Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Julho 2012

I. LEITURA ESPIRITUAL

Quando o Senhor ocupa o espaço todo de uma vida

 

Centralidade da fé e conversão do coração (I)

 

Nos capítulos de nossa “leitura espiritual”  deste ano de 2012,  estamos refletindo sobre as fontes da espiritualidade e os fundamentos de nossa existência cristã (e franciscana). Os que se embrenham pelos caminhos do Senhor, aqueles que tentam viver “espiritualmente”,  fascinados pela pessoa do Ressuscitado, experimentam a urgência de professar a fé no Filho de Deus que passa a ocupar todo o espaço de uma vida e a premência de seguir suas pegadas num alegre processo de conversão. Fé sólida sempre retomada e um incessante caminho de conversão podem proporcionar alegria ao discípulo e ao que resolve consagrar-se a Deus de maneira mais radical na vida consagrada.  O que acontece quando o Senhor ocupa o  espaço todo de nossa vida? O que significa a sequela de Cristo? Como se exprime  nosso empenho de conversão? Encetamos a reflexão sobre o tema neste número de julho e continuaremos no mês de agosto.

 

1. Quando começo a digitar este texto  tenho em mente rapazes  e moças desejosos de  sair da banalidade e da mediocridade e buscar as estrelas. Alguns pensam na vida de casamento e, outros, na consagração religiosa. No ardor de seus verdes anos, vejo-os a se lançarem na aventura  cristã. Penso em noviços que estão se preparando para emitir seus primeiros votos, nos frades que optaram e optam pelo sacerdócio ministerial e querem ser sacerdotes segundo o Altíssimo.  Tenho em mente homens e mulheres que desejam ser franciscanos continuando sua vida no mundo e vendo na família franciscana secular um seio que pode nutri-los e, assim, chegarem franciscanamente à santidade de vida.  Imagino esses casais cristãos de bodas de prata ou esses religiosos que já passaram pelo meio-dia da vida. Até que ponto o Senhor ocupa ou ocupou o espaço todo de suas vidas?  Até que ponto conseguiram ter em seu semblante traços do Cristo que andaram seguindo e perseguindo? Até que ponto conseguiram fazer com que o amargo se tornasse doce e o doce, amargo?  Até que ponto  os formadores se preocupam que esses novos membros  tenham consciência de tudo isso?

2. “O coração da espiritualidade franciscana é este: a fé vigilante. Para além das ideologias, das sirenes que anunciam desgraças, dos  slogans publicitários a respeito da felicidade, permanecer disponível à chamada de Deus, ao Espírito do Senhor. Projetar uma luz novamente sobre nossas fontes interiores. Escutar a Deus. Buscar a Deus. Deixar-se amar e modelar por Deus. Deixar-se levar novamente no meio da noite pela esperança que se estampou no rosto de Jesus. Acordar desta sonolência que  se abateu sobre nosso mundo ocidental em toda a sua abundância. O projeto evangélico de Francisco se alicerça na fé.  Uma fé que acredita que Deus é amor, que seu projeto sobre o homem  dilata os nossos horizontes e que esta dependência de amor  não aliena o homem, mas o  liberta” (Michel  Hubaut, El camino franciscano, p.21).

3. O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, carrega em si uma semelhança que, de modo algum, pode ser destruída ou suprimida por nenhuma ação humana. Ele é sempre um ser inquieto,  que tem no peito um coração irrequieto. No homem a imagem de Deus é inalienável, mesmo se a semelhança seja contradita pelo não reconhecimento do Criador e pelas escolhas de morte que o homem faz  não o levando em consideração os caminhos da vida. Essa imagem está sempre pedindo que o homem volte para Deus, que saia do estado em que vive como consequência de seu pecado, que abandone a mediocridade, que busque as alturas.  Não podemos deixar de viver para o Senhor. Somos seres que temos saudade do encontro. Deus, seu lado, parece “não poder viver sem o homem”. O relacionamento entre o homem e Deus é de busca de um pelo outro, manifesta-se na nostalgia do encontro de um pelo outro. Cristo, o enviado querido do Pai, vem derramar o Espírito nos corações para que os homens  voltem a Deus. E levando uma vida espiritual  estamos sempre em movimento para o Pai.

4. A vida espiritual é um caminho de volta ao Pai, caminho que por vezes a criatividade humana descreve como ascensão para as alturas, escada que da terra chega a céu,  passagem que precisa ser efetuada, itinerário a ser percorrido da dissemelhança até à conformidade com Deus, um retorno que se decide, um êxodo a ser vivido e que encontra seu termo em sua realização pascal na morte. O homem que caminha  no Espírito (Gl 5,16), leva uma vida sob o signo do Espírito, aceita viver esta  Páscoa na qual se oferece a si mesmo em holocausto a Deus e desta  forma se encontra diante de Deus como  Filho de Deus, vivendo a vida do próprio Deus (cf. Enzo Bianchi, La vie spirituelle chrétienne,  in Vie consacrée, 2000, n. 1, p. 42-43).

