Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Janeiro 2013

I. LEITURA ESPIRITUAL

Ascese cristã

 

Carregamos o tesouro da vida nova em vasos de barro (II)

 

Em nossa edição do mês de novembro começamos a refletir sobre o tema da ascese cristã.  Precisamos  fazer de sorte que a vida da graça em nós conheça viço e crescimento. Não podemos permitir arrefecimento do elã no seguimento de Cristo.  A vida nova precisa toda atenção vigilante.  Sabemos que em nós há uma guerra entre o homem espiritual e o homem carnal.  Por isso somos convidados a prestar atenção a tudo aquilo que nos ajuda  a carregar o tesouro da graça. Para isso lançamos mão de alguns princípios de ordem ascética. Refletiremos, de  modo especial, sobre formas de ascese para nossos tempos. 

 

1. No começo da segunda parte desta nossa reflexão sobre o tema da ascese cristã convém colocar em poucas palavras o que efetivamente significa ascese. “Do ponto de vista humano, a ascese é necessária  para que alguém dê o máximo de si mesmo: demonstra-o, por exemplo, a prática desportiva que submete o atleta a uma série de exercícios que lhe permitam potenciar a habilidade, melhorar a competência, ter o corpo desperto. Do ponto de vista do fiel, a ascese é prática necessária porque a vida é  marcada pelo pecado, pela parcialidade e pelo limite.  Trata-se do exercício de libertar a própria vida da inautenticidade, da escravidão dos instintos e dos impulsos momentâneos; para que se tenha  consciência disposta a lutar contra o pecado; para dilatar os espaços do coração e da vida à caridade e ao dom de si” (Paola Bignardi,  Ascesi, in Consecrazione e Servizio  10/2012, p. 12).

2. A vida cristã necessita de vigilância. A ascese fará com que tomemos distância do espírito de manada. Faz com que sejamos senhores de nós mesmos. Em nosso mundo encontramo-nos diante de situações ou dinamismos que não escolhemos, nem bons, nem maus, mas que nem sempre nos ajudam a viver o Evangelho.  Entre eles está o trabalho e tempo do lazer, com seu ritmo tantas vezes  pouco humano. Virtus in medio.  Há os dinamismos da informação, da comunicação, do consumo. Todos esses nos homogeneízam e nos despersonalizam.  Coletivizam-nos. Dizemos:  “Fazemos como todo mundo faz”.  “É assim que todos fazem”. Aos poucos não somos mais capazes de dar respostas pessoais. Vivemos como os outros vivem e nos acomodamos. A solidão típica de nosso mundo individualista e a falta de senso crítico faz com que sejamos todos envolvidos nesse mundo da superficialidade,  do consumo e da  tagarelice.  Não somos mais o animal político de Aristóteles, mas convertemo-nos em animal de manada. O homem-massa pode  ser emotividade, mas não tem vida espiritual.  Reconhecemos que muitos valores recebemos da televisão e da internet.  É necessário estarmos informados para vivermos no mundo.  Anormal, no entanto, viver imerso no mundo da comunicação: acordar com a televisão ligada, ir dormir com áudio-fones, pensar com a cabeça dos outros, agir como uma máquina, viver em “manada”.  A inflação de  informação e essa invasão de ruídos não ajudam a vida espiritual e nem nos levam a uma vida de fraternidade.  A vida espiritual e a vida fraterna evangélica serão prejudicadas se nos deixamos estruturar pelos desejos consumistas, querendo ter tudo o que se pode ter, vivendo sempre com apetites  continuamente dilatados, na crista da onda do consumo, seres incapazes de viver em profundidade.  Nesse contexto é que tem sentido o cultivo do silêncio, da meditação, da abstinência a qualquer coisa que nos é oferecida e venha nos nivelar na vida por baixo  (cf. Juan Antonio Guerrero  Alves, SJ,  Desintoxicarse, situarse en la paz y caminar  en el bien: notas para uma nueva ascética,  in Sal Terrae  93 (2005) p, 789-803).

