Fevereiro 2018
- FEVEREIRO 2018
- I. PARA COMEÇO DE CONVERSA
- II. TEXTOS SELETOS
- III. CENAS FAMILIARES
- IV. EDUCAÇÃO
- V. COTIDIANO
FEVEREIRO 2018
Diante de seus olhos, na tela do computador, mais um número de nossa revista eletrônica. Quantos temas, quantos lembretes, quantas palavras que pretendem chegar ao fundo de seu coração. Fevereiro, começo da Quaresma, tempo de reforçar as baterias. Sempre de novo o tema da família. Lá no fundo do baú: pérolas do diário de um homem de letras e buscador do coração dos homens (Ambroise-Marie Carré,OP) e reflexões antigas e sempre novas sobre o senso comunitário de nossas casas de vida consagrada. A vida precisa ser reinventada a cada dia. Boa leitura!
Frei Almir Ribeiro Guimarães
I. PARA COMEÇO DE CONVERSA
Quaresma é tempo de examinar o coração
Tempo de ser levado aos leprosos
Há o tempo de trabalhar e o tempo de descansar, o tempo de rir e o tempo de chorar, o tempo de caminhar e o tempo de sentar-se, há o tempo do Natal e o tempo da Quaresma…
⇒ Não estamos mais numa Igreja de cristandade. Hoje as pessoas que quiserem ser discípulas de Cristo Jesus terão que fazer uma escolha, uma opção. Precisam optar. Não basta apenas viver à sombra de uma tradição dita cristã. Quaresma, jejum, abstinência são palavras que pouco falam aos nossos contemporâneos. Evocam o tempo das coisas assentadas. O que restou de tudo? Não se come carne na quarta-feira de cinzas nem na sexta-feira da paixão. Alguns lembram ainda o tempo em que se cobriam as imagens com panos roxos. Em nosso tempo se organizam de tal forma que possam fazer viagens ao exterior ou no país nos dias da semana santa. Desde a quinta-feira da semana santa até amanhã da segunda-feira depois da Páscoa, o trânsito se torna caótico. Difícil para nossos contemporâneos ir mais além. Quaresma, advento, tempo comum da vida da Igreja? Vagas lembranças. O que conta é o tempo dos contratos, da abertura das bolsas, do jornal nacional…
⇒ Os que queremos ser discípulos do Senhor, no entanto, esforçamo-nos em viver intensamente esse tempo favorável, essa estação privilegiada de algumas semanas em que, na comunidade cristã e em nossa vida pessoal, procuramos reacender nossa paixão por Cristo e tentar nos preparar para viver, a partir do interior, nossa própria história pessoal, nossa adesão ao Senhor, nossa morte com ele no alto da cruz e o empenho de procurá-lo na manhã de Páscoa com Maria
⇒ Tudo começa com nada ou quase nada. Participamos da imposição das cinzas na quarta-feira. Somos fragilidade, poeira, cinza. Não temos que vangloriar de comportamentos luminosos. Somos fragilidade. Fazemos questão de receber esse sacramental. Cinza na cabeça, na fronte. O rito das cinzas inaugura um período em que somos convidados a prestar mais atenção aos alegres compromissos com Cristo. Fragilidade e convite à mudança de vida. Sem masoquismos e “dolorismos”, queremos entrar numa trilha de conversão, de mudança de vida. Não somos convidados a rasgar as vestes, mas o coração. O coração contrito e humilde é a única porta por onde pode a Graça penetrar. Quaresma tempo de examinar o coração, as intenções. Sim, tempo de revalorização dos atos de penitência. Não basta apenas acompanhar o sobe e desce da Bolsa e do dólar. Será preciso ver senão andamos voltando para as cebolas do Egito, se estamos na pista da plenitude evangélica. Se não deixamos o coração endurecer.
⇒ Conversão, mudar de vida, mudar para viver. “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar uma vida de penitência: como estivesse em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia com eles. E enquanto eu me retirava deles, justamente o que antes de parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo. E depois disto demorei só bem pouco e abandonei o mundo” (Testamento de São Francisco 1-3). Quaresma tempo de olhar o outro, os outros, os de perto e os de longe. Tempo de fazer com que o doce se transforme em amargo e o amargo, em doce. Tempo de deixar a mentalidade mundana.