5. Em Francisco há uma centralidade da  experiência da fé. A leitura serena dos escritos do Santo de Assis, o teor  de muitas  de suas orações, exortações e cânticos de louvor revelam alguém que foi sendo cativado por Deus de tal maneira que o Altíssimo passou a ocupar todo o espaço de seu tempo, de seus trabalhos, de suas preocupações. “Nada mais desejemos, nada mais queiramos, nada mais nos agrade ou deleite a não ser nosso Criador, Redentor e Salvador, único Deus verdadeiro, que é o bem pleno, todo o bem, o bem total, verdadeiro e sumo bem….”.  “Nada nos impeça, nada nos separe, nada se interponha entre nós; em qualquer parte, em todo o lugar, a toda hora, em todo o tempo, diária e continuamente creiamos todos nós de verdade e humildemente o tenhamos em nosso coração e amemos, honremos…” (Regra não bulada XXIII).  Na vida do cristão, do franciscano, em qualquer parte e a toda hora, sempre a fé no Altíssimo. Não uma fé intelectual, mas aquela que se traduz numa amorosa e respeitosa entrega de vida. Em outras palavras, o fiel caminha à luz da Presença do Senhor, da fé: no seu ir pelo mundo, na maneira como celebra a Eucaristia, no jeito de habitar  silêncio, no saborear o Ofício, no amigo e no inimigo, na saúde  e  na doença, na juventude e nos anos do inverno da existência.  Em tudo isso a centralidade da fé:  Deus que vai ocupando todos os espaços da vida de alguém. Viver como se estivessem vendo o Invisível.

6. Thaddée  Matura, OFM, no seu  O Projeto Evangélico de Francisco de Assis  (Vozes/CEFEPAL),  escreve: “Estudos feitos recentemente (H. Roggen) têm demonstrado que não foi nem a preocupação social, nem o desejo de reformar a Igreja, nem a vontade de opor-se aos hereges que deu origem à aventura espiritual de Francisco. Ele converteu-se a Deus, e antes que outros viessem a se reagrupar em torno dele, viveu sozinho. O elemento central e essencial de sua vida e de seu projeto (…) é a experiência de Deus que ele conquistou com  longo e ardoroso esforço. A esta experiência tudo deve estar subordinado. Nada, nem serviço, nem trabalho, nem salário devem ser obstáculo.  Quando se fala em evangelismo de Francisco, antes de pensar na pobreza, é neste radicalismo que é preciso pensar, porquanto só ele fundamenta tudo o mais. Jesus e seu Evangelho introduzem o homem neste inefável mistério que Francisco decanta no final da Primeira Regra (cap.23). O arrebatamento pelo mistério explica a importância da solidão, do elemento eremítico e o lugar que a oração deve ocupar na vida dos irmãos” (p.47-48).

7. Esta experiência da centralidade da fé na vida de Francisco e na vida dos seus seguidores é fundamental. “Convertei-vos e crede na boa nova” (Mc 1,15). Francisco em mensagem solene dirigida a todos os homens afirma: “Perseveremos todos na verdadeira fé e na conversão” (1Regra 23,7).  Um pequeno fascículo publicado pela Cúria dos Frades Menores em Roma, sob o título A caminho …rumo ao capítulo geral extraordinário (2005),  assim expressava o tema: “Ao centro da vida franciscana  encontra-se a experiência da fé em Deus no encontro pessoal  com Jesus  Cristo. Sob qualquer aspecto que se aborde (oração, fraternidade, pobreza, presença no meio dos homens) todo o projeto evangélico  remete-nos continuamente para fé.  As recomendações incessantes da Regra sobre a busca de Deus e a primazia  absoluta e única na vida dos frades, sobre a adoração e o amor que Lhe são devidos, sobre o seguir as pegadas de Cristo e sobre a vida segundo o Evangelho, sobre a abertura ao sopro soberanamente livre do Espírito ou sobre a oração prioritária e incessante; as motivações evangélicas propostas a todos os comportamentos dos frades (contemplação, jejum, oração, vestuário, pobreza, trabalho, mendicidade, alimentação), mostram que na base de uma tal vida existe uma experiência única de fé num Deus que é amor”.

