Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fevereiro 2018

FEVEREIRO 2018

Diante de seus olhos, na tela do computador, mais um número de nossa revista eletrônica. Quantos temas, quantos lembretes, quantas palavras que pretendem chegar ao fundo de seu coração. Fevereiro, começo da Quaresma, tempo de reforçar as baterias.  Sempre de novo o tema da família. Lá no fundo do baú: pérolas do diário de um  homem de letras e buscador do coração dos homens (Ambroise-Marie Carré,OP) e  reflexões antigas e sempre novas sobre o senso comunitário de nossas casas de vida consagrada. A vida precisa ser reinventada a cada dia. Boa leitura!

Frei Almir Ribeiro Guimarães

I. PARA COMEÇO DE CONVERSA

Quaresma é tempo de examinar o coração

 

Tempo de ser levado aos leprosos

Há o tempo de trabalhar e o tempo de descansar, o tempo de rir e o tempo de chorar, o tempo de caminhar e o tempo de sentar-se, há o tempo do Natal e o tempo da Quaresma…

Não estamos mais numa Igreja de cristandade. Hoje as pessoas que quiserem ser discípulas de Cristo Jesus terão que fazer uma escolha, uma opção. Precisam optar. Não basta apenas viver à sombra de uma tradição dita cristã. Quaresma, jejum, abstinência são palavras que pouco falam aos nossos contemporâneos. Evocam o tempo das coisas assentadas. O que restou de tudo? Não se come carne na quarta-feira de cinzas nem na sexta-feira da paixão. Alguns lembram ainda o tempo em que se cobriam as imagens com panos roxos. Em nosso tempo se organizam de tal forma que possam fazer viagens ao exterior ou no país nos dias da semana santa. Desde a quinta-feira da semana santa até amanhã da segunda-feira depois da Páscoa, o trânsito se torna caótico. Difícil para nossos contemporâneos ir mais além. Quaresma, advento, tempo comum da vida da Igreja? Vagas lembranças. O que conta é o tempo dos contratos, da abertura das bolsas, do jornal nacional…

Os que queremos ser discípulos do Senhor, no entanto, esforçamo-nos em viver intensamente esse tempo favorável, essa estação  privilegiada de  algumas semanas em que, na comunidade cristã e em nossa vida pessoal, procuramos reacender nossa paixão por  Cristo e tentar nos preparar  para viver,  a partir do interior,  nossa própria história pessoal, nossa adesão ao Senhor, nossa morte com ele no alto da cruz e o empenho de procurá-lo na manhã de Páscoa com  Maria

Tudo começa com nada ou quase nada. Participamos da imposição das cinzas  na quarta-feira. Somos fragilidade, poeira, cinza.  Não temos que vangloriar de comportamentos luminosos. Somos fragilidade. Fazemos questão de receber esse sacramental.  Cinza na cabeça, na fronte. O rito das cinzas inaugura um período em que somos convidados a prestar mais atenção aos alegres compromissos com Cristo. Fragilidade e convite à mudança de  vida.  Sem masoquismos e “dolorismos”,  queremos entrar numa trilha de conversão, de mudança de  vida.  Não somos convidados a rasgar as vestes, mas o coração.  O coração contrito e humilde é a única porta por onde pode a Graça penetrar. Quaresma tempo de examinar o coração, as intenções. Sim, tempo de revalorização dos atos de penitência.  Não basta apenas acompanhar  o sobe e desce  da Bolsa e do dólar.  Será preciso ver  senão andamos voltando para as cebolas do  Egito, se estamos na pista da plenitude evangélica. Se não deixamos o coração endurecer.

Conversão, mudar de vida, mudar para viver. “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar uma vida de penitência: como estivesse em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia com eles. E enquanto eu me retirava deles, justamente o que antes de parecia amargo  se me converteu em doçura da alma e do corpo. E depois  disto  demorei  só bem pouco e abandonei o mundo” (Testamento de São Francisco 1-3). Quaresma tempo de olhar o outro,  os outros, os de perto e os de longe. Tempo de fazer com que o doce se transforme em  amargo e o amargo, em doce. Tempo de deixar a mentalidade mundana.