⇒ Na quarta-feira da poeira, das cinzas é proclamado o evangelho da verdade, das transparências. Os que jejuam façam-no com rosto alegre. Os que oram deixem de lado o estardalhaço. Que entrem no seu quarto. O Pai não precisa de esforços das cordas vocálicas, mas de corações transparentes. Quando o bem foi feito será sempre realizado sem alarido. A mão esquerda não sabe o que anda fazendo a direita.
⇒ Poeira, insignificância, cinzas… terra seca… deserto. Logo no início da Quaresma estaremos com Jesus no deserto. Silêncio, espaço de ouvir bem as coisas que nos foram ditas. Silêncio e deserto de nós mesmos, de nossos desejos, de nossos projetos. Tempo de deixar as coisas se assentarem. Marcos lembra que, depois de ter vencido as tentações, Jesus vivia uma paradisíaca paz com os animais selvagens. Vencida a tentação, instaura-se o paraíso.
⇒ Quaresma, tempo de escutar o Filho amado. Jesus se transfigura diante de seus discípulos. Lavadeira alguma na terra conseguiria fazer mais brancas as vestes do Senhor no alto da transfiguração. Na Quaresma, como nunca, a voz do Pai nos atinge: “Este é o meu Filho muito amado. Ouvi-o”. A Transfiguração é lida nos segundo domingo da Quaresma. Ela funciona, na urdidura litúrgica, como um momento de fortalecimento antes da cruz.
⇒ Quaresma, tempo de olhar para a cruz. Essas tantas cruzes. Cruz que cobre nossa frente e nosso rosto ao traçamos seu sinal sobre nós mesmos. Crucifixos pendurados nos pescoços. Pequenas cruzes avisando naquela curva perigosa da estrada a vida de alguém foi ceifada em terrível acidente. Cruzes de ouro e de pedras preciosas que sempre lembram a cruz do Esposo e Amado. Tempo de lembrar que o amor levou o mais belo dos filhos dos homens até o gesto de amor mais acendrado. Ele, contorcendo-se de dores, abriu para os que dele aproximavam uma estrada luminosa. Não podemos parar nas cruzes artísticas, de madeira fina ou de metais preciosos. A cruz é sempre a cruz. Renúncia, esquecimento de si em vista de um bem maior. Quaresma, tempo de sair pelas ruas, como sugeria Francisco de Assis, depois de contemplar o crucificado e dizer por palavras e pela vida: “O amor não é amado, o amor não é amado”.
⇒ Quaresma tempo de recordar. Quaresma e semana santa. Piscina de Siloé, Mar Vermelho, água jorrando da pedra, água do poço de Samaria… tudo isso vai penetrando em nós. Quaresma, tempo de renovar os compromissos batismais, renovar os propósitos, deixar-se lavar pela misericórdia do Pai. Morrer a si mesmo. Não deixar que o tempo da quaresma passe sem que tenhamos renovado o morrer e o renascer com Cristo. Não somos meros membros de uma religião, não nos contentamos que nossos nomes estejam nos registros das secretarias paroquias ou nos arquivos diocesanos. Pessoal e comunitariamente renovamos nossa adesão. Água que leva o que impuro, água que recria a vida, agua do peito aberto do Senhor Jesus no alto da cruz. Não existe maior amor do que dar a vida pelos seus.
II. TEXTOS SELETOS
Mistério da montanha: Lugar de silêncio
Mistério da montanha! Lugar de silêncio.
Ali agitações interiores se acalmam. Espaço em que Deus se manifesta aos que perdem o fôlego alçando as alturas das estrelas!
Jesus costumava subir à montanha para rezar. Passava a noite em intimidade com o Pai. Buscava o silêncio, de modo particular na montanha. Fez assim com que seus discípulos também procurassem se afastar do burburinho e buscassem as alturas silenciosas. Silêncio de ruídos e silêncio de si mesmos. Depois de uma permanência no silêncio da montanha Jesus buscava novamente a planície.
Por que a montanha? A montanha sempre foi considerada esse lugar à parte, de encontro consigo mesmo e com a divindade.
