Janeiro 2018
- JANEIRO 2018
- I. PARA COMEÇO DE CONVERSA
- II. LEITURA ESPIRITUAL
- III. PROVÉRBIOS
- IV. TESTEMUNHO
- V. PRECE
JANEIRO 2018
Ano novo, vida nova. Este é o primeiro número de nossa revista eletrônica mensal. Continuamos a tirar coisas novas e velhas do baú de nossas histórias. A vida precisa ser renovada. Temos encontro marcado com os Magos, meditaremos sobre o silêncio e a solidão. Faremos uma visita ao professor/irmão Paulo Machado no Lar de Idosos, refletiremos sobre a serenidade e a bonança depois das tempestades, ficaremos encantados com uma página de despedida da vida escrita por um sacerdote.
Feliz ano novo e boa leitura.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com
I. PARA COMEÇO DE CONVERSA
Os Magos, esses “diferentes”
Eis que alguns Magos do Oriente chegaram a Jerusalém (Mt 2, 1).
Eles são chamados de Magos.
Esses personagens circulam dentro de nós junto com as lembranças de nossa infância.
Em nosso interior temos bem presente a festa do reis, o dia em que o pai tirava esses nobres senhores de uma grande caixa de papelão e os colocava perto da manjedoura do frágil Menino.
Depois de muitos percalços chegaram à casa do Menino.
A festa era sempre a 6 de janeiro.
As Escrituras dizem que chegam ao presépio numa triunfante caravana de camelos.
Ficamos sabendo que eles eram três e que também eram reis.
Nossa imaginação chegou mesmo a dizer seus nomes: Melchior, Gaspar e Baltazar.
O evangelho de Mateus, o único a falar de sua chegada, diz simplesmente: os Magos, sem a preocupação de pintar seu retrato.
Nunca saberemos de fato exatamente quem eles eram.
Na verdade eles são a irrupção do estranho.
Não é cômodo “classificar” as pessoas, em que “gavetas” ou “escaninhos” coloca-las quando elas começam a se manifestar a nós.
Os estranhos costumam nos desarrumar.
São diferentes.
Incomodam a todo mundo.
Herodes, os escribas e toda Jerusalém mostram perturbação.
No fundo parece que é o próprio Deus que está por detrás desse enigma.
Será que quer nos incomodar?
Eles chegam do Oriente.
O que pode vir de bom do leste?
São impelidos pelo frio do leste.
A guerra fria, os goulags, os silêncios gelados.
Todos esses estrangeiros que chegam do Oriente em nossos dias…
Não andam incomodando os ocidentais?
Os trabalhadores que migram
as guerras do Oriente Médio
os refugiados do Extremo Oriente.
Também é no oriente que chega o dia.
O sol nasce no leste.
Talvez que vindo do Oriente esses Magos estão como que a nos convidar a penetrar no futuro, no amanhã.
Lá, no Oriente, levantaram os olhos e viram uma estrela.
Que temos nós a ver com esses seguidores de estrelas, nariz para o ar e sonhadores loucos?
Como poderemos seguir o curso das estrelas quando precisamos acompanhar as oscilações do dólar, do aço, seguir a moda, o progresso e estar a par de todas as novidades?
Não temos tempo para perscrutar os céus e os astros…
E se esses Magos fossem a diferença que faz irrupção em nossa vida cotidiana, nesse dia após dia sem que tenhamos tempo para levantar a cabeça e ver as estrelas?
Eles viram uma estrela se levantar e, por sua vez, se levantaram.
A estrela os encheu de alegria.
Diante de nós esses “diferentes”.
São caminheiros rumo a uma Jerusalém assentada, tranquila, acabada, terminada.
São nômades num mundo de coisas instaladas.
São sentinelas atentas numa sociedade adormecida.
Constituem alegria para um mundo triste.
Os Magos chegam a Jerusalém com uma pergunta:
“Onde está o rei que acaba de nascer?”
Que importância damos a questões, nós que temos respostas para tudo e para todos?
Nós que sabemos tudo…
Os Magos chegam à cidade como quem vem para lançar uma bomba.
Herodes bem se dá conta disto.
Chegam ao mais secreto de cada um de nós para nos questionar.
Fazem perguntas.
São diferentes.
São o outro.
Texto inspirado em: Les Différents
Revista Prier, jan-fev 1984, p. 25
II. LEITURA ESPIRITUAL
Silêncio e Solidão
Não podemos descuidar. Precisamos ouvir as batidas do coração e por detrás delas os passos de Deus. Andaremos no encalço do silêncio e cultivaremos uma solidão habitada.