Na quarta-feira da poeira, das cinzas é proclamado o evangelho da verdade, das transparências. Os que jejuam façam-no com rosto alegre. Os que oram deixem de lado o estardalhaço. Que entrem no seu quarto. O Pai não precisa de esforços das cordas vocálicas, mas de corações transparentes. Quando o bem foi feito será sempre realizado sem alarido. A mão esquerda não sabe o que anda fazendo a direita.

Poeira, insignificância, cinzas… terra seca… deserto. Logo no início da Quaresma estaremos com Jesus no deserto. Silêncio,  espaço de ouvir bem as coisas que nos foram ditas.  Silêncio e deserto de nós mesmos, de nossos desejos, de nossos projetos.  Tempo de deixar as coisas se assentarem.  Marcos lembra que, depois de ter vencido as tentações, Jesus vivia uma paradisíaca paz com os animais selvagens.  Vencida a tentação, instaura-se o paraíso.

Quaresma, tempo de escutar o Filho amado. Jesus se transfigura diante de seus discípulos. Lavadeira alguma na terra conseguiria fazer mais brancas as vestes do Senhor no alto da transfiguração.   Na Quaresma, como nunca, a voz do Pai nos atinge: “Este é o meu Filho muito amado. Ouvi-o”.  A Transfiguração é lida nos segundo domingo da Quaresma. Ela funciona, na urdidura litúrgica, como um momento de fortalecimento antes da cruz.

Quaresma, tempo de olhar para a cruz. Essas tantas cruzes. Cruz que cobre nossa frente e nosso rosto ao traçamos seu sinal sobre nós mesmos. Crucifixos pendurados nos pescoços. Pequenas cruzes avisando naquela curva perigosa da estrada a vida de alguém foi ceifada em terrível acidente. Cruzes de ouro e de pedras preciosas que sempre lembram a cruz do Esposo e Amado. Tempo de lembrar  que o amor levou o mais belo dos filhos dos homens até  o gesto de amor mais acendrado.  Ele, contorcendo-se de dores, abriu para os que dele aproximavam uma estrada luminosa. Não podemos parar nas cruzes artísticas, de madeira fina ou de metais preciosos.  A cruz é sempre a cruz. Renúncia,  esquecimento de si em vista de um bem maior. Quaresma, tempo de sair pelas ruas, como sugeria Francisco de Assis, depois de contemplar o crucificado e dizer por palavras e pela vida: “O amor não é amado, o amor não é amado”.

Quaresma tempo de recordar. Quaresma e semana santa. Piscina de Siloé, Mar  Vermelho,  água  jorrando da pedra, água do poço de Samaria… tudo isso vai penetrando em nós. Quaresma, tempo de renovar os compromissos batismais, renovar os propósitos, deixar-se lavar pela misericórdia do Pai. Morrer a si mesmo. Não deixar que o tempo da quaresma passe sem que tenhamos renovado o morrer e o renascer com Cristo. Não somos meros membros de uma religião,  não  nos contentamos que nossos nomes estejam nos registros das secretarias paroquias ou nos arquivos diocesanos.  Pessoal e comunitariamente renovamos nossa adesão. Água que leva o que impuro, água que recria a vida, agua do peito aberto do Senhor Jesus no alto da cruz.  Não existe maior amor do que dar a vida pelos seus.

II. TEXTOS SELETOS

Mistério da montanha: Lugar de silêncio

 

Mistério da montanha! Lugar de silêncio.

Ali agitações interiores se acalmam.  Espaço  em que  Deus se manifesta aos que perdem o  fôlego alçando as  alturas das estrelas!

 

Jesus costumava subir à montanha para rezar.  Passava a noite em intimidade com o Pai. Buscava o silêncio, de modo particular na montanha. Fez  assim com que seus discípulos também procurassem se afastar do burburinho e buscassem as alturas silenciosas. Silêncio de ruídos e silêncio de si mesmos. Depois de uma permanência no silêncio da montanha  Jesus  buscava novamente a planície.

Por que a montanha? A montanha sempre foi considerada esse lugar à parte, de encontro consigo mesmo e com a divindade.

Olimpo, residência dos deuses.

Himalaia, teto do mundo.

Aproxima dos deuses que  estão nas alturas, nos céus.

Deixa-se, por um tempo, o que está em baixo.