Olimpo, residência dos deuses.
Himalaia, teto do mundo.
Aproxima dos deuses que estão nas alturas, nos céus.
Deixa-se, por um tempo, o que está em baixo.
Busca-se o que está no alto.
As alturas ampliam a visão e lá o ar é mais puro.
Escalando montanhas escarpadas pode-se mesmo morrer.
A montanha é perigosa.
A permanência na montanha pode também ser ocasião de renascimento.
Nós, cristãos, rezamos melhor quando vivemos uma experiência de montanha.
Moisés sobe ao Horeb, sozinho. O povo terrificado permanece na planície.
Ingressando na nuvem, Moisés vai selar a Aliança, no estrépito e furor da tempestade. Quando desce, seu rosto resplandece com a glória de Deus que havia encontrado nas alturas.
Ninguém se aproxima impunemente do fogo. Por isso, Moisés cobre o rosto.
Elias, por sua vez, também sobe ao Horeb.
Ao subir leva consigo solidão, abandono e angústia.
Desta vez nada de tempestade ou fogaréu, mas o rumor de uma brisa suave, uma voz, um silêncio sutil. O profeta também cobre o rosto.
Abraão é aquele que por primeiro havia subido, com o coração em pedaços, com seu Isaque, seu “sorriso de Deus”.
Os dois caminham sozinhos, bem unidos, num terrificante silêncio.
Lá no alto Abraão fica sabendo o Deus da vida não gosta da morte:
“Para, Abraão, sei que temes a Deus”.
Inspirado em:
Frère Jean-Pierre Lintanf, OP
Prier 226, nov 2000
III. CENAS FAMILIARES
Um buquê de alegrias e apertos no coração
Família, realidade camaleoa, vidas que se entrelaçam, histórias que vão sendo tecidas do mesmo pano, terra de encontros e de desencontros, espaço aberto à vida e estação final da aventura humana.
⇒ Fachada de uma maternidade. “Casa de Saúde e Maternidade São José”. Abre-se a porta de vidro que dá para o alpendre. Sai um homem carregando uma maleta, uma pequena maleta e uma mulher que acaba de dar à luz. A avó paterna vem atrás carregando a criança envolta em paninhos, como Maria de Nazaré havia protegido seu menino. É o primeiro filho do casal. Chegou com saúde. Graças a Deus. O que será desse menino? Quem poderá ajudá-lo a ser profundamente gente? Que riquezas estão escondidas nesse pinguinho de gente, tão frágil, tão delicadamente frágil? Todos vão para casa. Uma família. Os que chegam ao mundo são acolhidos numa casa, num lar, numa família. Espaço de luzes, de capacidade de encantamento. Que será desse menino, desse sonho de Deus? Será que aqueles que cercam estarão à altura da missão de despertar o ser humano que existe nesse pedacinho de gente e de apresentá-lo a Deus?
⇒ Domingo à tarde. Tempos antigos. Todos em casa. Casa grande, com quintal, mangueiras e bananeiras, doce melodia feita pela água de um córrego acariciando delicadamente as pedras do seu eito. Pelas quatro da tarde chega a tia Zuleide com o marido, primos pirralhos. Todos chegam para prosear. Tia Zuleide traz um vidro cheio de biscoitos de araruta feitos por ela. Os filhos da casa correm os primos. Sujam as roupas de domingo. Transpiram. A menorzinha fica olhando a galinha carijó com seus oito pintinhos mal e mal saídos da casca dos ovos. Depois vem o café com leite, com pão feito em casa no forno de barro, de tijolos de barro, salame e queijo de minas. Claro, momento de experimentar os biscoitos de araruta da tia Zuleide. Pelas seis da tarde os tios se vão e a família se recolhe no que antigamente se dizia: lar, doce lar.
⇒ Não creio que possamos dizer que aquele abrigo contra a chuva e o sol seja uma casa, uma residência, um lar. Vive ali uma mulher e seus dois filhos. Dois ou três. O homem que partilha o mesmo teto já havia trazido um guri de outra mulher, de outra união. Sim, o mais velho é filho só do marido. Marido e mulher? Casados sem lenço nem documento. Juntado de boa fé, casado é. A mulher está fortemente desconfiada que o homem está tendo uma aventura. Muita conversa misteriosa no celular. Uma morena cobradora de estacionamentos na Rua Princesa Isabel. De repente, ela sentiu que vai ficar sozinha, que vai ter que administrar sozinha a casa, o barraco, a vida das crianças. Difícil fazer de tudo aquilo, desse caos uma comunidade de vida, de dom, de amor, uma família.