3. Não queremos deixar o mundo. Vivemos no  mundo como Jesus viveu no mundo.  Ele mesmo nos garantiu que no mundo vivemos mas não temos o espírito  mundano. Como ele saímos da manada, deixamos de ser massa,  buscamos viver o que nos propomos viver. Desconectar-se de inércias é grande ajuda para a vida espiritual. Usaremos os avanços tecnológicos, mas seremos senhores de nós mesmos em seu uso. Não queremos ser apêndices de uma imoral sociedade de consumo. Não desejamos ser seus alto-falantes, nem terminais de consumo de um sistema produtivo cheio de ambiguidades. Queremos ter as rédeas da vida cristã em mãos.

4. Os que fazem a opção pelo seguimento de Cristo querem construir uma personalidade  forte e autêntica. Não desejam ser escravos de caprichos e de modismos.  A ascese nos ajuda a nos exercitar no bom  uso da liberdade.  A moda, no vestir, no ouvir música, no consumo de determinados produtos mais do que outros condiciona muito os mais jovens, uniformizando seu comportamento, fazendo assim com que sintam  membros de grupos. Do contrário experimentariam a sensação da exclusão. Desta maneira, gera-se uma passividade que tira das escolhas pessoais todo o vigor e originalidade. Tudo é superficial, tudo perde força, tudo é sem originalidade.  As pessoas, sem uma ascese vigilante, não conseguem ser fiéis às suas escolhas. Uma personalidade robusta tem necessidade de libertar-se da pressão do “todo mundo faz assim”,  abrindo o caminho para  decisões próprias  nas quais se colocam valores e a visão própria que se tem da vida. Jovens e adultos precisam ser levados a exprimir os valores que animam a existência”  (Paola Bignardi, op.cit., p. 14).

5. “Não conseguiremos nos subtrair da inércia  da manada enquanto  não  tomarmos distância (…). Somos  natureza  e pessoa. Estamos submetidos a dois movimentos: necessidade e liberdade, apetite e oblatividade, a dois amores cupiditas e caritas.  A natureza  cresce e se desenvolve absorvendo, consumindo… a pessoa cresce ao dar-se, ao sair de si mesma, oferecendo-se de maneira oblativa. Duas dinâmicas  necessárias e contrapostas precisam ser ordenadas. Trata-se de controlar o apetite a partir da oblatividade, a necessidade a partir da liberdade, trata-se de ordenar nossos desejos naturais, nossas pulsões e tendências a tudo absorver a partir do amor, da caritas”  (Juan Antonio Guerrero Alves, op.cit.,  p.796).

6. Fala-se da inércia da  autonomia autossuficiente. Autonomia de modo autossuficiente é aquela que  nos faz pender de nossa própria vontade, sem outras referências, que nos fecha em nós mesmos. Esse girar em torno de nossa vontade não nos permite ver  os interesses e os desejos dos outros. Os antigos mestres da espiritualidade sempre chamavam atenção para os malefícios da vontade própria. O duvidar de meus valores, minhas opiniões, minhas teorias me permite recuperar a abertura para o Outro e para os outros. Romper com esta inércia pode significar que voltemos a ser pessoas de escuta, capazes de serem atingidas por Deus e pelos outros. Fala-se de ascese dos relacionamentos: saber escutar, saber acolher o outro como ele é sem julgá-lo, saber estar com as pessoas numa conversa franca, amiga sem cair na futilidade e na banalidade, saber colaborar, saber valorizar, tudo isso exprime a caridade  que não se improvisa e que requer um constante trabalho sobre si mesmo.

7. Há uma indiferença ou inércia diante do pecado e da desordem. A espiritualidade tradicional  assinala como raiz da desordem e do pecado, o amor próprio, amor a si que se contrapõe ao amor de Deus. Quando alguém se sente  tocado pela graça, compreende que alguma coisa em sua vida precisa mudar. Produz-se um encontro, acende-se uma luz que organiza a vida, que faz com que algumas coisas percam seu sentido e outras ganhem novas dimensões. Quando Francisco de Assis começou seu  processo de conversão, com o beijo do leproso, o doce tornou-se amargo e o amargo, doce. A ascética tradicional propunha  a “mortificação” e a “penitência” como formas de ruptura  com as inércias do pecado e da desordem. Ora, parece que ambas, devidamente adaptadas, continuam sendo necessárias. Mortificação tem a ver com “matar”. O que se pretende matar são as raízes do pecado e da desordem. Em Colossenses 3, Paulo apresenta,  como sinais do se ter ressuscitado com Cristo, uma lista de aspectos a serem “mortificados” porque queremos viver das coisas do alto. Trata-se de matar o que nos desumaniza, o que nos tira a vida, o que nos separa do amor: os vícios como a avareza, a luxúria, a ira, a maldade.  Sem uma boa terapia desse tipo, a fé cristã segue então as sabedorias  pagãs.

