Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Janeiro 2012

JANEIRO 2012

Uma lei fundamental precede e ilumina toda outra lei, civil,
moral ou religiosa.  Assim ela se  enuncia:
Artigo único:  É preciso viver.
Não há artigo segundo.
Necessário viver.  Com avidez. Com intensidade.
Só é verdadeiro o que se vive.
Se a fé em Deus e em Jesus ressuscitado  fosse um
entrave à vida, eu recusaria a fé.
O que é maravilhoso na fé  é que ela não cessa de  aumentar
a exigência, o combate, o fervor de viver, de viver até a embriaguez:
e a paixão de ser homem, a paixão de ser mulher, a celebração
do casal, e todos os esplendores da carne e do sangue,
e todas as luzes, o rir e  o soluçar.
Viver. Abraçar. Mesmo a infelicidade.
Viver: ter os braços  dirigidos aos músicos e como maestro
decidir o momento em que a vida vai dançar, cantar, gritar,
chorar talvez.  Mas viver.
Escrevo estas linhas com o coração impregnado do evangelho,
do evangelho do Gólgota e o evangelho da Ressurreição.
Necessário viver.
Todas as promessas de Jesus no evangelho são promessas de vida.
Necessário ousar viver.
Para saber viver é preciso ousar viver.

Jacques Leclerc
Debout  sur le soleil
Seuil, Paris, 1980, p. 13-14

I. LEITURA ESPIRITUAL

Vida interior: Adentrar-se no próprio mistério

 

1.    Vida, viver, vida espiritual, vida interior.  Há esse  deitar, levantar, correr, comprar, vender, chorar, esperar, temer, alegrar-se. Há a vida desse casal  aparentemente tão ajustado, respirando harmonia.  Há essa religiosa de roupas simples, olhar sereno, já quase envelhecida de tudo, mostrando, para além das rugas do rosto, viço e  vigor.  Há esse senhor  que vem da roça comprar mantimentos na cidade e volta pensando sempre na vida dos seus.  Há esse mendigo, deitado sob a marquise, com um naco de pão na mão e ajeitando seu cobertor para dormir.  Vida.  O que conta é viver. Nada além de viver.  Mas será preciso viver em profundidade.  Não basta apenas dormir, levantar, comer, correr, sofrer.  É preciso dar um sentido à vida.

2. A expressão  “vida espiritual”  é ampla e pode ser ambígua. Refere-se a todos os homens e a cada homem, seja ele crente ou não, cristão ou adepto de outras trilhas religiosas, seja ele leigo casado ou religioso consagrado.  Trata-se de uma dimensão da experiência humana.  Todo homem vive espiritualmente. Podemos dizer que  vida espiritual  aparece quando surge pergunta pelo sentido, quando homem instigado pelo  conhecimento de si mesmo,  começa a explorar aquilo que lhe é interior,  a observar o mundo, a escutar, a pensar, a meditar, a escolher, a decidir, a assumir sentimentos e comportamentos.  Nesse momento começa nele a vida espiritual.

3. “O fundamento da vida espiritual é a exigência de sentido que habita o homem. Para encontrar esse sentido será necessário buscar, fazer experiências em profundidade. Por isso,  a vida espiritual também pode ser designada de vida interior. Quando pensamos na vida espiritual de uma pessoa, procuramos detectar aquilo de mais profundo que existe nela, suas  últimas motivações, seu fundamento  vital, seus ideais”  (Enzo  Bianchi, La vie spirituelle chrétienne,  in Vie consacrée, 2000, n.1, p. 36).

4. “A vida espiritual não é um patamar de superestruturas inúteis a serem acrescentadas à nossa vida, à nossa idade adulta.  A vida espiritual abrange a totalidade da vida, mesmo em seus pormenores cotidianos.   Vida essa que se acha como que trabalhada por um convite para buscar sua qualidade, sua profundidade e sua realização.  Quem foi  desperto para a vida espiritual e pressentiu esse apelo não pode,  sem mais nem menos,  libertar-se dele.  Se vier a rejeitá-lo estará  perdendo uma oportunidade única de viver.  Acolher esse convite  é uma decisão pessoal.  Mas ainda não é tudo. Será preciso perseverança, palmilhar com coragem tal caminho, colocar decididamente nele os pés. Em outras palavras, trata-se de encontrar uma sabedoria”  (Fêtes et Saisons, n. 258, p. 5).