Pensamentos de abertura
Não há música sem silêncio.
Não há palavras sem silêncio.
Não há encontro sem silêncio.
Não há liturgia sem silêncio.
Não há amizade sem silêncio.
Não há respeito sem silêncio.
Ángel Moreno
É na essência mais íntima da alma, na última centelha da razão, que o nascimento de Deus acontece. No que a alma pode oferecer de mais puro, de mais nobre e de mais delicado, é aí que deve acontecer: naquele profundo silêncio onde jamais chegou qualquer criatura nem qualquer imagem.
Master Echart
É na essência mais íntima da alma, na última centelha da razão, que o nascimento de Deus acontece. No que a alma pode oferecer de mais puro, de mais nobre e de mais delicado, é aí que deve acontecer: naquele profundo silêncio onde jamais chegou qualquer criatura nem qualquer imagem.
Master Echart
⇒ Em nossa vida de todos os dias, em nossa vida de “gente”, de ser humano, de modo particular em nosso desejo viver uma vida espiritual, evangélica, impregnada da verdade e da fecundidade é urgente fugir de toda superficialidade. Necessitamos fazer um empenho de interiorização, realizar uma viagem ao fundo de nós mesmos. Viagem ao nosso mistério pessoal lá onde pode se manifestar o Mistério, o Ausente que pode se fazer presente.
⇒ “Precisamos reconhecer humildemente: lançamo-nos afoitamente nos braços da cultura virtual. O mundo pós-moderno exige que estejamos permanentemente conectados a tudo, ao que serve e ao que não serve. Nesse mundo das redes não é o conteúdo que interessa. As mensagens, as mais das vezes, são insignificantes e sem importância alguma. O que importa, por assim dizer, o dogma é simplesmente estar em contato. Não se pensa numa verdadeira comunicação. O que é importante é que cada um não tenha que confrontar-se com a própria solidão. Nada mais aterrador do que esse solipsismo coletivo permanente” (Simon Pedro Arnold, OSB).
⇒ “O homem moderno acha difícil estar só: ir em busca dos fundamentos do seu próprio eu é quase impossível para ele. E quando alguma vez permanece consigo mesmo no cantinho silencioso, e estiver quase chegando ao conhecimento de Deus, ele liga o rádio ou a televisão” (Thomas Merton).
⇒ Entrar em si mesmo significa concentrar esforços para que não sejamos levados a nos derramar nas coisas. Entrar em si mesmo é ingressar no silêncio e na solidão. Tarefa difícil porque estamos envoltos em toda sorte de ruídos, no contato com os outros e com as coisas à nossa volta. Silêncio e solidão são essenciais para que possamos colocar ordem em nosso interior. Estas duas dimensões têm um grande poder de simplificação, de redução ao essencial, de clarificação, de concentração. Não podemos ser autômatos nesse mundo.
⇒ Fala-se de uma solidão habitada, que não seja fuga. Ela nos ajuda a viver a própria vida, quando as circunstâncias nos distanciam de nosso ser mais íntimo. A solidão/silêncio permite que nos construamos a partir de dentro. A partir dela o homem vai crescendo em maturidade, definindo o que quer ser diante de Deus, como vai situar-se diante do mundo. A solidão mais profunda faz com que possamos nos recriar interiormente. Permite encontrar a Graça dentro de nós.
⇒ “Educar-se para o silêncio significa organizar a jornada de tal forma que façamos calar o estrépito à nossa volta e as vozes das preocupações para usufruir de momentos de aquietação quando nos exercitaremos na escuta das vozes interiores, sobretudo a voz de Deus. Nesses e desses momentos nasce a disposição para o diálogo da oração onde vamos nos encontrar com o silêncio de Deus e sua palavra. Convém programar tempos mais ampliados que a tradição codificou como tempos de retiro espiritual, mais ou menos prolongados. Não se pode perder esta tradição, renovando-a convenientemente em sua prática, não perdendo seu significado profundo e sua função purificadora” (Giuseppe Betori, arcebispo de Florença, 23 de abril de 2011, sábado santo).
⇒ Enzo Bianchi dirige uma palavra a um fictício consulente: “Diminuindo um pouco a corrida frenética, procurando permanecer sentado em teu quarto, sem nada fazer, ficando simplesmente presente a ti mesmo, deixando vir à tona emoções que se sedimentam em ti, isto te ajudará a reencontrar a unidade, a nomear as reações interiores confusas que se agitam dentro de ti. Haverás de entrar numa pacificação e numa unificação interiores. Dali sairás renovado e disponível para os relacionamentos cotidianos” (Enzo Bianchi, Panorama, octobre 2004).