8. A penitência é outro instrumento útil para a conversão e que continua sendo necessário. Importante a penitência interna: compunção, arrependimento, dor pelos pecados, de haver ofendido a Deus e sido infiel nos relacionamentos.  A penitência externa está em função da penitência interna  no sentido de reeducar hábitos e apetites de maneira que desapareçam o desejo e o afeto por aquilo que nos levou ao pecado. Parece que a sobriedade, a frugalidade e aceitação dos incômodos da vida constituem um exercício para sair de si mesmo e boa ajuda para a criação de bons hábitos.

9. Juan Antonio Guerrero Alves, SJ, abordando o tema da ascese, fala do situar-se na paz. Menciona  cinco palavras da tradição espiritual  que podem nos ajudar a situarmo-nos como seres humanos diante de Deus, dos outros e de nós mesmos e do mundo.

● Recolhimento – Quer significar recolher o que está derramado. Em outros tempos, talvez, as pessoas  podiam ter tido um contacto imediato consigo mesmas.  Hoje estamos esparramados, desconjuntados e mesmo alienados.  Uma primeira tarefa  “ascética”, seja a de  reconhecermo-nos a nós mesmos e recolhermos. Para tanto será necessário reduzir os relacionamentos e conexões, arrumar as coisas à nossa volta e dentro do coração.  Recolher é, antes de tudo,  recuperar o ser. O recolhimento significa que sejamos donos de nós mesmos e que habitemos nosso interior. Abre-nos para uma presença e nos capacita para o dom.

● Fraternidade –   Outro  exercício que, em nossos dias, parece importante e que não acontece espontaneamente, na cultura narcisista, consiste em reconhecer o outro como igual e abrir-nos a relacionamentos recíprocos. Se não prestarmos atenção, corremos o risco de tratar os outros como objetos. O outro é uma pessoa e não pode ser instrumentalizada.

● Adoração –  A adoração é a relação natural do homem com Deus. Adorar é viver com Deus reconhecendo-o como tal. A adoração é a afirmação e  reconhecimento de que somente Deus é Deus.

● Humildade  –  Situar-se com os pés no chão, na terra (húmus), sem querer estar por sobre…, sem querer olhar de cima, é aceitar seu lugar de ser humano, diante de Deus e do mundo, e entre seres  humanos, nem mais nem menos. É isso que chamamos de  “humildade”, que sempre foi a base de uma vida espiritual sadia. A humildade é a arte de encontrar-se exatamente no próprio lugar. A ascese busca encontrar a profunda e adequada verdade do homem com sua verdade.

● Pureza de coração –  Os meios de comunicação e as novas tecnologias, com tantas possibilidades, foram se convertendo em mecanismos de saturação e de colonização do eu que nos impedem o acesso à nossa própria interioridade.  Há “vozes mudas” que falam em nós.  Não sabemos quais os pensamentos puros e aqueles que, vindo de fora, não são nossos e pretendem nos dominar e nos subjugar.  Em nossa cultura é mais fácil viver com o eu saturado e a interioridade colonizada.  Somos governados a partir do interior por um “outro”, um outro difuso. Nunca temos tempo para nada. A ascese deverá  nos levar  às raízes irracionais da alma, até à fonte pura ou turva, da imaginação e dos desejos para saber o que de verdade desejamos.  É como se vivêssemos numa tirania, submetidos a uma outra vontade, mas sem identificar o tirano e, ao mesmo tempo, com uma sensação de liberdade. Como elaborar meu projeto numa cultura cheia do “do que se tem que fazer”  e “do que se deve ter”?  Numa cultura que nos vende o que temos que desejar?  Como  satisfazer o desejo que mora no fundo de nosso ser quando mergulhando em mim mesmo encontro slogans semeados por outros? Ora, o trabalho ascético consistirá em fazer uma limpeza em nosso interior para poder sentir e acolher um chamamento, para reconhecer os apelos do Espírito e deixar-nos conduzir por eles. Precisamente isto é o que a espiritualidade tradicional chamava de  pureza de coração, que correspondia à bem-aventurança dos puros de coração que verão a Deus. “Concebia-se o coração como um  “poço lamacento” com mistura de água limpa e lodo e do qual se devia ir tirando incessantemente a água turva e, aos poucos, o poço ia se purificando e a água se aclarava.  A pureza de coração continua sendo necessária para se ver a Deus, ouvi-lo e acolher seu chamamento ou dito em termos existenciais, para aceitarmos nossa realidade, recuperar nossa verdadeira identidade e fazer o que temos que fazer”. Vale, neste contexto, transcrever uma das admoestações de  Francisco de Assis:  “Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus (Mt 5,8).  São verdadeiramente puros de coração os que desprezam as coisas terrenas, buscam as celestes e nunca desistem de adorar e de procurar o Deus vivo verdadeiro com o coração e a mente puros”  (Adm XVI).