5. Viver espiritualmente é viver simplesmente a vida de todos os dias.  Deus aparece no tecido do cotidiano.  “Viver humanamente é uma aventura: difícil, arriscada, dolorosa, alegre. Entre o nascimento e a morte,  quantos acontecimentos, quanto amor, quantos medos, quantas feridas, quantas curas, quantos fracassos e ressurreições, conflitos, reconciliações, dúvidas e iluminações. Quanto trabalho para viver, quanta luta, quanta busca pela verdade, quanta tentação de morrer.  Mas também  quanta coragem.  A coragem de viver não seria a coisa mais difundida no mundo? Ora, é precisamente  nesse borbulhar  humano que Deus resolve vir ao nosso encontro para acompanhar e transfigurar a aventura de nossa vida. O próprio Espírito dá testemunho a nosso espírito que somos filhos de Deus (Rm 8,16)”  (Régine du Charlat, Qu’est-ce qui fonde la vie spirituelle? , in Croire Aujourd’hui,  n. 140,  p.23).

6. Num gênero literário de carta a um amigo,  Enzo Bianchi,  líder da Comunidade de Bose na Itália, já citado anteriormente, assim descreve  a vida interior:  “Você  decidiu me escrever, porque anda se  questionando, nos  últimos tempos, a respeito do sentido da sua vida e escrevendo que gostaria de ter mais tempo para si mesmo, para pensar naquilo que é essencial na vida e que merece ser vivido.  Suas interrogações  exprimem essa exigência profunda de nosso espírito, ou seja, a da vida interior. Cedo ou tarde, essa questão se torna muito viva dentro de cada um  porque não vivemos apenas do exterior, projetando-nos fora de nós mesmos, numa contínua  “fuga” em que a intensidade das emoções toma o lugar da plenitude de vida.  O homem é um  “fora”, mas é também um “dentro”. A Bíblia fala de coração. Nós falamos de consciência, de foro íntimo.  Não sou totalmente  claro, nem evidente para mim mesmo. Sou um mistério. Conheço-me apenas parcialmente.  Para viver plenamente precisamos levar em consideração nosso interior”. (Qu’est-ce que la vie intérieure?)

7. Há uma pergunta que precisamos responder com toda coragem,  mesmo com dificuldade;  Quem sou eu?  Será precisamente ela que vai abrir o caminho para a vida interior.  Precisamos levar a sério nossa unicidade de corpo e espírito, de exterior e de interior, de apetites do corpo e de desejos pungentes e poderosos da alma.  Ao longo do tempo da vida, frequentando nosso interior,  vamos descobrindo ou construindo nossa identidade.  Cada um é chamado a ser ele mesmo e não  copiar outros.  Necessário será escutar os abismos interiores e poder realizar suas solicitações.  Assim, se pode dizer que levar uma vida interior é  caminhar na direção de um sentido, caminhar na direção de um tornarmo-nos nós mesmos, de não vivemos por viver.

8. Trata-se de sair da superfície e da epiderme e tentar refletir, atinar com o sentido das coisas de todos os dias, dos movimentos de nosso coração, das questões que vamos  colocando nas diferentes estações  de nossa vida. Trata-se de um trabalho de levar a sério a própria unicidade.  Voltamos a Enzo em sua carta: “A vida interior exige coragem. É como o começo de uma viagem, não tanto exterior, mas em profundidade,  não fora de você, mas em seu interior.  E se a perturbação que você experimenta no começo, diante de uma paisagem interior desconhecida, causa receio você vai tomar consciência de que se trata da viagem mais longa e mais penosa, mesmo sem  percorrer um quilômetro que seja.  Coragem não somente para interrogar-se, mas também para deixar interrogar-se, acolher os acontecimentos  da vida como questões que são dirigidas a você:  a doença que altera completamente a vida de uma pessoa amada, a morte repentina de um amigo, o casamento de um conhecido, um nascimento que trouxe alegria a um casal conhecido, como também os acontecimentos cotidianos, menos visíveis e menos chocantes que constituem a trama de nosso dia a dia…  Trata-se de vida ou morte, de alegria ou de sofrimento”.   A vida interior nos leva a pensar em tudo isso e a projetar  Deus em tudo.  Falamos, então, de viver à luz da fé.

