Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Janeiro 2017

JANEIRO 2017

Com alegria apresentamos a primeira edição de 2017 desta Revista Digital que procura tirar do baú da vida coisas novas e velhas. Rubricas semelhantes às da edição anterior constituem esta nova série. Uma revista de coisas da vida espiritual, pastoral e dos eventos de todos os dias. Tudo sempre com esse desejo de injetar entusiasmo e viço no coração dos leitores, com sabor do Evangelho.

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
fralmir@gmail.com

 

PRECE PARA O ANO NOVO

Senhor, mais uma vez ando à procura de teu coração.
Tenho diante dos olhos uma folhinha de 365  dias que começa a ser desfolhada:  janeiro de 2017.
O bloco está quase intacto.
No começo do ano venho colocar diante de ti o tempo que me dás para viver.
Antes de olhar para adiante, quero agradecer.
Senhor, tua graça e tua força pairaram sobre minha vida.
Obrigado pelas alegrias que me encheram de exultação, pelos braços e corações que me ajudaram a viver e não perder o entusiasmo.
Também pelos desafios e contrariedades que me tornaram mais maduro.
Levanto o olhar para o amanhã e venho te pedir que meu coração seja capaz de inventar gestos  generosos de atenção e de solidariedade.
Dá-me a graça de conviver sincera e lealmente com as pessoas tentando fazer com que o melhor delas venha à tona.
Não quero ser o centro da passarela, não quero e não posso cultivar esse individualismo que me seca por dentro.
Não suporto mais viver em função de mim, sempre de mim, de minhas coisas,  passando por sobre o mais justos e legítimos interesses dos outros,  dos companheiros, dos que pensam diferentemente, dos mais envelhecidos e  dos sem esperança.

Gostaria de estreitar melhor nossos laços de intimidade e de amizade. Não posso e não quero perder o contato com teu semblante.
Preciso, urgentemente,  mergulhar no silêncio contemplativo.
Preciso, mais, do que nunca experimentar  tua proximidade.
Desejo ser instrumento de concórdia e de paz.

Muda o coração dos seres humanos:
que ninguém saia de casa armado até os dentes para matar um semelhante,
que os inocentes que se sentam à mesa de um bar
para um momento de confraternização
não sejam mortos por rajadas de tiros.
Senhor, não suportamos mais a violência.
O ano novo tem que ser um ano de paz:
que os esposos se amem e se perdoem,
que não se odeiem nem se matem,
que o dinheiro público não seja
criminosa e impunemente desviado,
que os mais abandonados e fragilizados
sejam respeitados  quando se dirigem aos hospitais  públicos,
que  os juízes  sejam justos e corajosos,
que  a humanidade não venha a embrutecer-se.
Que teu olhar, Senhor,  acompanhe
nosso mundo  tantas vezes à deriva!

I. PARA COMEÇO DE CONVERSA

E o casal turbulento permaneceu em Brasília

 

Um dia desses, entre o Natal e o Ano Novo, uma emissora radiofônica de alcance nacional noticiava um incidente assaz curioso. Uma aeronave da American Air Lines, que decolara de Guarulhos  e cujo destino era Nova York, teve um pouso não previsto em  Brasília, poucas horas depois da decolagem. Num determinado momento o piloto comunicou, sem oferecer maiores explicações, que estava realizando um pouso de emergência em Brasília, que todos procurassem seus assentos e  afivelassem  o cinto de segurança. Os passageiros não sentiram qualquer tipo de turbulência ou de movimentações bruscas da aeronave. O que estaria acontecendo? Maus pensamentos, mesmo soturnos, atravessaram a cabeça das trezentas pessoas que iriam festejar o réveillon na ilha de Manhattan e adjacências, sobretudo depois da tragédia de Medellín com o avião que levava as estrelas da Chapecoense e outras vidas.  Era hora de pôr as barbas de molho. Uma tragédia podia ser iminente.

O que estava acontecendo? Desde a partida de Guarulhos um casal, um homem e  uma mulher, começaram a discutir  primeiro em voz baixa, depois aos berros. Gritos, elevação do tom de voz, agressões. Tudo começara discretamente. Aos poucos, o sangue foi fervendo e colocava até em perigo a continuação do voo.  As pessoas próximas do dito casal e o pessoal de bordo começaram a ficar preocupados. Dois comissários  tentaram interferir. Pediam calma. Não se tratava apenas de não perturbarem a viagem dos outros passageiros, mas os dois estavam  partindo para  agressão física.  O perigo era generalizado.  Quando um ou dois comissários tentavam  ajeitar as coisas,  recebiam ameaças, quase agressões. Provavelmente o casal  tinha a convicção antiga de um ditado: “Em briga de marido e mulher, estranho não mete a colher”.

Quase nada foi revelado, depois do pouso de emergência. Os passageiros, no meio da noite, tiveram que desembarcar e entrou em ação a polícia. Interrogatórios, depoimentos etc.   A companhia aérea cumpriu o dever de oferecer alojamento e refeições e os passageiros  puderam retomar o voo umas doze horas  depois do entrevero.