8. Tudo pode mudar. Estruturas podem ser substituídas. Casas e obras não precisam se eternizar. Permanece, no entanto, a nossa fé no Deus e Pai de Jesus  Cristo.  A fé de que estamos falando não é conhecimento puro ou mera reflexão teológica, repetição de fórmulas, sistema ideológico, “teimosia” cerebral, mas uma descoberta, um acolhimento gradual e vivo da realidade de Deus e do homem à luz de Jesus Cristo. Esta fé, dom de Deus livremente aceito é o único fundamento sólido sobre o qual podemos construir uma vida de oração, de castidade consagrada, de fraternidade, de pobreza e de serviço.  As pessoas que desejam viver de Deus na vida cristã, na vida consagrada precisam ter bem claro o que acaba de ser dito. Os que querem começar o noviciado,  os que pedem a profissão, os que renovam seus compromissos no jubileu de vida consagrada colocarão a experiência da fé em Deus em primeiríssimo lugar. Os mestres avisados levarão os seus discípulos, sobretudo nos primeiros antes da profissão e depois dela, a viverem experiências de fé.

9. Falamos então de uma busca espiritual.  A experiência de fé, por vezes designada não tão adequadamente, de dimensão contemplativa  consiste na descoberta incessante desta dupla realidade, Deus e o homem, do vínculo indissolúvel entre os dois, do caminho que deve ser trilhado através do compromisso da conversão. Trata-se de tentar ir além daquilo que se vê,  de ver o invisível atrás do visível. Esta experiência se faz no lusco-fusco da fé.  Todos os dias… nas coisas cotidianas… e naquelas mais elevadas.  Uma vida passada sob o olhar do louco amor de Deus.  Uma vida de fé.  Desejar o espírito do Senhor, deixar lugar para sua atividade em nós, orar com um coração puro, ter paciência nas contrariedades, amar o inimigo, ter sempre o espírito voltado para o Senhor. Em suma, centralidade absoluta de Deus.

10. Na Carta  Porta Fidei, com a qual se proclama o  Ano da Fé,  Bento XVI escreve: “Desde o princípio de meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do pontificado, disse:  A Igreja, no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens fora do deserto, para lugares de vida, de amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude (n.2).

11. Ora, essa centralidade da fé  leva o discípulo ao seguimento de Cristo. Nesse caminho de volta ao Pai  dá o chamado para o seguimento: “Vem e segue-me”. Esse  palavra continua a  ressoar na vida de tantos, como um chamado pessoal.  Os que desejam levar uma vida espiritual não deixam que ela caísse no chão.  Trata-se de identificar esse chamado como chamado para nós, apontando uma forma de seguimento de Cristo que me é pedida. Esse chamamento nunca é vago, mas pessoal, mesmo feito no seio da comunidade de fé. Elemento fundamental da vida espiritual é o seguimento de Cristo.

Questões:

1. O chamou sua atenção neste texto?

2. O que significa a afirmação de que Deus ocupa todo o lugar numa vida?

(continua no número de agosto de 2012)

Frei Almir Ribeiro Guimarães

II. JANELA ABERTA

A vida consagrada na Igreja local

 

Pequena teologia da VR na Igreja “neste lugar”

 

Nossa “janela” de julho se abre para a diocese, para a Igreja local  e para os religiosos que aí vivem. Alphonse Borras, sacerdote diocesano de Liège, Bélgica, canonista, escreveu um calmo e sólido artigo em torno redimensionamento da vida religiosa. Aborda de modo particular o papel da vida consagrada na Igreja local (Vie Consacrée, n. 71, 1999).  Abrindo a “janela”, tentamos ver o sentido da vida religiosa na Igreja local. Como nos situamos na Igreja local?  Como o bispo do lugar vê nossa presença? Que expressão temos na Igreja que está “neste lugar?”

 

Vivemos em Igreja.  Somos cristãos, de modo especial da Igreja local.  A Igreja é obra do Espírito. Ali encontramos variedade de vocações e serviços sempre tendendo à unidade. Felizes as dioceses que contam com casas de religiosos e religiosas que vivem a alegria de sua consagração.  Sua presença enriquece a vida da diocese. Sua ausência constitui sempre um vazio.

No seio da Igreja local, entre os batizados, algumas pessoas decidem “viver somente para Deus”.

Enquanto todos os batizados, conjuntamente, dão o testemunho da Boa Nova  na história dos homens, no intuito de levá-los à plena realização, ou seja o “Reino de Deus” alguns são chamados pela Igreja para se “gastarem” no anúncio do Evangelho, na edificação das comunidades e na realização da missão.

