerro estas reflexões transcrevendo linhas de advertência do Ministro Geral dos OFM sobre a vida de oração: “Penso que seja indispensável avaliar o âmbito (tempo e modalidade) da oração mental  no projeto de vida pessoal e fraterna.  A fidelidade aos horários e a perseverança são indispensáveis para a vida de oração. Considero também fundamental avaliar com seriedade nossa prática sacramental  – Eucaristia e Reconciliação –  como também a qualidade e até a frequência  de nossas celebrações eucarísticas e a fidelidade à celebração da Liturgia das Horas, conscientes da diferença que existe entre dizer o Ofício divino e celebrar a Liturgia das Horas. Como a vida fraterna, também a vida de oração precisa ser submetida a uma regular avaliação. Seu crescimento depende de uma crítica construtiva:  tempo, ritmo, sentido do sagrado.  Trata-se de fundamentar o projeto franciscano no tempo de Deus e de convertê-lo numa experiência orante”  (Com lucidez e audácia, n. 28).

II. JANELA ABERTA

Espiritualidade do presbítero

 

Nossa “janela aberta”  de junho se abre para os ministros ordenados, esses que chamamos de presbíteros, de padres, de sacerdotes. Transcrevemos uma página de Enzo Bianchi, prior da Comunidade de Bose, na Itália, e que, na Rivista del Clero Italiano,  tem publicado textos densos e ricos sobre a vida e a missão do presbítero.  Ao escolhermos este  texto  tivemos em mente,  de modo especial, os confrades da Província que foram sendo ordenados ao longo deste ano. Esses nossos irmãos sacerdotes poderão enfeitar a Província e a Igreja vivendo uma espiritualidade  presbiteral intensa e significativa. 

Considerai a vossa dignidade, irmãos sacerdotes, e sede santos, porque Ele é santo. E assim como o Senhor Deus  vos honrou acima de todos por causa desse ministério, de igual modo também vós amai-o, reverenciai-o e honrai-o acima de todos. Grande miséria e fraqueza digna de comiseração, quando tendes assim presente e vos preocupais com qualquer outra coisa em todo o mundo
(
Carta enviada por Francisco de Assis a toda a Ordem).

 

Não podemos exagerar a importância do clero no seio do Povo de Deus. Desde antes do Concilio do Vaticano II,   teólogos como Congar e  Chenu abriram os caminhos para uma compreensão da Igreja como Povo de Deus, tudo desembocando nos documentos  conciliares, Igreja marcadamente de comunhão.  Não majoramos o papel do padre.  Queremos, nesses tempos, valorizar devidamente a realidade e missão dos leigos. No entanto, devemos dizer que o padre é um membro importantíssimo para a vitalidade da Igreja.  Os sacerdotes precisam viver a espiritualidade e uma espiritualidade que seja própria deles, ou seja, presbiteral.

Vejamos o texto de Enzo Bianchi  que, numa conferência, se dirigia a presbíteros: “Estou convencido de que  vossa espiritualidade  não consiste em outra coisa senão na espiritualidade vivida precisamente no que fazeis como presbíteros, como ministros da Igreja de Deus: uma só e a espiritualidade da Igreja de Deus, fundada no batismo e nutrida pela Palavra de Deus e pelos sacramentos santos. Ela, porém, é vivida diferentemente de acordo com o lugar em que o Senhor pôs o seu servo. Embora existam ainda tentativas de propor uma espiritualidade presbiteral que podemos chamar de espiritualidade do genitivo, baseada na enumeração de cada um dos aspectos da vida do presbítero: espiritualidade eucarística, espiritualidade diocesana, espiritualidade da caridade pastoral… Ao contrário, a autêntica espiritualidade do presbítero só pode ser alimentada e vivida através da realização de seu ministério. Em outras palavras, é no exercício de seu ministério que os presbíteros crescem na fé e aprofundam-se na vida espiritual: preparando-se para anunciar a Palavra e proclamando-a, alimentam-se a si mesmos; celebrando a Eucaristia penetram mais profundamente no mistério pascal; como ministros da reconciliação impregnam sua vida de misericórdia; procurando anunciar o Evangelho hoje aos outros, eles mesmos  o compreendem melhor; na confrontação e no diálogo mensuram a obediência  à fé; ouvindo os irmãos e as irmãs, e curando suas feridas, assumem o rosto do bom pastor que dá a vida por suas ovelhas”