⇒ Há em nós um lugar todo especial tecido de silêncio. Vale a pena refletir sobre esta profunda página de Anselm Grün: “Em cada um de nós existe um lugarzinho onde o silêncio é completo, um lugar livre do ruído dos pensamentos, livre das preocupações e desejos. É um lugar em que nós mesmos nos encontramos inteiramente em nós. Esse lugar que não é perturbado por nenhum pensamento, é para Eckart o que existe de mais precioso no homem, o ponto em que o verdadeiro encontro entre Deus e o homem pode ocorrer. A este lugar precisamos avançar. Não temos necessidade de criá-lo, ele já existe, apenas está obstruído por nossos pensamentos e preocupações. Quando desobstruímos em nós esse lugar de silêncio poderemos encontrar a Deus como ele é. Então, não nos fixamos em nós e em nossos pensamentos, mas nos desvinculamos de tudo, deixamo-nos cair no mistério de Deus que nos sustenta. Então não prescrevemos a Deus como ele tem que vir ao nosso encontro, mas nos abrimos para sua vinda assim como ele a imaginou. Mesmo depois de havermos desobstruído em nós esse lugar do silêncio, não podemos forçar a experiência de Deus. Também aqui não podemos sentir senão o vazio e a escuridão. Mas, então, estaremos abertos à sua chegada, sem que estejamos curiosos e impacientes na expectativa de uma experiência de Deus” (Anselm Grün, A exigências do silêncio, Vozes, p. 82-83).
Concluindo
O silêncio é paz, é beleza, é calma.
O silêncio é escuta, esvaziamento,
acolhida, abertura.
O silêncio não se vê, se ouve.
O silêncio se sente e causa surpresa.
O silêncio abraça e faz estremecer.
O silencio envolve e é fecundo.
Ángel Moreno
III. PROVÉRBIOS
Depois da tempestade vem a bonança
No cotidiano da vida precisamos agir e falar com sabedoria. Muitas vezes chegam à nossa mente provérbios, ditos de sabedoria, que explicam as coisas da vida e nos ajudam a atravessar os inevitáveis precipícios que aparecem diante de nossa aventura existencial.
Nem sempre as coisas acontecem serenamente. Há imprevistos. Acontece o inesperado. Chove no dia casamento, o pai fica seriamente doente. As contas não fecham. Lutamos. Corremos de um lado para o outro. Não há solução a vista. ..quando virá a bonança? Coisas corriqueiras e coisas mais profundas.
O filho mais velho entrou no mundo das drogas. Está ameaçado de morte. As portas precisam ficar bem trancadas. Andam vigiando os passos, as saídas do moço. Há tempestade. O moço resolve ir para uma outra cidade, escondidamente. O tempo passa e ele vai tentando refazer sua vida. Encontra uma moça bonita por dentro e por fora. Casa-se. Coloca filhos no mundo. Um dia volta à casa, à cidade da mãe. Festa e alegria. Fotografia, bolo, música. Depois da tempestade vem a bonança. Quando a festa acaba a mãe pensa e diz: depois da tempestade vem a bonança.
A cena se passa num aeroporto. Um rapazinho e uma moça voltam de uma viagem. São dois irmãos. Num tempo de guerras perderam o pai e a mãe. Soldados vieram acordar a família, drogados ou embriagados, mataram o pai e a mãe… Os filhos foram recolhidos pela assistência pública levados de seca a meca, de um lado para o outro. Um casal sem filhos resolve adotá-los. Fazem deles seus filhos. Filhos de verdade. Os dois agora voltam de uma viagem a Roma organizada pela faculdade onde estudam. Depois da tempestade vem a bonança.
Loucuras em cima de loucuras. O homem tinha perdido o norte. Trabalhava, bebia, saía, ficava no bar, sempre sem saber o que fazer da vida. Um dia lembrou-se das parábolas de Jesus, das coisas que vivia em casa, do sorriso dos irmãos… tudo que havia abandonado. Tudo, mas tudo mesmo. Um dia entrou numa igreja silenciosa. Ficou no primeiro banco. Lembrou-se do tempo em que ele se vestia de alegria interior. Chorou baixinho e disse a si mesmo que ia mudar. E mudou. Procurou um sacerdote. Encontrou um homem de Deus. E a vida mudou. Depois da tempestade bem a bonança… Esperar, ter calma, buscar a serenidade e entrever a chegada da bonança.