9. Não podem ter acesso a essa dimensão de interioridade   os que vivem na superfície das coisas e na busca desenfreada de toda sorte de satisfações.  Uma Carta Pastoral de bispos da Espanha  fala da falta de interioridade:  “A fé se debilita por falta de interioridade.  Cada vez há menos espaço para o espírito em nossa vida diária.  Muitos consideram a “vida interior” como algo perfeitamente inútil e supérfluo.  As vidas são organizadas somente a partir do exterior. Quase tudo o que as pessoas fazem  tem como objetivo alimentar a personalidade externa e superficial.  Por outra parte, a vida do espírito aparece  tão  desprestigiada  que facilmente é classificada de evasão qualquer empenho de cultivar o mundo interior. Privada de interioridade, a fé se extingue.  Enchemo-nos de projetos, ocupações e expectativas, mas o “homem interior” se debilita. Para que a fé seja fonte de luz e de vida, o ser humano necessita penetrar em seu próprio mistério  e chegar ao coração de sua vida  lá onde é totalmente ele diante de Deus. Quando a pessoa perde o contato com o “nível transcendente” de seu ser, a experiência religiosa se apaga, mesmo continuando a praticar  uma “religião externa”.  São muitos os cristãos que desconhecem o desejo do  Absoluto, não vivem a experiência de uma comunicação pessoal com ele.  Vivem buscando segurança religiosa em crenças e práticas a seu alcance, sem penetrar num relacionamento vivo com a realidade misteriosa de Deus”.

10.  Somos convidados a fazer um viagem ao nosso interior e tentar  escutar o famoso  “Conhece-te a ti mesmo!”  Esse empenho pede  interiorização, uma vida interior, uma integração de experiências e acontecimentos que nos permita  chegar a interpretar quem somos nós.  As perguntas aí estão:  Quem somos nós? Para onde vamos?  Que fogo é esse que arde em nosso coração? Quem são os outros para nós?  Na medida  em que vamos tentando responder a essas e outras questões. Os que visitam seu interior têm melhores condições de compreender o que vem a ser uma vida espiritual cristã.

Obs.:  Ao longo do ano de 2012  vamos propor textos para a leitura espiritual precisamente em torno do que se convencionou chamar de vida espiritual cristã.

II. JANELA ABERTA

O caminho da interioridade

 

O caminho para a interioridade hoje se dá num tempo de mudanças, tempo rico de muitos sinais de redescoberta da interioridade e do silêncio. A sociedade secularizada vem focada  vem focada sobre o indivíduo, fragmentado, com uma identidade fluida. Temos diante de nós uma mudança radical da visão do homem, determinada sobretudo pela tecnologia. São imensos os recursos da inteligência humana, descobertos hoje, que podem ajudar o homem a criar um mundo melhor. É importante que o homem permaneça sujeito desse  desenvolvimento, sobretudo a partir da verdade profunda de si mesmo.  Confrontamo-nos também com o medo de entrar em nós mesmos, com a pobreza de sentimentos, de afetos, de capacidade de amar e deixar-se amar. No espaço da interioridade, o silêncio pede a escuta de nós mesmos, dos outros e da realidade. Os meios de informação podem iludir-nos, ao dar-nos a sensação de  evitar-nos esse trabalho. Na verdade, tornam-nos estranhos a nós mesmos. O percurso para dentro de nossa interioridade não é  só terapêutico  para a nossa cultura do barulho, mas também ver a ser um caminho voltado para o acolhimento, para uma nova civilização do amor.  O caminho para dentro de nossa interioridade  e  para o silêncio torna-se, então, testemunho de uma opção de vida alternativa.