Tudo isso fornece material para a imaginação e a fantasia. Muitos podem ter sido os motivos do incidente entre o casal e não convém querer escarafunchar.  Por questão de respeito pelos passageiros, a companhia achou melhor guardar sigilo sobre os motivos da briga  tempestuosa. Também esta foi o comportamento das autoridades policiais.

A vida é um mistério. Quem são os passageiros desse voo? Cada um tem seus motivos de viagem.  A vida de cada um deles é, efetivamente,  um mistério. Há famílias com filhos pequenos, adolescentes ou jovens  que, no caso em questão, iam viver a entrada do  Ano Novo em Nova York.  Quem sabe pessoas que viajavam para fazer delicados tratamentos médicos em clínicas americanas altamente especializadas.  Há  amigos que vão se encontrar com amigos. Há pessoas que vivem depressões e procuram espairecer com uma viagem internacional.  Há também casais que não souberam construir sua conjugalidade, casais que se toleram, embora continuem juntos e que, por coisas pequenas,  perdem o controle.  Experimentam uma sorte de desespero de estar com parceiros ou parceiras indelicados, grossos, egoístas. Mesmo tendo optado por viagem  internacional, imagino de lazer, por causa de uma reflexão meio  “estúpida”  começam a viver  uma turbulência nos espaços aéreos… Uma palavra mal colocada pode ser motivo para o começo de uma guerra de palavras e de fato.

Nem sempre vale o ditado:  “Em briga de  marido e mulher, estranho não mete a colher”.  A turbulência dos corações pode até perturbar o equilíbrio de uma sólida aeronave da American Air Lines!  Nesse caso, estranhos precisam meter a colher.

II. LEITURA ESPIRITUAL

Interioridade

 

Intimidade, interioridade, vida interior. Queremos refletir sobre o que está por detrás dessas palavras. O cultivo da vida interior não se realiza por medo de se viver a ventura da vida no meio do mundo.   Cultivar a interioridade não significa abdicar de enfrentar a realidade. Vida interior não é vida falsa, alienada, mentirosa. Não é fuga. É chegar às raízes, ao núcleo mais íntimo de nós mesmos. Não podemos viver na epiderme das coisas.  Não pode existir cristão sem interioridade. A vida é importante demais para ser malbaratada. Através da vida interior, da imersão em nós mesmos, quem sabe, possamos reencontrar o acesso ao mundo do Mistério nessa nossa cultura instrumentada, fragmentada, cultura de consumo e da banalidade. Trata-se de habitar novamente o interior, nosso interior, cujas porteiras estão arreganhadas para os monstros noturnos e fantasmas inventados a cada dia.

Não inventamos o Mistério. Precisamos, no entanto, tê-lo presente.  Ele nos convoca. Preciso espaço de acolhida e terra de silêncio. Ele está no mais profundo da realidade, também em nós mesmos e no seio de nossas comunidades de fé. Tudo o que existe tem um interior e por isso pode tornar-se diafania de Deus. O Mistério se revela quando ficamos ao tempo ao melhor de nós mesmos.

Urgente lembrar a gratuidade da experiência de Deus, experiência também insuspeitada, irredutível. O Mistério irrompe em nossas vidas.  A experiência de Deus, é verdade, não é algo automático que acontece como consequência de certo nível de interiorização ou interioridade.  Não basta apenas uma vida interior.

A vida espiritual precisa de raízes. Uma autora de espiritualidade  assim se exprime: “A profundidade e velocidade de nossas  sociedades, a quebra de crenças, a hiperestimulação a que estamos submetidos, o ruído, as tecnologias, a competitividade, a precariedade das referências… tudo isso e muito mais acentua o sentimento de falta de raízes. A sociedade líquida no dizer de  Z. Baumann  gera uma sorte de  “náufragos existenciais” que precisam achar solo, casa, paz. A interioridade se converte, neste caso,  em sorte de promessa, e quando bem orientada, em retorno”.

Talvez esse difuso desejo pela religião, pelo espiritual observado em nossos tempos nos fale também da fragilidade na construção de nossas identidades pessoais. Na verdade, interioridade significa também e paralelamente consciência, um eu que se unifica e dá sentido a todas as realidades que nos constitui. A interioridade nos permite explorar um caminho muitas vezes omitido e que os místicos conhecem: nossa verdadeira identidade se descobre e se consolida na referência ao Mistério divino.

Acercarmo-nos do mundo interior  –  mundo do espírito e da alma  –  quando tal acontece de verdade,  abre-nos também à nossa autenticidade  mais genuína no horizonte imenso da Realidade absoluta que tudo abarca.  Em outras palavras, a subjetividade se constrói num movimento para o  interior  que, por sua vez, nos  mostra como seres traspassados por uma Presença luminosa,  por sinais da proximidade do Outro.

“Transcendência e subjetividade convergem para uma dimensão interior que, longe de esgotar-se em si mesma, projeta-se para a realidade  de “estar no mundo de outro modo”. É o estar pessoalmente, existencialmente significativo,  a partir da verdade e do amor, a partir de um decisão e de uma  escolha. Quando o homem está presente em seu interior  tem um modo novo de olhar as coisas e o mundo.  Não há caras, mas rostos que são epifania e chamada. Não há trivialidade, mas transparência  que evoca o Mistério”.