Frei Almir Ribeiro Guimarães

II. JANELA ABERTA

Francisco de Assis, homem de fé

 

Michel Hubaut, franciscano francês, fala de Francisco fundamentalmente como homem da fé, mais do que amante da pobreza. Vivendo o Ano da Fé  com a Igreja, sentimo-nos filhos de um homem de profunda fé.

 

O homem sempre tem receio de renunciar a seus projetos imediatos para entrar no futuro de Deus. Francisco haverá de penetrar  na fé da mesma forma como se cava um poço no deserto, como se revira um campo para encontrar um tesouro. A fé é, antes de tudo, uma interrogação. O  Espírito faz com que ele se sinta insatisfeito consigo mesmo:

“Possuído por uma espírito novo e singular, Francisco rezava ao Pai  que escuta no segredo (…). Estava como que tomado de uma grande paixão em seu espírito, e enquanto não conseguia executar o plano que havia concebido, não havia meios de encontrar  repouso.  Pensamentos variados se sucediam dentro  dele e a persistência desses o atormentava duramente” (1Celano 6).

 

O carisma de Francisco não é a pobreza, mas a fé através da qual  ele joga seu presente e  seu futuro em Deus.

“Portanto,  nada mais desejemos, nada mais queiramos, nada mais nos agrade ou deleite a não ser o nosso Criador, Redentor e Salvador, único  Deus verdadeiro, que é o bem pleno, todo o bem, o bem total (…).  Assim, pois, nada nos impeça, nada nos separe, nada se interponha entre nós, em qualquer parte, em todo lugar, a toda hora, em todo o tempo, diária e continuamente, creiamos todos nós de verdade e humildemente e o tenhamos no coração, e amemos, honremos e adoremos…”  (Regra não bulada, XXIII, 9-10).

 

Ao longo de toda a sua vida, Francisco haverá de cultivar uma fé viva e vigilante, disponível ao apelo de Deus e ao  Espírito do  Senhor. Desobstruir nossas fontes interiores; escutar a Deus; procurar Deus; deixar-se amar e modelar-se por Deus; deixar-se guiar durante a noite pela esperança que se apresentou no rosto de Jesus Cristo; despertar de nosso torpor espiritual. Esse é o projeto evangélico de Francisco que lança suas raízes na fé. Fé daquele que descobre que Deus é dinamismo de amor que não ameaça nossa liberdade mas a estrutura, força que nos constrói e nos plenifica.  Ao longo de sua longa  busca pela luz, muitas vezes Francisco recitou esta oração:

“Ó  Deus, alto e glorioso, ilumina as trevas de meu coração. Dá-me uma fé reta, uma esperança certa e uma caridade perfeita, o senso do conhecimento, Senhor, para que eu abrace teu santo e verdadeiro mandamento”.

 

Michel Hubaut,  Chemins d’intériorité  avec Saint François,  Ed. Fraciscaines, Paris, 2012,p. 28-31)

III. CRÔNICA

Largo da Concórdia e adjacências

 

Um dos espaços movimentados da cidade de São Paulo, entre muitos outros, é o Largo da Concórdia. Sempre agitado, menos à noite. Mais agitado entre sete e nove da manhã  e, depois, entre cinco e sete da tarde. Gente, muita gente…

Aliás, o que não falta em São Paulo é gente… de todos os jeitos, de todos os formatos, de todos os horizontes. Gente demais nessa cidade de São Paulo. Em certas horas e certos dias as composições do metrô, entre o Tatuapé e a Sé, deveriam ser evitadas. Impossível entrar nos carros. E essa gente toda com mochilas, com malas de viagem rumo à estação da Barra  Funda. As pessoas são sufocadas. Umas se apoiam nas outras. Gente demais na Praça da Sé, na Barra Funda, na Vinte e Cinco de Março.