O caminho que leva ao “lugar do coração”
Achegas para descobrir  interioridade e silêncio na vida franciscana
Ordem dos Frade Menores
Roma 2003

III. CRÔNICA

Santo Antônio do Pari

 

Pari…um dos bairros desta imensa  cidade chamada São Paulo. Um bairro diferente do jeito dos sofisticados bairros  dos “jardins” da zona Sul  ou do “pedaço” da Avenida Paulista. Tive a tentação de dizer que se trata de um bairro pobre. Seria inverdade.  Muito dinheiro circula nesse comércio doido da Rua Oriente, da Barão de Ladário ou da Rio Bonito. Perto do centro velho de São Paulo, mas não tão perto assim.  Pari, onde os frades se fizeram  e se fazem belamente presentes.

Duas lembranças bem antigas assomam-me à mente quando me disponho a tecer algumas considerações a respeito do Pari. Na década de 50 morou neste bairro meu tio Euclides, irmão mais novo de meu pai, que foi gerente das Vozes de São Paulo.  Quando ele ia a Petrópolis, por ocasião do natal, nos falava das coisas maravilhosas de São Paulo e do bairro do Pari. Lembro-me de uma senhora amiga de tio Euclides e de tia Carminda que se chamava  Dona Antônia, uma paulistana moradora do bairro e que transmitia uma grande alegria de viver.  Conheci D. Antônia quando ia a Petrópolis. Já deve ter morrido. As pessoas duram muito tempo. Mas um dia as coisas terminam.  E vamos ficando órfãos de amigos de verdade.  A segunda lembrança é que aqui esteve trabalhando Frei  Quirino Schmitz que depois se tornou bispo.  No meu tempo de Filosofia e Teologia olhava para o dinamismo de Frei Quirino como modelar.

Nossa igreja de Santo Antônio do Pari está situada numa movimentadíssima praça que deveria ser Praça Santo Antônio e não Praça Padre Bento, com todo respeito ao eclesiástico que deu seu nome à praça.  O templo é majestoso.  Diria mesmo majestosíssimo. Colunas enormes, estilo amplo, piso bem cuidado, altar mor grandioso, até mesmo com baldaquino.  Uma belíssima igreja que foi espaço de celebração de inúmeros casamentos.  Suas grandes e imponentes torres  impressionam e ainda chamam a atenção  dos passantes.  Estamos no meio  de  toda  a agitação comercial do bairro do Pari.  Depois de incêndios e desgastes,  a Igreja foi reformada com a garra e persistência de Frei  Gilmar.  Realmente, como já se disse,  ela é o cartão postal do bairro.  O prefeito da cidade, o Sr. Kassab,  precisaria prestar atenção nisso.  Ela está plantada no meio do burburinho da cidade.  Há uma encruzilhada de  ruas por onde circulam carros, coletivos, caminhões que, à sua passagem, fazem o solo tremer.

Belo templo.  Se estas paredes pudessem falar, elas diriam do esplendor das celebrações aqui realizadas.  Quantos e quantos, homens e mulheres, foram formados pelos frades do Pari.  Quanto suor evangelizador!  Quanta história que só Deus conhece.

A Praça Padre Bento está deteriorada. Não é lugar bonito e bem cuidado. Há muita sujeira.  Um ponto de táxi, uma banca de jornal, bancos e mesas de concreto, aposentados  jogando dominó ou cartas… farmácias, restaurantes, casas bancárias, lanchonetes,  muitos pobres dormindo na praça,  pombos, e o barulho trepidante dos ônibus e dos caminhões dia e noite. À noite tudo fica mais calmo, é verdade.  Um bairro, um lugar onde moram pessoas pobres e até mesmo cheio de cortiços com bolivianos e muitos brasileiros chegados de outros estados.  Muitas de suas ruas mostram a miséria dos locais onde essa pobre gente se protege do sol e da chuva.