Considerações:

• o sacerdote não é ordenado para si, mas para os outros: coloca-se a serviço da Igreja e trabalha no sentido de que o Cristo ressuscitado se visibilize;
• age in persona Christi;
• cuidará de ser transparente e límpido em sua vida e na maneira como administra as “coisas” do Senhor;
• quando se prepara séria e profundamente para anunciar uma palavra que não é sua se torna atento ouvinte do Senhor;
• tomando o pão e o vinho com os fiéis na Eucaristia, eles se sentem  criaturas pascais, pessoas que dão a vida pelos seus, como o Cristo que seguram na mão na celebração da Eucaristia;
• ouvindo as misérias dos que vem buscar junto dele a misericórdia de Jesus e do Pai,  o padre é homem que vive a espiritualidade da misericórdia e da bondade fraterna;
• tendo que  escutar as contestações, no diálogo com crentes e não crentes,  se torna um homem obediente à fé;
• vivendo próximo a pessoas feridas e jogadas à beira do caminho, os sacerdotes  são bons samaritanos.

III. CRÔNICA

Reminiscências da Rua Monte Caseros e dos frades do Sagrado na imperial cidade de Petrópolis

 

Petrópolis,  cidade montanhosa do Estado do Rio de Janeiro,  cidade imperial, cidade franciscana. Ali estão os frades desde final dos anos do século  XIX, vindos da Alemanha. Extremante difícil evocar numas poucas páginas as coisas  que muitos de nós vivemos ali no convento e na igreja do Coração de Jesus, à rua Montecaseros. Limitar-me-ei a evocar algumas reminiscências  de um curto tempo…

Desde os meus cinco ou seis anos conheci os frades, portanto pelos anos de 1944. Na Capela de Nossa Senhora das Vitórias, na Vila dos Sargentos, Paróquia do Sagrado, tínhamos Missa todos os domingos, às 8 horas. Ali chegava o frade trazido por um jipe do Primeiro Batalhão de Caçadores. Quantas vezes Frei Constantino Koser celebrava a Missa das 8h  com sua homilia feita com voz pequena e serena, puxando um pouco os lábios devido a uma paralisia facial. “Diletos irmãos… ou “Diletíssimos irmãos”. Depois, celebrava ou fazia a homilia, ou sermão como se dizia, na Missa das 10h no Sagrado, que era transmitida pela PRD3 Rádio Difusora de Petrópolis, de propriedade do Sr. Carneiro Malta, Missa dita dos Canarinhos. Antes e depois, outros frades queridos lá celebravam regularmente, entre eles Frei Gil Maria Wanderley  Lima e Frei Dídimo Strunck. Conheci esses frades  mais de perto entre  8 e 12 anos. E uns e outros foram marcando minha infância. Um dia, muito tempo depois, fiz uma visita ao hospital, depois de celebrar a Missa no Madre Regina, para ver Frei Constantino que estava muito doente… que sonhava ou  “delirava” dizendo: “Veja, as folhas de papel de seda estão voando…”. Ele se referia às cópias de escritos que produzia. Esse que estava ali esperando a irmã morte entre os anos  de 1950 e o momento do desfecho  teve uma belíssima carreira que o levou a ser Ministro Geral da Ordem. Mais tarde, bem mais tarde,  tive a alegria de vê-lo em Paris, no Couvent de la rue Marie Rose, com sua simplicidade e com seu jeito único. Os frades, depois da janta, se colocaram à porta do refeitório, para beijar as mangas do Ministro Geral. Eu fiquei ao seu lado, todo prosa, porque era  Frei Constantino Koser…

Aquela capelinha de Nossa Senhora das Vitórias tinha como zeladora uma das mulheres mais límpidas que conheci:  Dona Clara, esposa do senhor Alfredo, que tinha muita estima por Frei Matias Heidemann que celebrava na Capela de Nossa Senhora Auxiliadora do Bingen e era o contador da Editora Vozes. Naquela capela recebi a primeira comunhão das mãos de Frei Ático Eyng, que nos  anos 47 ou 48  era guardião  e pároco do Sagrado.  Mais tarde vim a conhecer e trabalhar com  Griselda Eyng que, na ocasião, era Ministra Regional da OFS. Ela tinha sido religiosa de uma comunidade de irmãs fundada pelo seu tio Frei Ático.