Há ainda batizados que optam por “fazer profissão” dos conselhos evangélicos  que  podem explicitar a radicalidade do evangelho e a urgência do Reino. Eles lembram que tudo passa. Antecipam livremente uma tríplice morte das quais ninguém escapa:  o abandono das riquezas, da esposa (esposo) e dos filhos, bem como  todo “domínio” sobre seu destino. Apontam, desta forma, para a força da ressurreição, a acolhida de uma plenitude de vida, a felicidade de serem amados de graça. Lembram a todos, serenamente, que  Deus pode cumular plenamente  uma existência. “Deus basta”.  Aceitam, assim, o alegre risco de uma vida totalmente entregue ao serviço de Deus, “ao louvor de sua glória”.   Um vida “religiosa”.

Cristo, através do Espírito,  quis visitar nossa humanidade, tomar parte em nossa condição humana para que  pudéssemos  participar de sua divindade e abrir a história dos homens à sua Aliança.  A opção dos religiosos  por Deus  constitui precisamente uma consagração particular que  tem íntimas raízes  na consagração batismal e a exprime com  mais  plenitude.

Pode-se, assim, mensurar a tríplice dimensão profética, fraterna e escatológica da vida consagrada: ela é anúncio radical da Boa Nova, ela é  realização humilde, mas resoluta, da fraternidade e prelibação do que esperamos, permanecendo vigilantes na fé.  Se os fiéis cristãos leigos  são convocados a testemunhar a graça do batismo  e que o ministério dos bispos,  com a ajuda dos padres e dos diáconos, apoia esse testemunho e ajuda a se enraizar no Cristo e a se abrir ao Espírito Santo,  a vida consagrada incita os cristãos e seus pastores a levar a sério o Evangelho: a vida consagrada, por sua existência na Igreja  se coloca a serviço da consagração da vida de todos os fiéis leigos e clérigos.

Desde  o período da implantação da  Igreja, a vida consagrada foi  tida como um dos critérios para se tenha uma Igreja local de pleno direito.  Além disso, sua presença enriquece a catolicidade da Igreja realizada em um lugar.  Não somente ela a completa, mas serve-lhe de estímulo. Na diocese, ela exerce o papel de catalizadora da santidade de todos os batizados,  inclusive pastores e ministros. Presidindo a Igreja em um lugar, o bispo diocesano protegerá e promoverá esse dom. Isso ajudará a revigorar a santidade do povo de quem ele tem o encargo pastoral. Será solícito em fazer com que seja conhecida e apreciada a vida consagrada  junto aos fiéis e ao clero. Ressaltará a importância  dos institutos de vida consagrada presentes em sua diocese. Fará de sorte que as obras desses institutos sejam colocadas  a serviço  do crescimento dos fiéis.  Por isso, um “diálogo cordial e aberto” entre o bispo diocesano e os superiores dos institutos de vida consagrada será a garantia de uma boa inserção  na diocese e de colaboração fecunda a serviço do Evangelho.

Considerações

• A diocese, a Igreja que está em um lugar, presidida pelo bispo só tem a ganhar com a presença estimulada, vigorosa, clara e expressiva de homens e mulheres límpidos, chamados religiosos;

• Desde sempre a Igreja se tornou mais rica com os carismas dos religiosos e das religiosas, pessoas  para as quais Deus basta;

• Sua sadia distância do poder, do dinheiro, do protagonismo e da tirania da eficiência faz dos religiosos seres simples que embelezam uma diocese e sejam profetas de um mundo que está para vir;

• Entre todos os carismas acolhidos pela Igreja parece importante que a vida dos contemplativos, nesse mundo de correria, superficialidade e ruídos é importante para dar vigor à Igreja diocesana.

Questionamento:

1. Até que ponto, nós religiosos, sentimos que estamos revigorando a Igreja local?

2. Até que ponto os bispos estão, de fato,  clamando por uma presença dos religiosos em suas dioceses?

Frei Almir Ribeiro Guimarães

III. CRÔNICA

Esses homens todos por aí…

 

Gostaria de convidá-los a percorrem comigo uma  galeria de homens, a maioria deles seres comuns. São histórias  de homens escritas no dia a dia. São histórias que  foram chegando aos meus ouvidos.  São flashs da vida. São esses homens todos  por aí…

 