Impressiona a existência de prédios e galpões muito grandes. Penso aqui nas construções comerciais.  A vocação do Pari é o comércio.  Os antigos habitantes fugiram, venderam casas e terrenos para que os grandes comerciantes pudessem construir imensas lojas… À noite e nos finais de semana,  um deserto… As pessoas compraram casas em outros bairros e se foram… Para não dizer que se esqueceram do Pari  elas vêm aos milhares e milhares para a festa de Santo Antônio… À nossa volta poucas residências. Há alguns edifícios mais sofisticados onde moram os libaneses e muçulmanos ricos, como também os coreanos. Calçadas cheias de gente circulando, lojas simples e mal cuidadas, centros comerciais de atacado, sofisticados, luxuosos, com hotel e  restaurantes de primeiro mundo. Roupas, vestidos, jeans, camisetas,  bolsas… imitações grotescas e outras quase iguais às marcas originais… Camisetas baratas… e esses ônibus de todos os cantos trazendo compradores que arrastam em malas com rodas o que vão vender em Santa Catarina, na região de Belo Horizonte ou  no interior de São Paulo…. Em poucos meses, à rua João Teodoro, ergueu-se  um grande centro comercial… Nos dias de dezembro  já havia uma placa : “Inaugurado”.  Os lojistas  querem vender… e vendem mesmo.  Tudo gira em torno do dinheiro?  E onde ficou a alma do Pari?

Por aí realiza-se a famosa feirinha da madrugada.  Comerciantes, por vezes sem  lenço nem documento, expõem as mercadorias em bancas móveis… tudo …. roupas, relógios, louças, … mas sobretudo roupas… Os ônibus urbanos precisam circular com imenso cuidado…. A feirinha da madrugada é conhecida. Houve choques entre a polícia e esses ambulantes em noite de ônibus queimados, de manifestações de violência.  Na Praça Pe. Bento houve choques.  Policiais montados em cavalos disparavam  tiros de efeito moral… Os moradores de rua se levantavam, afirmando que nada tinham a ver com a história … carregando seus colchões.   Davam a impressão daqueles curados do evangelho que iam para a casa carregando a maca…

Durante a semana, o trânsito se torna insuportável nesse  miolo da Barão de Ladário, João Teodoro e Oriente  até chegar à Av. do Estado.  Nem adianta tomar taxi.  Melhor ir a pé até a estação  Tiradentes do metrô paulistano.

Muitas perguntas e muitos questionamentos fazem os frades do Pari e os poucos paulistas que andam por aqui.  Haverá que descobrir um outro jeito de ser paróquia no Pari.  Os libaneses e coreanos chegam para o trabalho, mas moram bem,  muito  bem em outros bairros.   Há também chineses, muitos chineses, sempre chineses… Aliás,  o mundo será chinês.  Quem viver verá.   Não é aqui o espaço de fazer uma reflexão sobre a pastoral e a evangelização do bairro.  Mas ela se impõe.  Do ponto de vista de uma verdadeira evangelização muitas questionamentos são feitos.

Gostaria de me deter num aspecto particular da igreja do Pari.  De 2ª. a sábado é celebrada missa às 7h da manhã.  Muitas vezes celebro a eucaristia nesse horário.  Poucas vezes me dei conta de uma assembleia tão piedosa  e tão especial como essa da missa  das 7h  (menos em dias de sábado).  A frequência varia, mas gira em torno de 50 pessoas. Há mais gentes  às  terças-feiras.  Os frequentadores são pessoas que não moram no bairro, que chegam de ônibus ou de carro para trabalhar como gerentes, balconistas ou serventes nas lojas. Cria-se no templo um clima de oração.  As pessoas não vêm à sacristia falar, falar… falar… Chegam, tomam seu lugar no templo… quase sempre o mesmo… Há essas duas mulheres que devem ser gerentes de lojas. Vestem-se corretamente.  Há um casal que mora no bairro e vem nas festas e às terças-feiras.  Há um homem de seus 60 anos que se veste com roupa de grife.  Uma portuguesa dos tempos passados, todos os dias, percorre a igreja com cestinha. Outras duas cuidam da cesta dos pães de Santo Antônio.  Aquele senhor é  gerente de negócios que têm sua sede em Goiânia. Quando está em  São Paulo vem todos os dias à missa.  Um jovem senhor, de seus  35 anos, casado, aparece às vezes.  A expressão serena de seu rosto me ajuda a rezar, como também aquela senhora alta, negra, elegante no andar e com uma expressão de piedade sem melosidade.   Poucas vezes celebro com tanto gosto e tanta alegria interna quanto  na igreja do Pari, às 7 horas da manhã.