Naqueles tempos havia no Sagrado um frade petropolitano, professor de Exegese, tradutor da Bíblia do francês a partir edição de Maredsous: Frei João José Pedreira de Castro, Frei Jojó… Era professor de Sagrada Escritura no Teologado dos Franciscanos no Convento do Sagrado. Era também assistente da Congregação Mariana, respeitado, amado.  Quando falava fechava os olhos. Tinha uma fala muito mansa. Foi responsável pela construção do Trono de Fátima. Soube depois que precisou deixar a diocese de Petrópolis e foi começar ou terminar a  tradução da Bíblia em Tremembé, perto de Taubaté.  Um dia desses fazendo uma visita pastoral à OFS nessa localidade perguntei se alguém o havia conhecido… Ninguém sabia nada… Lembro-me de seus cabelos brancos e frisados, de suas espessas sobrancelhas… Um amigo inseparável de Frei João José  fora o Senhor Filipe Brand, primo de minha mãe. Os dois estavam sempre juntos no trono de Fátima.  Hoje, quem celebra muito lá é Frei Abílio, nosso português que mora no Sagrado.

Ficaram na minha memória  naquele anos de  48 a 54, mais ou menos, o brilho de  duas funções religiosas celebradas na Igreja do Sagrado, templo que foi belamente restaurado pelo Frei Vitalino Piaia. Refiro-me à Missa dos Canarinhos e as vésperas solenes de domingos à tarde, estas muitas vezes seguidas de Bênção do Santíssimo, com muito incenso…

A Missa das dez era um evento.  Era a Missa dos Canarinhos. A igreja ficava apinhada, sobretudo, com fiéis que vinham do Rio de Janeiro,  que passavam o fim de semana  ou o verão em Petrópolis. Talvez mais com cariocas do que com os petropolitanos. Falar em Canarinhos, naqueles idos  das décadas de 40 e 50 é falar em Frei Leto Bienias… Figura ímpar, zeloso preparador do coral, homem da música. Frei Leto nunca fazia  “sermão”.  Deve ter tido traumas.  Celebrava, aos domingos, às 5 horas da manhã.  Era diretor da Escola Gratuita São José. Os meninos cantores, os Canarinhos de Petrópolis, eram recrutados entre os alunos desta escola que tinha professores, mais professores do que professoras.  Aliás, penso que naquele tempo eram homens como professores. Confesso que quando era garoto não gostava de participar da Missa das dez com  os Canarinhos… A Missa era longa demais.  Mas por outro lado, como petropolitano, muito me orgulho  do Coral dos Canarinhos… Mais tarde comecei a gostar de música… cheguei a cantar no Coral de adultos dos Canarinhos. E, com meu jeito de observar as coisas, não largava os olhos de  Frei Leto, de suas irritações com o descuido dos meninos… Por vezes, ele batia na mesa,  xingando os meninos, mas queria era mandar um recado para os frades que desafinavam… Mais tarde, vim encontrar os Canarinhos e Frei Leto na Alemanha, num natal, não me lembro mais que ano.  Estudava eu em Paris e fui até  Essen ou Paderborn.  Lembro que passei um adorável natal com Frei  Hans Stapel… em sua casa, com sua família… Lembro-me que nevava naquela inesquecível véspera de Natal.  Havia um outro frade alemão muito esperto que foi o agente da viagem. Esqueci seu nome. Frei Estêvão deve se lembrar.  Confesso que gostava muito de sentar-me ao lado de Frei Leto na Sala de Recreio do Sagrado, em torno de uma mesa redonda baixa… Tenho muitas saudades de Frei Leto, que morreu esclerosado… Que pena!  Hoje, no meu quarto do Pari, vivo ligado na Rádio Cultura FM com seus clássicos que enchem de alegria e de ternura minha vida.  Por vezes, tenho mesmo alegria de assistir a um concerto desses esplendorosos na belíssima Sala  São Paulo… Às vezes, no meio das peças, vendo maestros e maestrinas, lembro-me dos ensaios de Frei Leto no prédio da Ordem Terceira… Tudo isso foi devorado pelo tempo.