Interioridade pessoal que descobre o interior do mundo.

Quando se entende a interioridade desse modo ela deixa de ser tentação de refúgio prazeroso ou de narcisismo disfarçado em espiritualidade. Coloca a pessoa diante de si mesma e da realidade.  Permite um processo de consistência pessoal, de recuperação da própria identidade,  num simultâneo sair de si e ir adiante, sempre mais adiante.  Não podemos tolerar seres humanos caminhando através dos tempos  impulsionados por não se sabe o quê.  A interioridade bem compreendida nos faz superar o olhar instrumental, para acolher na gratuidade e no encantamento, o que nos é oferecido, o que se coloca diante de nossos olhos e do nosso espírito. Arranca-nos da indiferença. Faz com que sejamos tocados pelo outro e pela gratuidade.

Urgente que surjam homens interiorizados para que o mundo não venha a se perder…

Texto de apoio:
Recuperar el corazón.
La interioridade  como cuestión hoy
Maria José Mariño CM
Revista de Espiritualidad
Abril-Junio  2016, p. 161-187

III. FRANCISCANISMO

Centralidade da experiência da fé

 

Na Regra não bulada, São Francisco retoma as primeiras palavras da pregação de Jesus: “Convertei-vos e crede na Boa Nova”  (Mc 1,15).  Assim se exprime ele: “Perseveremos todos na verdadeira fé e penitência, porque de outra maneira ninguém pode salvar-se” (RNB 23,7). A verdadeira fé leva à Boa Nova.  Fé não se separa de transformação do coração.

O que é essa Boa Nova senão a assombrosa revelação do  Deus amor, altíssimo, transcendente, ao mesmo tempo humilde e “muito  baixo”, abrindo o acesso à plenitude de sua vida e a felicidade ao homem  criado à sua imagem. Francisco proclama a Boa Nova numa confissão  de fé formulada em linguagem de louvor e de lirismo  (todo o capitulo 23 da RNB). Nunca nos cansamos de ler estas páginas de agradecimento e êxtase.

Tal confissão de fé deixa entrever Deus em  sua comunhão trinitária e em suas intervenções no mundo, assim como a incomparável dignidade  da frágil e miserável criatura que é o homem. A experiência da fé, denominada por vezes pelo termo ambíguo de “dimensão contemplativa”, consiste na incessante descoberta desta dupla realidade, Deus e o homem, do vínculo  indissolúvel  entre os dois e do caminho  pelo qual o homem deve comprometer-se pela conversão.

Fé e conversão… Trata-se de uma “descoberta” porque estas realidades não constituem objeto de uma descoberta imediata, empírica.  Precisa ser buscada, porque não se deixa “agarrar”. Será preciso viver uma tal descoberta, em todo lugar, sempre. No cotidiano, partindo sempre dos gestos mais humildes  até as atividades mais elevadas.

Desejar o espírito do Senhor,  deixar lugar para sua ação em nós, orar com um coração puro, ter humildade e paciência nas contrariedades  da vida, amar o inimigo  que não nos ama ( cf. Regra Bulada  10).  É desta forma que se tem o coração voltado para o Senhor,  tarefa primeira que  nos é imposta. Nossa prioridade é crer na Boa Nova, converter-nos em verdadeiros fiéis, o que não realiza uma vez por todas. Estaremos sempre dispostos a tudo recomeçar.

“Conversão e fé participam de um único e mesmo empreendimento.  Converter-se, mudar a orientação da vida, é ter bastante fé para  renunciar a se considerar como centro absoluto e autossuficiente. É apostar nossa vida,  nosso futuro, a busca  da felicidade em Jesus  que nos chama a segui-lo.  Imensa empreitada para o homem!  Converter-se não significa em primeiro lugar passar do vício para a virtude,  mas viver uma mudança radical:  aceitar de não querer fazer a vida por conta própria,  com manifestações de teimosia, mas acolher em Jesus a iniciativa de Deus, a gratuidade de seu amor, de seu chamado e de seus dons. O prioritário não é o homem,  mas o Amor de Deus.

IV. PÉROLAS DOS PADRES DA IGREJA

Mistérios da oração

 

Quanto mais o homem reza, mais seu coração se faz humilde.

 

Só se pode rezar e pedir quando se é humilde.

Um coração  contrito e humilhado  Deus não despreza.

A humildade torna o coração recolhido.

Quando o homem se faz humilde, imediatamente ele sente-se revestido de compaixão e experimenta o socorro divino.

Percebe que sobe dele mesmo uma força, força de confiança.

Quando o homem sente o socorro de Deus, que ele se faz presente e vem em seu socorro, seu coração se enche de fé e se dá conta que a oração  é espaço de socorro, fonte de salvação,  tesouro da confiança, porto aberto no momento da tempestade, luz dos que estão nas trevas, sustento dos fracos, abrigo no tempo das provações…

Tal homem experimenta as delícias na oração da fé.

A sua alegria é tão grande que ele faz de sua oração  uma ação de graças.

Isaque, o sírio
Sec. VII