Escrevo estas linhas numa manhã de  quinta-feira, na semana antes do Natal.  A impressão que tenho é que o movimento em vista do Natal está terminando, mas os ônibus circulam:  Liberdade,  Terminal  Princesa Isabel, Brás.  A vida continua neste bairro e neste quarteirão onde moram os frades e onde  está o belo templo de Santo Antônio do Pari.

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI?

Por que a família é importante?

 

Não precisamos provar esta verdade.  A família é importantíssima na vida das pessoas.  Mas não qualquer família. Pensamos aqui numa família que nasce de um casal que se estima, casal sério, casal maduro e profundamente humano.

 

1. Casamento não acontece, assim, de repente.  Não é fatalidade.  É vocação.  As pessoas se preparam para o casamento vendo seus pais e parentes viverem belamente a união conjugal na fidelidade e no mútuo carinho. Os responsáveis pelo  “curso de noivos”  não são os palestrantes daquelas poucas horas de preparação, mas o pai e a mãe,  no cotidiano da vida de seus filhos.  A partir da “felicidade” dos pais os filhos passam a acreditar no amor e na família.  Tiveram uma boa preparação para o casamento!

2. A família é importante  por ser o espaço onde a pessoa faz a experiência de amar e de ser amada, querida, desejada.  Cada um tem consciência de que ocupa um lugar único e intransferível no coração de seus pais, seus avós e seus parentes mais próximos.  O homem tem consciência de que é marido e pai.  A mulher vive serenamente essa identidade de esposa deste que a estima e a de ser mãe de filhos queridos que colocou no mundo. Cada um conta. Cada um tem valor.  Cada um tem consciência de ocupar um lugar ao sol.

3. A família é lugar de encontros.  Vivemos num mundo de correria, de trabalhos, de lutas, de acertos e desacertos, com experiências de amor e desamor.  Muitas vezes nos sentimos coisas no jogo louco da vida e de uma sociedade de consumo.  A família será um espaço de encontros entre marido e mulher. Eles se olharão um nos olhos do outro. Pais e filhos e filhos e pais têm ocasião de afirmar com sua presença na vida do outro o carinho, o apreço e a ternura.  Será preciso criar espaços de encontro. Não se pode dar desculpas e inventar pretextos para ausências.  Importante os encontros em torno à mesa, a comemoração dos aniversários, a proximidade de uns aos outros, de graça, sem interesses.

4. Nada de autoritarismos ultrapassados.  Desejo de estar uns com os outros. Deixar-se amar. Fazer o exercício do amor.  Auscultar o que se passa nos outros.  Ir para além de todo e qualquer utilitarismo.  Aprender a querer bem  generosamente. A família  é  importante por ser um lugar de encontro entre as gerações. Os avós se encontram com os netos. As gerações precedentes, na atmosfera do bem querer que nasce do sangue, se encontram, se educam, se esclarecem.

5. No seio da família cada um pode ser ele mesmo.  Ali todos encontram um lugar para o descanso do corpo e do espírito.  Nesse jogo de afeto e de confiança vão se forjando personalidades sadias. A honestidade, a correção, o respeito que os pais têm pelos avós, a lisura de seus comportamentos  vão penetrando a psique dos filhos de tal sorte que eles são educados não por falas e discursos, mas pelo testemunho amoroso desses que eles chamam de pai e de mãe.

6. Não temos a menor dúvida de que, apesar das turbulências,  a família continua sendo  um espaço de descoberta e amadurecimento da fé. Em nossos tempos se diz que é impossível transmitir a fé de pais para filhos.  Mas podemos dizer que pais e mães solidamente cristãos estão em condições de apresentar Cristo Jesus e a fé aos seus filhos. Uma família cristã  não se baseia apenas em devoções, ritos e sacramentalização.  Importante criar em casa um clima de alegria, de acolhimento e de cordialidade.  Pode-se criar um universo de símbolos:  uma bela cruz, uma vela decorada diante da imagem de Maria, a bênção dada aos filhos. Alguns momentos de densa oração. Não apenas de repetição cansativa de fórmulas.  Um salmo aqui,  uma leitura ali.  Sobretudo, o carinho de todos para com os mais fracos e fragilizados da face da terra. Há momentos especiais na vida de uma  família em que a fé pode transparecer: a chegada e a celebração do batismo de um filho, os quinze anos, das grandes festas do natal e da páscoa,  a doença e a morte.