Impressionante observar o citado Largo da Concórdia.  De todos os cantos saem pessoas. Em cada semáforo levas e levas de muita gente. Gente bonita e gente feia. Gente jovem, gente mais madura. Mulheres e homens com bolsas e mochilas saindo da Estação de trem do Brás, do Metrô, dos  ônibus, do “busão”. Esses ônibus com seus motoristas de cara amarrada tentando ganhar caminho pela Barão de Ladário, às sete ou oito o nove horas da manha, com sol ou com chuva. E a Praça da Concórdia vive a festa de tanta gente.  São gerentes de lojas, balconistas, serventes, faxineiras das agencias bancárias…  Todos se cruzam no Largo da Concórdia.

Há esses rapazes de ambiente pobre, mas com o cabelo impecavelmente tratado, descolorado, com gel, muito gel, formando uma cristã à la Neymar… São moços limpos, com jeans e camisetas, moços sarados alguns e outros magrelos, caminhando com decisão pelas ruas adjacentes ao Largo da Concórdia.

Há moças e mulheres, solteiras ou casadas, solteiras felizes e outras desejosas de encontrar um amor, casadas bem casadas pensando em seus maridos.  Há também aquela mulher de seus quarenta ou quarenta e cinco anos que caminha sozinha com o rosto  grave… seu casamento vai mal… o marido desapareceu… faz semanas quem ele não dá sinal de vida… por vezes ela tem episódios de desespero. Mas agora ela não tem que pensar nessas coisas, nem pode, está proibida.  Ela é gerente de um quase grife de camisetas. Tem que abrir a loja, colocar os computadores para funcionar e  atender sorridentemente aos fregueses que chegam de Minas, da Bahia ou de Santa Catarina nesses imensos ônibus de dois andares que obstruem as vias do Brás e do Pari. A mulher gerente quase tinha sido gravemente  jogada por terra por um desses garotos de boné com aba virada para trás que vinha na contramão dirigindo mal um desse carrinhos com fardos de sacos  pelas calçadas no Largo da Concórdia.

No meio da multidão há também esses homens puros e bons, gente de igreja, gente que lê a Bíblia. Há os que à noite animam uma celebração da Palavra no Carrão ou em Itaquera.  Há esses outros, vistosos, bonitos,  com vários filhos e sem nenhum casamento… sempre charmosos e enfeitados, prontos para uma nova aventura…

Ao meio dia as lanchonetes faturam. Há mesmo essas cadeias de fast-foods que se instalam na Maria Marcolino ou na Barão de Ladário. E grifes de perfumarias que têm stands no interior dos espaços do Metrô Brás…  Quem diria que Greta Garbo fosse parar no Irajá…

Quanta movimentação… quanta agitação. Por detrás de tudo isso histórias humanas, dramas e aventuras, esperanças e monotonia, muito dinheiro (libaneses, chineses e coreanos com seus carrões).  Aos domingos, tudo se torna deserto.  Tudo dorme.  Dormem as lojas, dormem os gatos nas casas dos bolivianos, dormem  vestidos, camisas, calças nos manequins bonitos ou horrorosos. Dormem as mercadorias nas prateleiras das geladeiras esperando as primeiras horas  da segunda-feira  quando tudo vai começar de novo…

IV. E A FAMÍLIA, VOMO VAI

Que nossos lares sejam sólidos

 

A 30 de dezembro de 2012  comemoramos a festa da Sagrada Família, da Família de Nazaré.  Que todas as famílias possam se encontrar na oração que ora publicamos.

 

Senhor  Deus, grande e belo,
altíssimo e bom Senhor, fonte de toda a vida,
aqui estamos diante de  teu olhar meigo,
perscrutador e misericordioso.

Neste momento de nossas vidas
queremos colocar  diante de teus olhos
e depositar  no fundo de teu coração
nossas famílias e as famílias do mundo inteiro.