1. Pedro Ernesto era um moço tranquilo que vivia nas Minas Gerais. Pacato, foi percorrendo as trilhas dos estudos normais da vida. Faz parte da vida de todo mundo o estudar. Estudou, sem muita garra, mais estudou. Terminada a faculdade de engenharia civil, conseguiu uma bolsa de especialização em estruturas de concreto na cidade de Milão. Estudou, namorou, passeou, quase casou, sem muitos recursos, mas dando para viver. Acabou gostando dos costumes e da vida da cidade milanesa. Foi vivendo, sem lenço, sem documento, sem projeto.  Um dia voltou a Brasil e começou a namorar uma moça de  Belo Horizonte.  Namorar, “ficar”, não casar, levar as coisas sem muita responsabilidade. Ele vivia em sua casa de solteiro e ela, na casa de seus pais. De repente, Pedro Ernesto aprendeu a fazer tatuagens. Um engenheiro sem vocação se tornou um tatuador. Aparece uma oportunidade e lá vai ele, sozinho, morar em Chicago e ganhar o dinheiro fazendo tatuagens nos corpos dos americanos… Os anos passam… ele, por sua vez, no seu modo dizer… “não esquentou”.  Foi vivendo sem projeto. Vivendo por viver…  Os anos foram passando e ele arranja uma nova namorada, uma brasileira que vivia em Chicago.  A namorada do Brasil parece que conta com ele. Eles se falam por MSN e não sei que mais. Encontrei o moço  num voo nacional. Ele chegava dos Estados Unidos  para visitar o pai doente… na capital de Minas. Disse que não tinha nenhum interesse em continuar com a moça de BH. Aliás, segundo ele, precisava  se vestir de coragem para agora, na oportunidade desta viagem, acabar o romance com ela… a de BH. Ele deve muito imaginar que ela  tivesse outras aventuras enquanto ele ficava tatuando os americanos e praticamente vivendo maritalmente com a moça de lá. Não vai casar-se. Não quer filhos. Pedro Ernesto estava completando naquela semana de nosso encontro 36 anos de vida.  Depois de tomar conhecimento de uma parte da biografia desse tatuado e tatuador me fiz perguntas: Que projeto de vida tem esse rapaz? Não se casando, não criando vínculos com ninguém, como será sua vida?  Poderá ele viver de fato um amor no tempo da vida que vai passando?  Ele ainda pode aprender a amar? Será que as mulheres, as duas, o amam de verdade? Qualquer hora dessas, ele volta aos Estados Unidos sem projeto, sem documentos e sem sentido de viver.

2. Imaginemos que o rapaz que aparece no segundo quadro da galeria se chame  Renato.  A cena se passou num voo entre Rio e São Paulo. Ocupava eu um assento do corredor.  Necessito esticar as pernas e sempre busco o assento do corredor.  Dois jovens com laptops e celulares se assentaram no meio e junto da janela… não minha fileira de assentos… Falaram o tempo todo.  Não tinham  mais do que trinta anos. Um falava e o outro escutava. Escutava e escrevia.  Nitidamente conversavam a respeito de negócios. Pensei que estivessem fazendo um relatório de uma reunião… Ou sei, depois de vinte e tantos minutos de viagem, fazer uma observação, na hora em que a aeromoça nos ofereceu suco de laranja e aqueles biscoitos sem graça… goiabinha: “Que bom! Vocês já fizeram.. o relatório da reunião…”.  Não… hoje é meu último dia de Brasil. Amanha viajo para a China onde vou ficar um ano ao menos.  Trabalhamos numa multinacional de recursos humanos.  Nossa firma seleciona as melhores vocações no mundo inteiro… Estou passando informações para este  meu colega que vai me substituir. Amanhã, a essa hora estarei voando para a China.  Renato era catarinense de Blumenau… sabia o que queria… e muito bem… não era hora de namorar nem de casar… era hora de colocar as bases profissionais da vida.  Fiquei impressionado com seriedade de Renato alertando para as qualidades e defeitos dos clientes que ele passava agora para o seu colega.  Esse blumenauense vai vencer na vida… Não sei se ele era católico ou luterano, se sua família havia colaborado na construção da Matriz de São Paulo, construída pelo nosso Frei Brás Reuter… Pode até ser… Mas ele sabia o que queria…  Teria gostado que Pedro Ernesto tivesse ouvido sua história.