7. Quando os filhos têm uma família de verdade, sobretudo autenticamente buscadora de Cristo Jesus,  estarão em condições de comparar o que vivem casa com a loucura de uma sociedade individualista, sem nexo, desbussolada, buscadora de interesses e vantagens pessoais.  Na família se forjam os cidadãos de um mundo novo e os cristãos do amanhã.

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

Pequeno retrato de Francisco de Assis

Vivia na cidade de Assis,  na região do vale de Espoleto, um homem chamado Francisco (1 Celano 1)

 

Todo mundo conhece Francisco da cidade de Assis. Ele é patrimônio da humanidade.  Esse Francisco, esse italiano natural da verdejante região da Úmbria, experimentara no peito o anseio pelas coisas grandes e foi se tornando o Irmão Francisco, Frei Francisco.  Não havia nascido para a mesmice e a mediocridade, para a banalidade e para a rotina. Tudo nele se revestia do novo, da novidade que procede do Deus de toda novidade.

Frei  Tomás de Celano, contemporâneo de Francisco, foi encarregado de escrever a biografia oficial do santo.  É ele, pois, que nos pinta um quadro com os traços desse Francisco do mundo inteiro que continua cativando todos os tempos.

“Como era bonito, atraente e de aspecto glorioso na inocência de sua vida, na simplicidade das palavras, na pureza do coração, no amor de Deus, na caridade fraterna, na obediência ardorosa, no trato afetuoso, no aspecto angelical!  Tinha maneiras simples, era sereno por natureza e de trato amável, muito oportuno quando dava conselhos, sempre fiel às suas obrigações, prudente nos  julgamentos, eficiente no trabalho e em tudo cheio de elegância. Sereno na inteligência, delicado, sóbrio, contemplativo, constante na oração e fervoroso em todas as coisas. Firme nas resoluções, equilibrado, perseverante e sempre o mesmo. Rápido para perdoar e demorado para se irar, tinha a inteligência pronta, uma memoria luminosa, era sutil ao falar, sério em suas ações e sempre simples. Era rigoroso consigo mesmo, paciente com os outros e  discreto com todos.

Muito eloquente, tinha o rosto alegre e o aspecto bondoso, era diligente  e incapaz de ser arrogante.  Era de estatura pouco abaixo da média, cabeça proporcionada e redonda, rosto um tanto longo e fino, testa plana e curta, olhos nem grande nem pequenos,  negros e simples, cabelos castanhos, pestanas retas, nariz proporcional,  delgado e reto, orelhas levantadas mas pequenas,    têmporas chatas, língua apaziguante, fogosa e aguda, voz forte, doce, clara e sonora, dentes unidos, iguais e brancos, lábios pequenos e delgados, barba preta e um tanto rala, pescoço fino, ombros retos, braços curtos, mãos delicadas, dedos longos, unhas compridas, pernas finas, pés pequenos, pele fina, descarnado, roupa rude, sono muito curto, trabalho contínuo.

E como era muito humilde, mostrava mansidão para com todas as pessoas., adaptando-se a todos com facilidade.  Embora fosse o mais santo sabia estar com os pecadores como se fosse um deles”  (1Celano  83).

Este foi o retrato de Frei Tomás de Celano.  Muitos preferem simplesmente designá-lo de Frei Francisco, de Irmão Francisco. Durante poucos anos, um pouco mais de quarenta,  percorreu os caminhos desta terra e deixou lembranças nas pétalas das flores, no espelho das águas, nas chagas dos leprosos e no voo das cotovias.  Ele honrou a humanidade.  Foi nosso irmão e o retrato mais acabado de Jesus  Cristo.