⇒ Naquela casa ficou combinado que ninguém devia atrapalhar ninguém. Claro, estudos, trabalho, um certo respeito. Cada um fazendo o essencial: ganhar dinheiro, aproveitar a vida, sem incomodar os outros. Liberdade, liberdade. Sempre cada um fazendo o que bem apetecesse: sair com os amigos, voltar a hora que se quiser, participar das baladas, mas na volta não acordar os que já dormem, não chegar bêbado batendo as portas, viagens decididas na última hora, levar amigos e a namorada ou o namorado para casa, desde que não atrapalhasse os outros… cada um fazendo o que bem apetecesse. Nada de discussões. Agenda livre. Cada um com suas chaves, sua mesada, seus projetos. Uma vez ou outra se encontrando. Mas nesses momentos nada de coisas sérias. Tudo light. Vivre pour vivre.
⇒ A parede da sala daquela casa está cheinha de retratos. Não cabe mais nenhum. Alguns já estão por demais amarelados. Tantos retratos, tantas épocas. Além das fotos nas paredes, outras em porta-retratos por sobre os velhos móveis. Há pessoas que ficaram mais bonitas com o passar do tempo. Outros enfeiaram. Casamento dos avós e dos pais. O vô tocando trombone no coreto da praça. Fotos do pai durante o serviço militar, dos desfiles de sete de setembro na Avenida 15 de novembro. A velha senhora apoiando-se em uma bengala, sem que ninguém esteja vendo, percorre essa galeria cheia de coisas do coração. De repente, tira do bolso um lencinho de cambraia para enxugar um lágrima indiscreta que rolava rosto abaixo.
⇒ Há um certo silêncio durante aquela refeição. Todos estão à volta da mesa. Foram se servir num aparador. O marido chega. Diz um “oi” e coloca o celular perto do prato. Ligado é Como ligados estão os sofísticos engenhos dos meninos e de uma namorada de um dos meninos. Uns e outros, de modo especial os adolescentes, entre uma garfada e outra, já com a cabeça torta, recebem mensagens que respondem imediatamente. Não há tempo a perder. Ninguém se olha. Ninguém escuta ninguém. Ninguém se dá ao trabalho de pensar que ali, à sua volta, há vidas que precisam de uma presença de coração a coração.
⇒ Já se esperava pela notícia. O pai não estava nada bem. Os médicos não tinham mais esperança. Um crise violenta, internação, loucuras do músculo cardíaco, cirurgia, unidade de tratamento intensivo, coma. Prepara-se o funeral. Chegam uns e outros. Um ministro de exéquias fez uma cerimônia sem alma. “Nariz de cera”. Discurso doutrinário e meloso, incapaz de passar esperança. Agora será preciso esvaziar os armários, dar camisas e calças para um bazar Pintar o quarto. A vida precisa continuar, mas a dor custa a passar.
⇒ A mocinha volta da faculdade. São 11 horas da noite Já trabalha como estagiária no escritório de advocacia de um tio, irmão da mãe. Abre a porta e no canto da sala quase sempre vê o pai e mãe sentados ali. Costumam fazer juntos uma prece a Deus nosso Senhor antes de dormir. Gostam dos salmos. O Senhor é o pastor de suas vidas que os conduz para verdes pastagens. Gostam de bendizer o Senhor pela lua e pelas estrelas. A moça toma um copo de leite, veste o pijama, fecha os olhos e reza também um salmo para jogar-se nos braços do Morfeu, mas principalmente no coração do Deus que seus pais tanto amam.
Cenas familiares: um buquê de alegrias e apertos no coração!!!
IV. EDUCAÇÃO
“Paráfrase educativa”, de um autor anônimo
Se eu ensinasse com a categoria dos melhores professores, mas não tivesse amor, nada mais seria que um inteligente orador ou uma pessoa espirituosa e simpática.