3. Vamos agora para o terceiro quadro de nossa galeria de homens.  Não fiquem chocados com a descrição.  A cena se passou durante a viagem de um coletivo entre o Center Norte de São Paulo e  a estação Belém do metrô.  Pouca gente no interior do ônibus. Cobrador e motorista  conversavam em alta voz… Nem me lembro do que falavam. Sei que gritavam. O cobrador era mais falante e exuberante.  Imagino um homem casado de seus quarenta e cinco anos, vestido com extrema simplicidade, cabelo liso penteado para trás. Uniforme limpo e bem passado. Obra de sua mulher.  De repente, ele disse: “Piloto, será que as meninas vão estar lá na esquina?  É nessa ou não outra?” O motorista afirmou que já as via encostadas na parede, com suas saias de napa e as pernas  grossas de fora… O cobrador pulou de mesa/catraca… fez uma cara de homem mais novo e, colocado à janela, jogou  beijos para as meninas. E,  de repente, antes de voltar para o seu posto, olhou para mim e tentou justificar seu gesto:  “ Pois é, são prostitutas!” Vocês bem podem imaginar que ele tenha empregado outro termo.  “São prostitutas… eu também sou prostituto”,  Chegamos à estação Belém e o cobrador e motorista foram tomar um café  num dos bares do terminal rodoviário… e devem ter falado das meninas que estavam por ali com saias de napa.  Imagino  (quanta fantasia)  que à tardinha, a mulher do dito cobrador,  tenha dito para ele:  “Marido, hoje é dia de reunião dos pais do catecismo da Margarete… nós temos que ir…”. Será que ele vai?  São esses homens que andam por aí… Se ele for à reunião vai ouvir falar de casamento, de beleza do casamento, de missa dominical…

4. Quarto e último quadro de nossa galeria de homens.  De quando em vez, a Prefeitura de São Paulo  realiza trabalhos trocando as galerias de águas pluviais.  Ali, perto do Parque da Luz,  havia umas boas dezenas de manilhas grandes empilhadas para depois serem enterradas.  O local estava até limpo. Apenas as grandes manilhas encostadas verticalmente na cerca do Parque da Luz… Dentro do pequeno cercado de proteção às manilhas estava um desses mendigos pobres, talvez antigo morador da Cracolândia… Fiquei na calçada do lado oposto. Ele tirou a camisa e com o auxílio de uma latinha de água que tirava de um tonel  começou a se lavar a cara, as axilas, a cabeça, os pés… enxugou-se num trapo imundo… Enquanto fazia o asseio cantarolava… Não sei o quê…. O tempo todo tinha uma pontinha de cigarro no canto da boca… Aliás, esses homens vivem catando guimbas…  Deu umas mastigadas em alguma coisa que imaginei ser pedaços de pão duro… e depois foi deitar-se no interior manilha… Era sua casa… Não tinha cara de desespero. De onde ele tinha vindo?  Será que tivera mulher, filhos, casa, roupa lavada,  requeijão no café da manhã, um quarto com lençóis  e cobertores… No momento, seu quarto e sua cama era uma das manilhas que estavam junto da cerca do Parque da Luz…. Um outro dia passei por lá. As manilhas tinham sido enterradas e o homem…sumiu.

Tenho ainda muitos outros retratos que estou terminando de aprontar… mas os quadros que podem ser visitados são  esses… quadros de alguns desses  homens que andam por aí….

Frei Almir Ribeiro Guimarães

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI?

Riquezas escondidas na família

 

Os bispos franceses, preocupados com as delicadas transformações da família nos tempos hodiernos,  formularam perguntas e questionamentos a peritos ligados à área da sociedade e da família.  Monique Baujard, diretora do Serviço Nacional Família e Sociedade dos bispos franceses apresentou uma síntese das respostas sob o título “Les familles, miroir de la société”.  Nesta nossa rubrica sobre a família, inspiramo-nos nestas conclusões. Temos em mãos versão italiana do documento (Il Regno – Documenti I/2012).  Apoiamo-nos no texto fazendo aqui e ali  um acréscimo ou  um resumo.  Fixamo-nos mais naquelas riquezas  humanas e sociais que estão escondidas na família.

 

• Quando pensamos em família temos a tentação de dizer que ali as coisas andam mal e mesmo muito mal. Boa parte da problemática de nossa sociedade, é sabido, tem sua origem nas falhas e deficiências de nossas famílias. A Igreja lamenta que a família não consiga exercer sua missão de educadora da fé. Nunca, porém, queremos “canonizar” a família de ontem como aquela que correspondia a todas as exigências do ser humano. Leda ilusão. Quantas imposições e quanto sofrimento! Certo é, no entanto, que muitas revoltas, manifestações de violência, falta de solidariedade na sociedade têm sua origem em famílias precárias. Apesar de todas as manifestações de sua fragilidade continuamos a acreditar na família e a esperar que por ela, sobretudo por uma família construída sobre a rocha, a humanidade possa conhecer um novo futuro. Acreditamos numa família nova que possa surgir das cinzas de certas famílias que foram para muitos  verdadeiras camisas de força. Há muitas riquezas escondidas nas famílias. E somos convidados a criar famílias novas.