Éloi Leclerc, franciscano francês, foi martirizado na alma e sofreu no corpo os horrores da  Segunda Guerra Mundial.  Em obra do outono de seus dias  (O Sol nasce em  Assis), o autor  faz uma  reflexão sobre o grande drama humano da guerra, dos campos de concentração, da desumanidade. Mas o livro é também “a história de um encontro maravilhoso: meu encontro com um daqueles homens tão raros de nossa história que não nos deixam  desesperar do ser humano. Trata-se de Francisco de Assis.  Se espírito – o espírito de Assis, como é chamado – nos traz a luz, uma luz da qual precisamos atrozmente. Aquele homem fez surgir no meu coração o Sol,  e com o Sol toda a criação. Foi para ele que me voltei. Foi a ele que eu pedi o segredo de uma verdadeira fraternidade humana.  Pouco a pouco, além das grandes aflições e das tragédias deste mundo, Francisco abriu minha alma para a harmonia profunda das coisas e de tudo o que vive.  Num universo desencantado, ele foi para mim o encantador. Mostrou-me o caminho de uma verdadeira humanidade, corrigindo o que o nosso humanismo dos direitos  humanos tem de limitado e mesmo de ambíguo e perigoso. Parece-me que, se a humanidade um dia encontrar a alegre esperança e o sentido da caminhada para sua realização, será na direção inaugurada pelo Pobre de Assis” (Vozes, Petrópolis, p.9-10).

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 João  Bernardone conhecido como  Francisco

•  Filho de Pedro Bernardone, comerciante de tecidos e de  Pica, que pertencia a uma família da região francesa da Provence.

•  Exerce a profissão do pai, na venda de tecidos.

•  Rapaz dotado de um espírito muito vivo.

•  Generoso e alegre; gosta dos divertimentos e de cantos;  gosta de passear pela cidade de dia e de noite.

•  Generoso nos gastos, dissipa em noitadas e festanças o que tem e o que ganha.

•  Falta-lhe medida na maneira de se vestir: veste-se mais suntuosamente do que permitem suas condições.

•  Cortês em seus comportamentos e palavras  faz o propósito de não  dizer palavras injuriosas e ofensivas e resolve não dar resposta aos que o provocam maldosamente.

•  Ambicioso, audacioso, empreendedor.

•  É escolhido como rei da juventude; pagas as despesas e tem humor jovial.

•  Aproxima-se dos pobres e generosamente os cobre de esmolas.

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Síntese de  sua trajetória

Minúscula biografia

• Nascido em Assis, no vale de Espoleto, na Itália em 1181 ou 1182. Passa sua juventude no luxo e nas diversões.  Sonha com a glória e quer ser cavaleiro ( quer entrar no universos das armas).  Com a idade de vinte anos, devido às rivalidades entre as cidades italianas, ele é feito prisioneiro em Perugia alguns meses.

• Insatisfeito com a vida que leva Francisco faz uma peregrinação a Roma ao longo da qual troca seus ricos trajes com os trapos de um mendigo.

• Em oração na velha igreja de São Damião, Francisco compreende que o Senhor lhe dirige a palavra para que ele restaurasse a igreja que estava em ruínas.  Vendendo o que tem  busca realizar esta missão.  Seu pai, farto com as loucuras do Filho, com o gastar tudo  em benefício dos pobres  pela a intervenção do bispo de Assis.  Francisco resolve então abandonar tudo, colocar suas vestes nas mãos de seu pai e seguir o Pai do céu.

• Ouve o evangelho  do envio dos apóstolos que deviam partir em missão sem nada. Esta foi a grande revelação de sua vida. Alguns assisienses se juntam a ele.

• Francisco redige sua primeira Regra e faz  uma viagem a Roma para pedir a confirmação por parte do Papa.

• Em 1212 uma jovem de dezesseis anos, Clara,  resolve seguir a Pobreza pregada por Francisco.

• Naquele ambiente das Cruzadas e  desejando encontrar-se com os muçulmanos  como irmãos,   Francisco parte para o Egito para encontrar o Sultão e falar-lhe de Deus e de Cristo.

• Em 1223  redige uma nova Regra.

• Em 1224, já doente e exausto, Francisco recebe os estigmas do Cristo  crucificado.

• Morre a 3 de outubro de 1226, com a idade de quarenta e quatro anos. É canonizado dois anos mais tarde pelo papa  Gregório IX.

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Para continuar a reflexão

Começos da vida de Francisco  –  2 Celano  3-4

Para  refletir

1.    O que mais chama sua atenção nestes texto?
2.    O que você já conhece a respeito de Francisco de Assis?