Busca-se o que está no alto.

As alturas ampliam a visão e lá o ar é mais puro.

Escalando montanhas escarpadas pode-se mesmo morrer.

A montanha é perigosa.

A permanência na montanha  pode também ser ocasião de renascimento.

Nós, cristãos, rezamos melhor quando vivemos uma experiência de montanha.

Moisés sobe ao Horeb, sozinho.  O povo terrificado permanece na planície.

Ingressando na nuvem, Moisés vai selar a Aliança, no  estrépito e furor da tempestade. Quando  desce,  seu rosto  resplandece com a glória de Deus  que havia encontrado nas alturas.

Ninguém se aproxima impunemente do fogo.  Por isso, Moisés cobre o rosto.

Elias, por sua vez,  também sobe ao Horeb.

Ao subir leva consigo solidão,  abandono e angústia.

Desta vez nada de tempestade ou fogaréu, mas  o rumor de uma brisa suave, uma voz, um silêncio sutil.  O profeta também cobre o rosto.

Abraão é aquele que por primeiro havia subido, com o coração em pedaços, com seu Isaque, seu “sorriso de Deus”.

Os dois caminham sozinhos, bem unidos, num terrificante silêncio.

Lá no alto Abraão fica sabendo o Deus da vida não gosta da morte:

“Para, Abraão,  sei que temes a Deus”.

Inspirado em:
Frère Jean-Pierre Lintanf, OP
Prier  226,  nov  2000

III. CENAS FAMILIARES

Um buquê de alegrias e apertos no coração

 

Família, realidade camaleoa,  vidas que se entrelaçam, histórias que vão sendo tecidas do mesmo pano, terra de encontros e de desencontros, espaço aberto  à vida e estação final da aventura humana.

 

Fachada de uma maternidade. “Casa de Saúde e Maternidade São José”. Abre-se a porta de vidro que dá para o alpendre. Sai um homem carregando uma maleta, uma pequena maleta e uma mulher que acaba de dar à luz. A avó paterna vem atrás  carregando a criança envolta em paninhos, como Maria de Nazaré havia  protegido seu menino. É o primeiro filho do casal. Chegou com saúde. Graças a Deus. O que será desse menino? Quem poderá ajudá-lo a ser profundamente gente? Que riquezas estão escondidas nesse pinguinho de gente,  tão frágil, tão delicadamente frágil? Todos vão para casa. Uma família.  Os que chegam ao mundo são acolhidos numa casa, num lar, numa família. Espaço de luzes, de capacidade de encantamento. Que será desse menino, desse sonho de Deus?  Será que aqueles que cercam estarão à altura da missão de despertar o ser humano que existe nesse pedacinho de gente e de apresentá-lo a Deus?

Domingo à tarde. Tempos antigos. Todos em casa. Casa grande, com quintal, mangueiras e bananeiras, doce melodia feita pela água de um córrego acariciando delicadamente as pedras do seu eito. Pelas quatro da tarde chega a tia Zuleide com o marido, primos pirralhos. Todos chegam para prosear. Tia Zuleide traz um vidro cheio de biscoitos de araruta feitos por ela. Os filhos da casa correm os primos. Sujam as roupas de domingo. Transpiram.  A menorzinha fica olhando a galinha carijó com seus oito pintinhos mal e mal saídos da casca dos ovos. Depois vem o café com leite, com pão feito em casa no forno de barro, de tijolos de barro, salame e  queijo  de minas.  Claro,  momento de experimentar os biscoitos de araruta da  tia Zuleide. Pelas seis da tarde os tios se vão e a família  se recolhe  no que  antigamente se dizia: lar, doce lar.

Não creio que possamos dizer que aquele abrigo contra a chuva e o sol seja uma casa, uma residência, um lar. Vive ali uma mulher e seus dois filhos. Dois ou três. O homem que partilha o mesmo teto   já havia trazido um guri de outra mulher, de outra união. Sim, o mais velho é filho só do marido. Marido e mulher? Casados sem lenço nem documento.  Juntado de boa fé, casado é. A mulher está fortemente desconfiada que o homem está tendo uma aventura.  Muita conversa misteriosa no celular. Uma morena cobradora de estacionamentos na Rua Princesa Isabel. De repente, ela sentiu  que  vai ficar sozinha, que vai ter que administrar sozinha a casa, o barraco,  a vida das crianças.  Difícil  fazer de tudo aquilo, desse caos uma comunidade de vida, de dom, de amor, uma família.