A outra reminiscência do Sagrado eram as vésperas cantadas  às duas da tarde aos domingos… Imaginem, os frades em casa aos domingos. Saiam apenas os diáconos e os padres simples. Não tenho espaço para explicar  quem eram os padres simples… Fica para outra ocasião. Os outros  frades permaneciam em casa. Certamente, meu caro Frei Alberto Beckhäuser hoje protestaria com essa história de celebrar vésperas quando o sol estava a pino. Como garoto e adolescente, não participei das ditas Vésperas… Mas me impressionava ver aqueles homens, jovens, cheios de vida, com paramentos, hábitos cantando em latim… incenso, genuflexões.  Meu Deus, que beleza!  Não sou saudosista. O que passou,  passou… Mas confesso que algumas de nossas casas poderiam restaurar esse costume das vésperas  solenes… com pluvial dourado nas festas solenes. Sei, sei muito bem que os tempos mudaram… Mas sei também que é bom para nós, frades e para os leigos, cantar os louvores do Senhor no domingo, nesse dia do Senhor.  Nessas vésperas do Sagrado lá pelos anos 55, de longe e depois de perto, fiquei conhecendo  Frei  Burcardo (Celso) Faria, Frei  Mariano Tenfen,  Frei Manuel Schweitzer, Frei  Hugo Baggio. Eram frades teólogos daquela época… Muitos deixaram a Ordem, outros morreram.  Mas elas cantavam as vésperas solenes da Páscoa com paramentos dourados que ainda me encantam a vista no palácio da saudade.

Está na hora de parar.  Um dia querendo Deus, voltarei a escrever sobre o “meu” Sagrado. Uma das minhas alegrias foi, durante anos e anos, escrever as pagelas do Coração de Jesus.  Aliás, tudo o que está vinculado ao peito aberto de Cristo me diz respeito.

Gostaria, no final dessa conversa descosturada,  de evocar um dos grandes frades que conheci. Refiro-me a Frei  Desidério Kalverkamp. Meu Deus, poderia escrever um livro sobre esse admirável e exemplar frade. Homem de sua época,  formado em direito canônico. Quando cheguei a Petrópolis, em janeiro de 1962, depois da Filosofia de Curitiba, ele ainda era guardião da casa.  Depois seria a vez de Frei Bernvardo Warnke  (Frei  Walter… Waltão). Vivia-se pobremente no Sagrado. A comida era suficiente, mas de gente pobre. Frei Desidério seria  mais tarde transferido para Niterói, onde eu era guardião e pároco. Foi um homem excepcional… Gostava de ir com Frei Paulo Cear Ferreira tomar banho nas praias oceânicas de Niterói… Usava um imenso calção bermuda… e tirava a camisa mostrando um peito branco de alemão… Lembro-me que em janeiro de 1962, em Petrópolis, rezávamos laudes e depois havia meia hora de meditação… Ele se levantava devagar e batia de porta em porta para acordar os frades que não estavam no coro… Não sei se ele voltava com raiva ou sem raiva… Chegavam  os “dorminhocos” e ele ou outro frade  celebrava a Missa conventual  às 6 horas… No final, os diáconos saiam levando a comunhão aos doentes…. Mas estou adiantando demais a história. Fique consignado em ata meu louvor e minha admiração por Frei  Desiderio Kalverkamp…

O Sagrado mudou. Mudaram os tempos.  Houve reformas bem feitas e outras não tão bem feitas… mas está lá. A casa está limpa, há beleza… e o verde e as montanhas da cidade em que nasci, essas encantadora cidade de  Petrópolis…. Estas são reminiscências do Convento do Sagrado sito à rua Montecaseros.