Se conhecesse todas as técnicas e tivesse experimentado os melhores métodos, ou se tivesse uma formação que me permitisse ter a real sensação de competência, mas não compreendesse o que meus alunos experimentam e como pensam, tal não seria suficiente para ser um bom professor.
Se eu passasse muitas horas a me preparar para não sentir tensão nem nervosismo na hora da aula, mas não tentasse amar e compreender os problemas pessoais de meus estudantes, não bastaria ainda para ser um bom professor.
O professor será alguém repleto de amor, paciência e bondade. Abre o caminho para que as pessoas a ele se confiem. Não “fofoca”. Não se deixa facilmente desencorajar. Não se comporta de maneira inconveniente. Para seus alunos é vivo exemplo de bom comportamento e serve de ponto de referência.
Nada detém o amor. Se tivermos amor então nossos esforços terão força criativa e nossa vida deixará traços na vida de nossos alunos. No momento permanecem as técnicas, os métodos, o amor. Dos três, o mais importante é o amor.
De um educador anônimo
V. COTIDIANO
Lá no fundo do baú: Pérolas do diário de um homem
A Ordem dos Pregadores (OP), os filhos de São Domingos, os dominicanos constituíram, ao longo dos tempos, uma prestigiosa Ordem que deu à Igreja uma plêiade de homens de Deus. Bem lá no passado, em sua origem, encontramos Santo Tomás de Aquino, o gigante que fez uma síntese da doutrina cristã na sua Suma Teológica. A reforma da Igreja do Vaticano II muito deveu a Yves Congar e Marie-Dominique Chenu, dominicanos renomados. Fomos buscar pérolas nos escritos do diário do Padre Ambroise-Marie Carré, um dos dominicanos mais intelectuais mais apreciados na França a partir dos anos quarenta do século passado. Nasceu em 1908 e faleceu em 2004, com 96 anos! Deu sua vida para o anúncio do Evangelho acompanhando pessoas em seu caminho para Deus. Fez parte da Resistência francesa no tempo da guerra, foi membro da Academia francesa de letras, capelão dos artistas e pregador da quaresma na prestigiosa Catedral de Notre-Dame de Paris. Consentiu que fossem publicadas páginas de seu Diário pessoal. A revista “Fêtes et Saisons” dos dominicanos de Paris (out.1988) organizou uma coleção de algumas datas de sua vida. É de lá que pescamos estas pérolas.
1972
7 de fevereiro
O Espírito Santo pode fazer cambalhotas
Alguns amigos estávamos reunidos falando dos recentes pontificados. Com toda naturalidade, a conversa aborda a eleição de João XXIII, escolha que teria grandes consequências. Ninguém esperava que ela acontecesse. Um de nós, pessoa profundamente cristã e respeitosa da Igreja, teve esta fórmula inesperada: “O Espírito dá suas cambalhotas”.
1973
20 de julho
Um bilhete de Theilhard de Chardin
No tempo em que realizava suas grandes viagens científicas na China, a irmã do Padre Theilhard de Chardin, três anos mais velha do que ele, veio a falecer, depois de um longa vida de sofrimento. Tive ocasião de ler texto que, nesta ocasião escreveu o Pe. Theihard de Chardin e que repeti inúmeras vezes ao longo de minhas conferências. Linhas extraordinárias! Como não pensar no sentido que o Padre Teilhard tinha da ação e de todo respeito pelos que constroem algo com suas mãos para continuar a criação de Deus? Não podia deixar de dar importância a este bilhete: “Margarida, minha irmã, enquanto eu me esforçava orientando minha atenção para as forças positivas do universo, atravessando continentes e mares, apaixonadamente ocupado na contemplação do aparecimento de todas as cores do universo, tu, imóvel, toda estendida, metamorfoseavas silenciosamente em luz, no mais profundo de ti mesma, as mais densas sombras do mundo. Aos olhos de Deus, dize-me quem de nós dois teve a melhor parte?”
1974
Sábado santo – 13 de abril
Lembrança de uma graça vivida no passado
Era um Sábado Santo. Havia pregado uma Quaresma em Notre-Dame. Amigos muito queridos haviam me levado à Espanha para fazer a peregrinação de São Tiago de Compostela. No percurso deveríamos pernoitar em Léon.