Pousa o teu olhar sobre nossas mesas de refeições:
que a família  tenha o pão de todos os dias e a
abundância das coisas necessárias.
Livra-as do consumismo empobrecedor,
do espírito de competição  sem medida
e do culto das aparências e do poder.
Que seus membros se alimentem
de atenções mútuas e  de carinhos que não podem ser adiados.

Dá aos esposos a graça da fidelidade e da ajuda mútua:
que se respeitem e se estimem,
que cresçam juntos humana e espiritualmente
sempre diante de teu olhar.

Olha pelos filhos pequenos e grandes,
pelos que são dóceis de coração
e  pelos que se mostram revoltados.
Que sejam iluminados na escolha de seus amores,
na opção profissional e em todas as encruzilhadas de suas vidas.

Dá,  Senhor, aos nossos filhos o gosto pelo Evangelho,
o ideal da solidariedade,
a preocupação de se dobrarem sobre os mais abandonados
e a serem companheiros simples e bons
de todos os que passarem por seus caminhos.
Que sejam  pessoas úteis  e que enfeitem
a terra com sua simples presença.

Olha, Senhor, os meninos de rua,
as crianças sem pai e sem mãe,
as esposas abandonadas,
as mães e pais solteiros,
os maridos machucados.

Acompanha o sono das crianças,
o descanso dos idosos
e alivia o sofrimento dos doentes.

Senhor, nós te damos graças  por nossas famílias
e pedimos a coragem de sempre lutar pela construções de lares sólidos.
Amém.

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

Humanista e humorista

 

Francisco de Assis, eis um tema que não se esgota. Um frade  espanhol, José Antonio Merino, OFM,  escreveu texto muito saboroso sobre esse nosso italiano que é do mundo inteiro, que saiu como encarte da revista espanhola Vida Nueva, n. 2663, com o título de Francisco de Assís, santo enigmático e provocador.Transcrevemos aqui apenas uns poucos parágrafos  que falam do humanista e humorista.

 

Ainda em vida, Francisco foi um fenômeno de massa, devido ao seu estilo evangélico. Não somente por isso, mas porque era um gênio da comunicação e da propaganda. Compreendia imediatamente as necessidades e expectativas dos que dele se acercavam. Tinha um senso inato e forte sentido do espetáculo. Era um artista. Nos tempos de sua juventude cantava pelas ruas nas serestas com seus amigos.

Depois de sua conversão exprimia-se, em suas pregações, com gestos e posturas dos jograis e dos trovadores. Se, em sua juventude tinha sonhado ser um cavaleiro, empregando a linguagem cavalheiresca da época, depois de sua conversão continuou usando um repertório de palavras e imagens muito diferente  da linguagem religiosa habitual. Falava de seus irmãos com sendo cavaleiros da Távola Redonda e da pobreza como se fosse sua noiva. Por vezes pregava com a linguagem das canções eróticas que estavam em voga, transformando-as e dando-lhes um sentido religioso. Conseguiu superar a dicotomia entre sagrado e profano, laical e clerical, linguagem profana e linguagem eclesiástica. Certa vez, diante de suas admiradoras do sexo feminino, reunidas em torno da nobre Clara, improvisou uma pregação somente feita de gestos.

Sua conversão ao Evangelho não significou renúncia a seu caráter jovial e festivo; ao contrário, chegou mesmo a potenciá-lo. Para ele, Deus era uma festa, e dançava quando se aproximava dele. Sua vida era um constante celebração litúrgica  pelos campos e cidades. Para ele, a natureza era  um templo visível da divindade onde se celebra espontaneamente a liturgia cósmica.

Inventou um estilo novo de encarnar o Evangelho combinando a coerência da mensagem evangélica com seu caráter jovial e festivo.  A santidade com a poesia. O humanismo com o humorismo. A religião com a estética. Trouxe alegria para o cristianismo. Seu estilo de vida tão original  foi logo captado pelas multidões de gente simples que sabem descobrir o essencial da vida. Bem cedo, Francisco se converteu num fenômeno de massas.  No capítulo  10 dos Fioretti, encontramos um  texto muito significativo.  Frei Masseo, com uma certa duvidosa simplicidade e não pouca ironia ( para tentá-lo”, diz o texto), pergunta:  P”or que a ti, por que a ti,  Francisco?”.