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI?

Carta a Rodrigo

 

De quando em vez entramos em contato com histórias de meninos e meninas que, por diferentes razões, não conheceram  seus pais.  Muitos desses e dessas lutam a vida toda para encontrarem aquele que a colocou no mundo. O texto-carta,  abaixo,  nada tem a ver com essa problemática.  Ao contrário, trata-se um relato que mostra a nobreza e grandeza da missão da paternidade e da maternidade. Esta carta foi fortemente inspirada em página da revista francesa da OFS, Arbre, set/out  2008, n. 268,  p; 12/13  sob o título de Letre à Elouan.

 

Carta a Rodrigo
20 de janeiro de   2009

Meu filho,

se um dia tu te perguntares de onde vieste, saibas que se trata de uma longa  história. Tudo começou lá onde teu pai e tua mãe se encontraram, naquela Marataízes do Espírito Santo numa tarde de verão. Os olhares de teu pai e de tua mãe se cruzaram para nunca mais deixarem de se fixarem um no outro e outro no um.  Sim, era verão e aquele verão de 2002  foi terrivelmente quente. Todo mundo se queixava do calor. No coração de teu pai e de tua mãe o calor do amor acendia um fogo que haveria de iluminar nossas vidas.  Um dia haveria de brilhar uma bela luz…

Meu filho,

se um dia tu te perguntares se é fácil amar, saibas que se trata de uma longa história… trata-se de muito tempo em que se deve ter o cuidado de arranjar todos os dias tempo para se olhar,  para caminhar juntos na direção de um amanhã que se desconhece. Quantos e tantos telefonemas, quantos quilômetros percorridos de carro ou de ônibus, quantas cartas que foram escritas, quantos pequenos presentes oferecidos, quantos acessos loucos de riso, quantas lágrimas derramadas… ninguém pode saber. Mas o que eu e Priscila sabíamos é que um dia, uma bela  luz haveria de brilhar…

Meu filho,

se um dia tu te perguntares se é fácil dizer sim, saibas que é uma longa história que pode começar, por exemplo, por uma declaração de amor feita junto à mesa de um bar quando tomávamos um água tônica com gelo e limão. Houve o tempo do namoro, dos planos, dos projetos, das cartas, dos telefonemas, de pequenas divergências e diferenças… Houve, então, a festa do casamento naquele 12  dezembro de 2005, em Miguel Pereira:  nossas famílias e alguns de nossos amigos nos cercavam para celebrar conosco esta fabulosa aventura do casamento, na qual tudo está para ser construído  por sobre os fundamentos de nosso amor e de nossa fé num Deus  que nos ama e quer nossa felicidade.  Nessa ocasião, o que certo é que tínhamos a certeza que uma luz haveria  de brilhar….

Meu filho,

se  um dia tu quiseres saber se é fácil viver a dois, saibas que se trata de uma longa história feita de compromissos e de promessas. Teus pais procuraram construir um ninho de amor no meio de muitas coisas: o trabalho profissional a ser assumido, a comida a ser feita na volta do trabalho, a limpeza da casa, a Missa dos domingos, as visitas aos teus avós e tantos compromissos menores, mas importantes. Com esperança sabíamos que nossas preces dirigidas ao Pai por Cristo sob os cuidados de Maria  seriam atendidas. Sim, certamente um dia uma luz haveria de brilhar…

Meu filho,

se um dia tu quiseres saber se é fácil ser pai, saibas que se trata de uma longa história.  Durante  nove meses estiveste ali, silencioso, bem protegido no seio de tua mãe. Foste crescendo e  a barriga de Priscila foi ficando grande, arredondada.   No dia 20 de junho de 2008  resolveste nascer.  Que presente do céu! Haveríamos de alimentar essa bela luz  para que ela  pudesse  jorrar claridade em nossa vida e na vida do mundo.