• Nem tudo vai tão mal na família. Apesar de suas fissuras, a família continua digna de crédito. Primeiramente, deve-se afirmar que na família as coisas se aprendem e  se apreendem por osmose. São colocados mil gestos e ditas tantas palavras aparentemente insignificantes. Coisas importantes, no entanto, se realizam no cotidiano, precisamente no cotidiano.  As riquezas escondidas na família aparecem de modo especial quando  pessoas não tiveram família…  Sente-se saudade de suas  riquezas…

• Há esse cotidiano feito de tantas pequenas coisas, nesses espaços entre o quarto e sala, a cozinha e a área, entre a cama dos pais numa manhã de domingo  e o café solene  desse dia em que todos estão em casa. A família se solda ou se solidifica entre a verificação da temperatura do filho mais velho e uma pilha de roupa que se tem que passar, entre  uma lágrima por causa do avô que morreu e alegria dos primeiros passos que dá a peralta Gabriela.  Esses fatos negativos e positivos apontam para a grandeza e as riquezas da  família.

• Ela é, antes de tudo, criadora de laços e de liames. Há os laços conjugais, os laços parentais e os laços fraternos.  Cada um vivendo seu “papel”  constrói a identidade de cada um.  O individuo sozinho é triste, frágil, precário. Os laços, evidentemente podem ser, algumas vezes, coercitivos, mas libertam da angústia.  Quando existe família em sentido amplo  há os laços com os avós, primos e primas, tios e tias.  Tudo isso se  constitui como um percurso de reconhecimento da pessoa. Cada um, assim,  se torna compreensível a si mesmo.

• Quando as coisas vão bem, a família oferece lugar a cada um para amar e ser amado. Cada um é reconhecido pelo que ele é. O valor de cada um independe de critérios econômicos e sociais. Tudo se reveste de gratuidade, sem  distinções.  A família é um lugar onde cada um pode regenerar-se, curar as próprias feridas, encontrar conforto. É lugar de resiliência. Ela fica sendo o primeiro lugar de solidariedade.  É para a família que as pessoas se voltam quando lhes acontece alguma desventura ou desgraça. Parece ser ela a única instância para a qual alguém se volta para conseguir uma ajuda sob medida, ou seja, a ajuda de  que se necessita.

• A solidariedade diante de acontecimentos excepcionais da vida se aprende em família,  na partilha do cotidiano. Ela é uma escola de vida coletiva, ensina a que se preste atenção no outro, a partilhar alegrias e sofrimentos. Da mesma maneira ficamos felizes em podermos partilhar em família os acontecimentos prazerosos e felizes. A família é lugar de  festa.  As celebrações e os ritos familiares  introduzem os filhos numa cultura  e  numa religião… Ali uns e outros se comprazem em aprender a música que os avós italianos cantavam e a fazer as receitas que as avós alemães trouxeram de suas aldeias.  Ali se  ouvem as histórias do tempo da guerra.

• A existência de famílias com tais características  faz com que os filhos possam se tornar adultos  capazes de ter em mãos os fios de sua história e a travarem relacionamentos sadios com as pessoas que os circundam.

• Pode-se dizer que os filhos que crescem no seio de uma família de discípulos de Cristo mais facilmente poderão colocar-se diante do chamado do Senhor para o seu seguimento.  Não se trata apenas de  nascer e viver no seio de uma família de ritos religiosos, de leis, mas  num clima onde juntamente com o amor do pais passa também a seiva do Evangelho. Talvez seja a família o espaço fundamental para a primeira experiência de Deus. Através desses múltiplos laços, a família  acumula energia para durar.

• Ela se desenvolve e se desdobra através do tempo e para tanto ela requer dos seus membros  uma criatividade no amor. Casamento e família não suportam a repetição monótona. Clamam pela criatividade. O amor, com efeito, é criativo.  Por isso, todos estamos convencidos de que o casamento vive em estado de constante construção. Certamente, a vida familiar não é como um rio que corre tranquilamente, mas pode conhecer momentos de felicidade intensa para o que trabalham pela sua continuidade.

• Desta forma, a família pode  proporcionar a estabilidade que cada um necessita. Ela parece ser  (ou pode ser) o único lugar estável num mundo instável, num mundo que cada vez mais fabrica indigência.  Num mundo mercantilizado, em que tudo é interesse financeiro a família é o único ponto estável no qual os pobres podem se apoiar. A estabilidade familiar corresponde a uma aspiração profunda do homem. Segundo alguns não serão motivações religiosas ou morais que estimularão os genitores a trabalhar  pela estabilidade, mas somente o bem estar dos filhos.