Naquela casa ficou combinado que ninguém devia atrapalhar ninguém. Claro, estudos, trabalho, um certo respeito.  Cada um fazendo o essencial: ganhar dinheiro, aproveitar a vida, sem  incomodar os outros.  Liberdade, liberdade. Sempre cada um fazendo o que bem apetecesse: sair com os amigos, voltar a hora que se quiser, participar das baladas, mas na volta não acordar os que já dormem,  não  chegar bêbado batendo as portas, viagens  decididas na última hora, levar amigos e a namorada ou o namorado  para casa,  desde que não atrapalhasse os outros… cada um fazendo o que bem apetecesse. Nada de discussões. Agenda livre. Cada um com suas chaves, sua mesada, seus projetos. Uma vez ou outra se encontrando. Mas nesses momentos  nada de coisas sérias.  Tudo light. Vivre pour vivre.

A parede  da sala daquela casa está cheinha de retratos.   Não cabe mais nenhum. Alguns já estão por demais amarelados. Tantos retratos, tantas épocas. Além das fotos nas paredes, outras em porta-retratos por sobre os velhos  móveis. Há pessoas que ficaram mais bonitas com o passar do tempo. Outros enfeiaram.  Casamento dos avós e dos pais. O vô tocando trombone no coreto da praça. Fotos do pai durante  o serviço militar, dos desfiles de sete de setembro na Avenida 15 de novembro. A velha senhora apoiando-se em uma bengala, sem que ninguém esteja vendo,   percorre essa galeria cheia de coisas do coração. De repente, tira do bolso um lencinho de cambraia  para enxugar um lágrima indiscreta  que  rolava rosto abaixo.

Há um certo silêncio durante aquela refeição. Todos estão à volta da mesa.  Foram se servir num aparador. O marido chega. Diz um “oi” e coloca o celular perto do prato. Ligado é    Como ligados estão os sofísticos engenhos dos meninos e de uma namorada de um dos meninos. Uns e outros, de modo especial os adolescentes,  entre uma garfada e outra, já com a cabeça torta, recebem mensagens que respondem imediatamente. Não há tempo a perder. Ninguém se olha. Ninguém escuta ninguém. Ninguém se dá ao trabalho de pensar que ali, à sua volta, há vidas que precisam de  uma presença de coração a coração.

Já se esperava pela notícia. O pai não estava nada bem. Os médicos não tinham mais esperança. Um crise violenta, internação,  loucuras do músculo cardíaco, cirurgia, unidade de tratamento intensivo, coma. Prepara-se o funeral. Chegam uns e outros. Um ministro de exéquias fez uma cerimônia sem alma. “Nariz de cera”. Discurso doutrinário e meloso, incapaz de passar esperança.  Agora será preciso esvaziar os armários, dar camisas e calças para um bazar  Pintar o quarto. A vida precisa continuar, mas a dor custa a passar.

A mocinha volta da faculdade. São 11 horas da noite Já trabalha como estagiária no escritório de advocacia de um tio, irmão da mãe. Abre a porta e no canto da sala quase sempre vê o pai e mãe sentados ali. Costumam fazer juntos uma prece a Deus nosso Senhor antes de dormir. Gostam dos salmos. O Senhor é o pastor de suas vidas que os conduz para verdes pastagens. Gostam de bendizer o Senhor pela lua e pelas estrelas. A moça  toma um copo de leite, veste o pijama, fecha os olhos e reza também um salmo para jogar-se nos braços do Morfeu, mas principalmente no coração do Deus que  seus pais tanto amam.

Cenas familiares:  um buquê de alegrias e apertos no coração!!!

IV. EDUCAÇÃO

“Paráfrase educativa”, de um autor anônimo

 

Se eu ensinasse com a categoria dos melhores professores, mas não tivesse amor, nada mais seria que um inteligente orador ou uma pessoa espirituosa e simpática.

Se conhecesse todas as técnicas e tivesse experimentado os melhores métodos, ou se tivesse uma formação que me permitisse ter a real sensação de competência, mas não compreendesse o que meus alunos experimentam e como pensam, tal não seria suficiente para ser um bom professor.