Meu filho,

se um dia tu quiseres saber se é fácil ser  batizado, optar pelo batismo, saibas que eu e tua mãe quisemos que tu entrasses bem pequeno na família de Deus. Cremos que nossa vida tem sentido quando nos deixamos iluminar pela fé nesse Jesus que passou da morte para a vida e se posta diante de todos os seres humanos como luz do caminho e claridade.

Meu filho,

se um dia quiseres saber se é fácil alguém ir se tornando gente, trata-se de uma longa história. Eu e tua mãe prometemos te ajudar… mas a vida é complicada e complexa. Não é fácil crescer em humanidade. Tens tuas origens longínquas na Alemanha e em Portugal… Tu trazes marcas que  eu e tua mãe de demos… Tu nasceste de um casal frágil, mas cristão… Esperamos que tu possas crescer bem e queremos que nunca deixes de buscar esse Deus que vive em ti no mistério de teu batismo.  Temos certeza que tu iluminarás nossas vidas e vida do mundo  como um farol na noite.

Meu filho,

hoje estamos comemorando teu primeiro aniversário.  Como  o tempo passa depressa!  Ficamos admirados cada dia com os progressos que fazes. Cada dia que passa rendemos graças a Deus por tantas  maravilhas.  Como Deus é bom. Dentro de alguns meses, Rodrigo, ganharás um irmão ou uma irmã. Vamos ver… e aí vai começar tudo se novo.

Parabéns e todas as bênçãos.

“Louvado seja  o Senhor pela  vida de nosso Rodrigo…uma luz que esperávamos com ansiedade”.

Teus pais

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

Francisco de Assis e o apelo evangélico

 

O Evangelho do envio dos apóstolos pelo mundo afora

 

Temos refletido, ao longo deste ano, em vários encontros que Francisco de Assis foi realizando no intuito de esclarecer sua vocação e discernir  seu caminho.  Hoje  vamos surpreendê-lo encontrando-se com o Evangelho na capelinha de Nossa Senhora dos Anjos da Porciúncula.  Que estas reflexões ajudem a ver nosso caminho no hoje do mundo e da Igreja.

 

1. Lá vai ele, esse Francesco da cidade de Assis. O coração dava muitas voltas dentro de seu peito. Não era mais o filho de Pietro Bernardone e de Dona Joana.  Era e não era. Estava mudado e transformado. Melhor dizendo: estava se transformando. A borboleta ainda não tinha saído completamente do casulo. As pessoas se davam conta do processo de mudança. Francisco, fazendo sua caminhada… viajou até os cantos mais recônditos de seu interior, deu hospitalidade ao Espírito. Ficou meio pensativo… beijou um leproso… se vestiu de trapos para sentir na carne a dureza da pobreza e de ser um pedinte de esmolas. Homens bons e retos de Assis vinham ter com ele querendo viver sua vida… mas ele se sentia meio perdido. Na verdade o que Deus estava querendo dele?

2. Francesco, meio dançarino, meio poeta, meio criança entra na capela de Nossa Senhora dos Anjos. Um sacerdote idoso celebra a Missa e lê o Evangelho da missão:  os apóstolos são convidados a irem pelo mundo a fora, a não se instalarem no templo, a irem anunciar a Boa Nova, sem calçado, sem títulos, formulando votos de paz, anunciando a liberdade do Evangelho. Francesco já usa as roupas de ermitão e caminha com um cajado… Agora, ele vê seu caminho, ou seja, ser andarilho, pregador ambulante, ele e seus irmãos, dois a dois. Leves, lépidos sem o peso de estruturas, sem organizações burocráticas.  Com seus vinte  e  poucos anos, Francisco vai se tornar o homem totus evangelicus. O Evangelho passava a tomar conta dele, até o fim, até o morrer nu na terra nua,  ali mesmo nesta abençoada capela da Senhora dos Anjos. Ele pode dizer com toda veemência:  “É isto que eu quero, isto que busco de todo o meu coração.  Agora está claro: eu serei com minha vida e minha história, junto com meus irmãos o anunciador do Evangelho, fascinados pelo Cristo que nos manda pelo mundo à maneira dos apóstolos”.