IV. TESTEMUNHO
Paulo Machado, um Leigo Franciscano
Felizes os que perseveram até o fim. São esperados para o banquete da vida!
Em Petrópolis as pessoas o conhecem como professor Paulo Machado. Os franciscanos seculares simplesmente o chamam de Irmão Paulo. Paulo Machado da Costa e Silva completou 100 anos em 17 de maio 2017. Professor, advogado, casado, viúvo há muitos anos, pai de filhos e avô de netos, cristão desde criança, carinhoso amigo da Mãe de Jesus, franciscano até as vísceras. Numa quinta-feira antes do Natal de 2017, pela manhã, acompanhei dois irmãos franciscanos seculares da Fraternidade do Sagrado Coração de Jesus para fazer-lhe uma visita. Paulo não mora mais no centro de Petrópolis, mas no próspero distrito de Itaipava, lugar de comércio sofisticado, de pousadas para gente graúda e restaurantes requintados com um monte de estrelas. O irmão Paulo mora num lar de idosos. Tem um pequeno e bem cuidado apartamento. Quarto e banheiro. Lar, casa de idosos… Espalhados pelo pátio estão eles, esses homens e mulheres com o olhar perdido no vazio, sentados em cadeiras de rodas, tendo à mão um copo de água ou de suco com um canudinho. Todos muito idosos. Lar… esses lares por melhor que sejam são sempre espaços que causam impacto e que mexem com nosso interior. Vidas viçosas agora são plantas que fenecem…
Paulo está muito fragilizado. Pudera… mais de cem anos. Agora precisa de cuidadores. Quando chegamos, encontramo-lo sentado numa poltrona reclinável. Cabelinho branco bem cuidado e penteado. Camisa azulada de mangas longas. Calça escura e pantufas cinzentas nos pés. A claridade forte ofusca-lhe as vistas. Um curativo num lado do rosto. Uma vista com olhos brilhantes e arregalados. O outro olho com as pálpebras caídas e seriamente prejudicado.
Acolhida. Reconhecimento por parte de Paulo dos visitantes. Arrumam-se as cadeiras. Começamos a conversa. Nenhuma queixa. De nada e de ninguém. Nem da vida, nem da doença, nem da velhice. Tentamos colocar em dia os assuntos. Falamos da beleza de Petrópolis no tempo do Natal com praças e prédios feericamente iluminados. Novidades da família do irmão e coisas da rotina daquela casa.
Propus a administrar-lhe uma vez mais o sacramento da unção. Era uma maneira de rezarmos juntos, de tocar no assunto do término da vida envoltos todos numa atmosfera de fé e num clima de esperança. Um sacramento dos vivos para vivos. Paulo acompanhou tudo atento, respondendo o ritual e acolhendo a unção com semblante de profunda paz e doce alegria. No final apertou-me fortemente as mãos. Emoção? Gratidão?
Na conversa lembramos que esse encontro se dava no tempo do Natal. De repente Paulo começou a falar. Parece que alguma coisa o impulsionava a falar do tema da acolhida do outro, da hospitalidade. Deixamos que ele falasse. Era como se estivesse ditando um testamento. Pena que não tenhamos gravado. Transcrevo o que posso me lembrar. Espero não falsear.
“Esse tempo é muito importante. Tempo do menino do presépio. Apesar de todas as dificuldades, mesmo pessoas que não têm fé explícita ou não praticam parece que se tornam melhores. A atmosfera do Natal arredonda as arestas e o lado bom das pessoas parece vir à tona. As pessoas se aceitam melhor. Tudo leva a crer que o fundamental em nossos tempos é que aceitemos as pessoas como elas são. Não podemos querer que pensem como nós, que queiram as coisas que nós queremos. Temos que respeitar as diferenças”.
Paulo repetiu essa ideia algumas vezes. Lembrei-me de todo o nosso empenho, empenho das pessoas retas que querem o diálogo entre as pessoas, entre os comandos criminosos e os que sofrem, entre as religiões para que haja entendimento, sempre acolhimento das diferenças. Lembrei-me dos pobres da África, dos “diferentes” que buscam a Europa ou dos venezuelanos que passam para o Brasil. Respeitando a verdade, mas achegando-se aos outros como eles são. Lembrei-me do espírito de Assis, dos encontros que se realizam periodicamente na cidade de Francisco unindo religiões diferentes.