Mal havíamos ali chegado dirigimo-nos à catedral, obra-prima contemporânea da catedral de Chartres. Como poderia eu esquecer a comoção que experimentei ao entrar naquele templo? Umas poucas lâmpadas estavam acesas. Os últimos raios de sol chegavam a este ou aquele vitral com um azul profundíssimo. O organista, preparando-se para a solenidade do dia seguinte, com grande doçura executava uma peça de Bach.
Na vida ainda não me havia dado conta que o recolhimento podia provocar um tal inebriamento. A ressurreição de Jesus tornava-se então uma certeza cuja intensidade fazia com que eu fosse perdendo o sentimento de qualquer outra realidade. Foi difícil deixar aquele espaço.
Esta noite fecho os olhos para orientar meu pensamento para León. Julien Green escreveu: A lembrança de uma graça passada pode ser uma nova graça”.
1978
20 de setembro
Edith Piaf
Devo-lhe uma das mais fortes emoções religiosas de minha vida. Em 1945, ela já era muito célebre sem ainda ter alcançado a glória que a esperava. Por curiosidade fui à Sala Pleyel. Como aconteceu posteriormente experimentei uma sedução por todas as canções do programa. Houve, no entanto, um momento excepcional. Ela cantou: “Monsieur Saint Pierre”. Poucas vezes depois ele retomou esta súplica.
Naquela noite ouvi um grito de humanidade que atingia o fundo de meu coração.
1979
26 de setembro
Paulo VI
São numerosos os que guardamos na memória a cena dolorosa que aconteceu num sábado do mês de agosto do ano passado da qual foram testemunhas milhões de telespectadores: cercado de uma imensa multidão, praça de São Pedro a urna funerária sobre a qual repousava somente o Evangelho…
Quem foi Paulo VI? Melhor do que ninguém que o diga Jean Guitton no seu Paul VI secret, fruto de inúmeras conversas com o sumo pontífice. Desejo aqui chamar atenção para algumas impressões pessoais. Nele havia alguma coisa de Pio XII e de João XXIII. Alguns artigos da imprensa andaram insistindo sobre a segunda parte da comparação. Um imenso pudor de sentimentos impedia Paulo VI de manifestar a bondade que, na verdade eram dos traços maiores de sua personalidade e que seu predecessor irradiava sem limites.
Desde a primeira audiência que o Papa me concedeu fui testemunha de tudo isso em junho de 1963 em sua biblioteca particular. Fazendo as pregações de quaresma em Notre-Dame o Papa me perguntou se, através da correspondência que eu recebia eu tinha condições de aprofundar a vida cristã e abordar a incredulidade na França. O tom de sua voz era grave. Paulo Vi aprovava ou desaprovava. Citava nomes e chegava mesmo a tomar notas. Presidindo a todas as Igrejas naquele momento ele se ocupava de refletir sobre a França. Tivemos, por assim dizer, com a conversa, um momento de um grupo de trabalho. Dando-me conta que nosso encontro ia terminando lembrei-me de um pedido de Dom del Gallo. Diga ao Papa que ele descanse, passeie pelos jardins do Vaticano. O Papa sorriu, agradeceu por ter lhe transmitido o recado de Dom Gallo e me envolveu com um olhar extraordinariamente doce. Não me deixou ajoelhar e me abraçou como anteriormente me havia estreitado em seus braços João XXIII.
1987
30 de novembro
Morrer mártir
Um dos meus sonhos de adolescência que aparentemente não vai se realizar foi aquele que tive quando andava frequentando as Missões Estrangeiras na rue du Bac: o querer morrer mártir. Não posso esquecer daquele dia em que preparando um retiro caiu sob meus olhos um texto de São João da Cruz que falava exatamente daqueles que desejavam morrer mártires. O pedido pode ser atendido de muitas maneiras e de formas imprevistas. Deseja-se o martírio do missionário e outros tormentos podem nos atingir tanto no corpo como na mente. “Senhor, que eu acolha sempre na alegria de formas insuspeitadas a realização do velho sonho”.