• A Igreja, em alto e bom som, reafirma o ideal de um casamento de amor, indissolúvel e vivido na fidelidade. Talvez a Igreja seja hoje a única instituição a promover este ideal,  a única instituição a promover o casal homem/mulher e a oferecer uma resposta à sede de absoluto que está presente no coração dos jovens enamorados.  Os homens políticos não acreditam mais nesse ideal.  Talvez, até mesmo por motivos eleitorais, não querem se aventurar nesse terreno. A Igreja e as famílias cristãs precisam manter em pé o  ideal cristão.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

Quem tem “chispas” de vocação franciscana?

 

Quando falamos em vocação estamos diante do mistério. Precisamos tirar as sandálias dos pés.  Na página em que contemplamos  um certo Francisco de Assis,   queremos elencar alguns sinais que mostrariam a alguém que ele pode ter vocação para ser franciscano ou franciscana. Seriam umas “chispas”…  A brilhar no caminho. Quem, eventualmente, poderia seguir esse caminho? 

 

1. Pessoas normais, não exaltadas, que vivem a vida de todos os dias, com gosto,  mas com uma pontinha de santa insatisfação. Pessoas que têm um pé na terra e o outro querendo atingir as estrelas.  Pessoas normais, sinceras, sem duplicidade, capazes de se deixarem instruir por outros mais sábios e mais prudentes.

2. Pessoas que, devido a situações pessoais e a circunstâncias próprias foram levadas a fazer uma experiência de proximidade com Jesus: por ocasião de um sucesso ou de um fracasso na vida; de uma profunda experiência de abandono; num desejo incontido de generosidade (desejo de dar tudo) etc.  No meio de tudo isso, tais pessoas sentem ressoar dentro delas convites ao seguimento do Senhor.  Sentem um apelo que vem de fora.

3. Os que se apresentam em nossas fraternidades franciscanas seculares ou de vida consagrada são pessoas desejosas de experimentar a fraternidade. Estão embebidas das passagens dos evangelhos que falam do amor pelo irmão, pela vida fraterna como sacramento do reino: viver com…, sonhar com… ajudar as pessoas a sobreviverem.

4. Pessoas que se sentem convocadas as se desvencilharem de coisas e de bens, sobretudo de si mesmas. Querem aprender a conviver com aquele que sendo rico se tornou pobre e servo de todos. Deixaram-se tocar pela kenosis de Jesus.

5. Pessoas que, como Francisco, desejam se fazer próximas das pessoas:  conviver com  os que precisam de convivência, ir de lugar em lugar dizer que o Amor precisa ser amado,  estabelecer o diálogo neste mundo de compartimentalizações e fechamentos.  São pessoas que não existem para viver em ninho fechado. Também não querem simplesmente serem instrumentos de organizações frias.

6. Pessoas que não tenham espírito de carreirismo, que não visam promoções nem busca de lucros pessoais, que não assinam nem subscrevem sem pensar  os estatutos da sociedade de consumo. São pessoas livres.

7. Pessoas que hoje reagem contra todo formalismo da fé, que sonham com uma pastoral  feita por etapas, catecumenal,  desejosos de dar sua colaboração  para ações evangelizadoras novas no seio da Igreja.

8. Pessoas que experimentam uma sadia tensão entre contemplação e ação. Como Francisco estão sempre procurando  lugares silenciosos e ermos para se “perderem” em Deus e, ao mesmo tempo,  dizem a quem precisar que podem contar com eles.  Mas não querem ser “ativistas” tontos que sobem e descem, entram e saem. Têm sempre saudade em visitar seu interior.  Assim, irão pelo  mundo mais à maneira de Francisco, transpirando ardor.

9. Pessoas que foram também conhecendo a figura encantadora e bela de Clara de Assis.  Algumas dessas pessoas andaram lendo as cartas de Clara a Inês de Praga  e ficaram encantadas com a mística da contemplação clariana.  Ficaram profundamente impressionadas com as descrições do espelho. Da contemplação de Cristo no espelho: a pobreza,  a humildade, a beleza do esposo pobre. “Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na minha adega, até que a tua esquerda esteja sobre a minha cabeça, tua direita me abrace, toda feliz e me dês o beijo de tua boca” (4Carta a Inês  31-32).

10. Pessoas que sentem que sua vida poderá ser a de “cuidadoras”  dos bens da terra, do verde,  da água, do meio ambiente.  Mas também cuidadoras dos irmãos mais simples, dos que não têm vez nem voz, dos que vivem nas trevas de um mundo louco consumista, materialista, imediatista.  Pessoas cuidadoras da vida, da fragilidade da vida da criança que ainda não nasceu e do velho que precisa morrer com dignidade.

Frei Almir Ribeiro Guimarães