Esta tentativa de acolhimento do diferente precisa fazer com que se interrompa a violência terrorista que nos faz viver um clima de pavor. Aquele homem de mais cem anos nesse momento não falava de devoções, de feitos de sua vida, mas exprimia um anseio de alguém que fazia um resumo do resumo: na diversidade construir uma unidade. Respeito ao ser humano. O Menino do Natal é que ensina tudo isso. Era o tema da solidariedade que aflorava nos lábios do professor.
Num determinado momento Paulo dizia que nunca se pode falar mal do outro, que é irmão. Insistiu no fato. Frisava que mesmo que o outro estivesse errado e fosse faltoso não se deveria falar mal. Repetiu-se. Tudo nos levou a crer que seu testamento era na linha do carinho fraterno e respeitoso. Lembrei de palavras e textos de São Francisco: “E não blasfemem contra ninguém; não murmurem, não difamem os outros, porque foi escrito: Os murmuradores e difamadores são odiáveis aos olhos de Deus. E sejam modestos mostrando toda mansidão para com todos os homens, não julguem, não condenem. E como diz o Senhor não considerem os mínimos pecados dos outros, meditem muito mais sobre os próprios na amargura de sua alma” (Regra não Bulada, XI).
Paulo insistia: “Haveremos sempre de considerar o outro superior a nós. Não sou mais importante do que ninguém. Essa vontade de dominar e de ser superior é que leva à discórdia. Não esquecer que o outro é para mim um espelho. Ele me revela quem eu sou”
Não fez prelação sobre páginas dos evangelhos nem sobre tópicos da Regra da Ordem Franciscana Secular.
Deixamos o irmão Paulo um pouco antes do almoço. A cuidadora haveria de cuidar do almoço. Entrou no quarto e colocou um copo com suco de laranja na geladeira.
Com mais de cem anos ainda viçoso por dentro. Um santo aguardando que lhe seja aberta a porta do grande salão da Vida.
V. PRECE
Uma tocante despedida
O sacerdote, autor deste texto, havia tido sérios problemas cardíacos. Era safenado. Chamava-se Jean-Pierre Derrien. Viveu muito tempo depois da cirurgia sempre exercendo o ministério de pastor. Durante seus dias de vida escreveu umas linhas de despedida que constituem um poema de partida. Estas linhas foram lidas por um de seus familiares no momento de seu sepultamento.
Agradeço a todos, os membros de minha família, a meus amigos que descortinaram aos meus olhos horizontes insuspeitados.
Muito obrigado pela amizade, pelo amor de vocês tão fiel ao longo dos meus anos de vida.
Obrigado pelos filhos de vocês que constituem minha juventude e minha alegria.
Grato por nossos encontros e nossas festas, que foram antecipações do mundo novo que esperamos.
Obrigado pela lágrimas e pelos momentos de aflição que, nos dias maus, juntos vivemos.
Agradeço nossas revoltas diante de tantas injustiças que presenciamos e também pela atenção sempre renovada que tivemos para com os oprimidos e pequenos.
Agradeço a Esperança que, apesar de tudo, esteve enraizada em nossos corações como um pungente grito.
Agradeço tantas eucaristias celebradas em nossas casas.
O Senhor nos deu seu Pão e sua Palavra.
Agradeço os tempos passados em que celebramos o Ausente e ao mesmo tempo tão próximo.
Obrigado pela oportunidade de tantos encontros tão caros.
Às crianças e jovens que não tiveram ainda que encarar a tristeza, as grandes despedidas e partidas, digo:
“Viajei para mais longe que o outono e inverno rumo à primavera.
Em minha mochila, bem no fundo, coloquei tudo o que recebi da vida; na parte de cima, bem ao alcance de minhas mãos, levo para a caminhada os risos e os desenhos de vocês, as cantigas e canções que cantaram.
Parti no meio de campos em flores e povos em festa.
Uma sinfonia de violões e flautas, gaitas-de-foles, saxofones e violoncelos, trombones, oboés e pianos; o acordeão concorrendo com o canto dos pássaros.
No final do caminho quando vi que me esperavam coloquei minha mochila na pousada dos peregrinos.
Sobre a mesa tudo preparado: pão, vinho, verdadeiro banquete.
Aquele que tanto procurava sem saber para onde ele me conduzia tomou o pão e o partiu.
Então meus olhos maravilhados o reconheceram.
Revista Prier, n. 96, p. 23