3. Eloi Leclerc, de maneira muito feliz, comenta esse encontro de Francisco com o Evangelho:  “Certamente, naquela manhã de 1208, Francisco não tinha consciência do alcance de sua descoberta para o futuro da Igreja; quando seu coração se tinha iluminado com a claridade do Evangelho que ouvira. Não pensa nos hereges, nem nas cruzadas que o Papa projeta contra eles. Quer apenas responder pessoalmente ao apelo do Senhor. Realiza algo de imenso alcance ao tomar ao pé da letra o Evangelho que acabara de ouvir. Compromete-se em trilhar um caminho novo que possibilitará o encontro do Evangelho com o novo mundo das comunas (…)  Numa cristandade solidamente instalada e caracterizada pelo imobilismo do sistema feudal, tal Evangelho soa estranhamente como  apelo à mobilidade, à vida itinerante. Os discípulos são convidados a se porem a caminho e a percorrerem o mundo, à maneira dos mercadores da época. Era preciso ser comerciante ou filho de comerciante para ouvir esse apelo em sua novidade e atualidade. Ao ouvir esse convite, Francisco sente que  o seu próprio corpo pede uma resposta. Só tem um desejo: quer partir, apressadamente quer percorrer o mundo, “com passos grandes e paradisíacos”, no dizer de J. Delteil. Numa Igreja que carrega o imenso peso de suas imensas propriedades de terra, que tem calçados de chumbo, Francisco reencontra a leveza e a alegria da caminhada, a exultação da juventude, a impaciência alegre do mensageiro. No mesmo instante, arranca-se de toda instalação territorial, rejeita todo domicilio fixo e todo feudo.  Rompe  com o sistema político-religioso de seu tempo, o do “senhorio” da Igreja e dos “benefícios”. Redescobre o Evangelho como movimento de Deus para os homens. Reencontra a missão”  (E. Leclerc. Francisco de Assis.  O Retorno ao Evangelho, p. 51-52).

4. Ali começaria  a aventura franciscana.   Os frades abriram as portas da prisão em que haviam colocado o Evangelho.  Soltaram o Evangelho. Nada de peso de estruturas. O Evangelho é um convite a desinstalação. Nada de carga, mas leveza. Leveza semelhante à dança. Abrir os braços para acolher a vida e levá-la adiante.  Os peregrinos e os viandantes encontram sua vocação na página do Evangelho lida na Porciúncula e veem concretizada na vida dos franciscanos que são pessoas que respeitam as leis da sociedade e as orientações da Igreja mas são diferentes. Rezam como Jesus e Francisco. Aproximam-se as pessoas não com desejo de enquadrá-las em estruturas fixas e esterilizantes. Mesmo quando não se deslocam fisicamente os franciscanos, as clarissas e os membros da Ordem Franciscana Secular são andarilhos em seu interior. Nada está acabado. Há descobertas a serem feitas. O Espírito anda soprando de uma maneira diferente. Esses franciscanos que gostam dos eremitérios, gostam de dar uma de Marta e de Maria, mas estão presentes no meio dos catadores de papel, dos alunos de uma universidade, na pastoral para fazer dele uma ação evangelizadora, respeitando etapas, sempre preparando os caminhos para a chegada do Senhor.

5. Fernando Uribe, OFM, comentando o encontro de Francisco com  o Evangelho  frisa o modo do ir pelo mundo,  ou seja, sem nada que dificulte o caminhar velozmente e plena liberdade, sem que os cuidado terrenos entorpeçam a completa dedicação à tarefa de anunciadores  do Reino. Estas disposições vão aparecer na Regra da Ordem Primeira: espiritualidade da desinstalação, da desapropriação, de pobres que são instrumentos de Deus no mundo. O Senhor havia revelado a Francisco que ele devia viver conforme o Evangelho. Para que mais?

Para continuar a reflexão

Encontro com o Evangelho na Porciúncula

• 1 Celano 22

• Legenda dos Três Companheiros 25

Para refletir em grupo

• Ler Mateus 10, 5-16  – Missão e envio dos doze

• O que significa seguir e viver o Evangelho? Como os franciscanos hoje podem reencontrar o Evangelho? Seria nossa missão apontar para o Evangelho?  Como?