Se eu passasse muitas horas a me preparar para não sentir tensão nem nervosismo na hora da aula, mas não tentasse  amar e compreender os problemas pessoais de meus estudantes, não bastaria ainda para ser um  bom professor.

O professor será alguém repleto de amor, paciência e bondade.  Abre o caminho para que as pessoas a ele se confiem. Não “fofoca”.  Não se deixa facilmente desencorajar. Não se comporta de maneira inconveniente.  Para seus alunos é vivo exemplo de bom comportamento e serve de ponto de referência.

Nada detém o amor. Se tivermos amor então nossos esforços terão força criativa e nossa vida deixará traços na vida de nossos alunos.  No momento permanecem as técnicas, os métodos, o amor. Dos três, o mais importante é o amor.

De um educador anônimo

V. COTIDIANO

Lá no fundo do baú: Pérolas do diário de um homem

 

A  Ordem dos  Pregadores  (OP), os filhos de São Domingos, os dominicanos constituíram, ao longo dos tempos, uma prestigiosa Ordem  que deu à Igreja uma plêiade de homens de Deus.  Bem lá no passado, em sua origem, encontramos Santo Tomás de Aquino, o gigante que fez  uma síntese da doutrina cristã na  sua Suma Teológica. A reforma da Igreja do  Vaticano II  muito deveu a  Yves  Congar e Marie-Dominique Chenu, dominicanos renomados. Fomos buscar pérolas nos escritos do diário do Padre Ambroise-Marie Carré, um dos dominicanos mais intelectuais mais apreciados na França a partir dos anos quarenta do século passado. Nasceu em 1908 e faleceu  em 2004, com  96 anos!  Deu sua vida para o anúncio do Evangelho acompanhando pessoas em seu caminho para  Deus.  Fez parte da Resistência francesa no tempo da guerra, foi membro da Academia francesa de letras, capelão dos artistas e pregador da quaresma na prestigiosa  Catedral de Notre-Dame  de Paris. Consentiu que fossem publicadas páginas de seu  Diário pessoal.  A revista  “Fêtes et  Saisons” dos dominicanos de Paris  (out.1988) organizou uma coleção de algumas datas de sua vida.  É de lá que pescamos  estas pérolas.

 


1972
7 de fevereiro

O Espírito Santo pode fazer cambalhotas

Alguns amigos estávamos reunidos falando dos recentes pontificados.  Com toda naturalidade, a conversa aborda a eleição de João  XXIII, escolha que teria grandes consequências. Ninguém esperava que ela acontecesse. Um de nós, pessoa profundamente cristã e respeitosa da Igreja, teve esta fórmula inesperada:  “O Espírito  dá  suas cambalhotas”.


1973
20 de julho

Um  bilhete de Theilhard de Chardin 

No tempo em que realizava suas grandes viagens científicas na   China, a irmã do Padre  Theilhard de Chardin,  três anos mais velha do que ele, veio a falecer, depois de um longa vida de sofrimento.  Tive ocasião de ler texto que, nesta ocasião escreveu o Pe. Theihard de Chardin e que repeti inúmeras vezes ao longo de minhas conferências. Linhas extraordinárias!  Como não pensar  no sentido que o Padre Teilhard  tinha  da ação e de todo respeito pelos que constroem algo com suas mãos  para continuar a criação de Deus? Não podia deixar de dar importância a este bilhete:  “Margarida, minha irmã, enquanto  eu  me esforçava  orientando minha atenção para as forças positivas do universo, atravessando continentes e mares, apaixonadamente ocupado na contemplação do aparecimento  de todas as cores do universo, tu,  imóvel,  toda estendida,    metamorfoseavas silenciosamente em luz, no mais profundo de ti mesma, as mais densas sombras do mundo.  Aos olhos de Deus, dize-me  quem de nós dois teve a melhor parte?”


1974
Sábado santo  –  13  de abril

Lembrança de uma graça vivida no passado

Era um Sábado Santo. Havia pregado uma Quaresma em Notre-Dame. Amigos muito queridos haviam me levado à Espanha  para fazer a peregrinação de São Tiago de Compostela. No percurso deveríamos pernoitar em  Léon.

Mal havíamos ali chegado dirigimo-nos à catedral, obra-prima contemporânea da catedral de Chartres. Como poderia eu esquecer a comoção que experimentei ao entrar naquele templo? Umas poucas lâmpadas estavam acesas. Os últimos raios de sol chegavam a este ou aquele vitral com um azul profundíssimo. O organista, preparando-se para a solenidade do dia seguinte,  com  grande doçura  executava uma peça de Bach.

Na vida ainda não me havia dado conta que o recolhimento podia provocar  um tal inebriamento. A ressurreição de Jesus tornava-se então uma certeza cuja intensidade fazia com que eu fosse perdendo o sentimento de qualquer outra  realidade.  Foi difícil  deixar aquele espaço.

Esta noite fecho os olhos para orientar meu pensamento para  León. Julien Green escreveu: A lembrança de uma graça passada pode ser uma nova graça”.


1978
20 de setembro

Edith  Piaf

Devo-lhe uma das mais fortes emoções religiosas  de minha vida. Em 1945, ela já era muito célebre  sem ainda ter alcançado a glória  que a esperava. Por curiosidade fui à Sala Pleyel. Como aconteceu  posteriormente experimentei uma sedução por todas as canções do programa. Houve, no entanto,  um  momento  excepcional. Ela cantou:  “Monsieur  Saint Pierre”.  Poucas vezes depois ele retomou esta súplica.

Naquela noite ouvi um grito de humanidade que atingia o fundo de meu coração.


1979
26  de setembro

Paulo VI

São numerosos os que guardamos na memória a cena dolorosa  que aconteceu num sábado  do mês de agosto do ano passado  da qual foram testemunhas milhões de telespectadores: cercado de uma imensa multidão, praça de  São Pedro a urna funerária  sobre a qual repousava somente o  Evangelho…

Quem foi Paulo VI? Melhor do que ninguém que o diga Jean Guitton no seu Paul VI secret,  fruto de inúmeras conversas com o sumo pontífice.  Desejo aqui chamar atenção para algumas impressões pessoais. Nele havia alguma coisa de Pio XII e  de João XXIII.  Alguns artigos da imprensa  andaram insistindo sobre a segunda parte da comparação.  Um imenso pudor  de sentimentos impedia  Paulo VI de manifestar  a bondade  que, na verdade eram dos traços maiores de sua personalidade e que seu predecessor  irradiava sem limites.

Desde a primeira audiência que o Papa me concedeu fui  testemunha de tudo isso em junho de 1963  em  sua biblioteca particular.  Fazendo as pregações de quaresma em Notre-Dame o Papa me perguntou se, através da correspondência que eu recebia  eu tinha condições de aprofundar a vida cristã e abordar a incredulidade na França.  O tom de sua voz era grave. Paulo Vi aprovava ou desaprovava. Citava nomes e chegava mesmo a tomar notas. Presidindo a todas as Igrejas naquele momento ele se ocupava de refletir sobre a França. Tivemos, por assim dizer, com a  conversa, um momento de um grupo de trabalho. Dando-me conta que  nosso encontro ia terminando lembrei-me de um pedido de  Dom  del Gallo.  Diga ao Papa que ele descanse, passeie pelos jardins do Vaticano. O Papa sorriu, agradeceu por ter lhe transmitido o recado de Dom Gallo e me envolveu com um olhar  extraordinariamente doce.  Não me deixou ajoelhar e me abraçou como anteriormente me havia estreitado em seus braços  João XXIII.


1987
30  de novembro

Morrer  mártir

Um dos meus sonhos de adolescência que aparentemente não vai se realizar  foi aquele que tive quando andava  frequentando  as Missões Estrangeiras na rue  du Bac:  o querer morrer mártir. Não posso esquecer daquele dia em que preparando um  retiro  caiu sob meus olhos  um texto de São João da Cruz que falava exatamente daqueles que desejavam morrer mártires. O pedido pode ser atendido de muitas maneiras e de formas imprevistas. Deseja-se o martírio do missionário e outros tormentos podem nos atingir  tanto no corpo como na mente.  “Senhor,  que eu acolha  sempre na alegria de formas insuspeitadas  a realização do velho sonho”.