Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fevereiro 2013

I. LEITURA ESPIRITUAL

A aventura da fé

 

Textos de abertura

O Senhor disse a Abraão: “Sai da tua terra, do meio dos teus parentes, da casa do teu pai e vai para a terra que te mostrarei. Farei de ti uma grande nação e te abençoarei engrandecendo o teu nome de modo que se torne uma bênção”  (Gênesis  12,1).

A fé  é como uma criança que não dá descanso, não se acostuma a hábito algum, sobretudo da indolência e da tibieza. Repugna-lhe comprometimentos. Ela é uma criança rebelde, ao mesmo tempo vulnerável e temerária, reflexiva e aventureira. Criança que nasceu em plena noite, não feita para a provação da noite, sempre em estado de busca,  desejando a luz  (Sylvie Germain).

 

1. Estamos vivendo a graça do Ano da Fé.  Toda reflexão sobre o tema  da fé começa com Abraão, que deixa sua terra e sua parentela, seu modo de viver no mundo e seu jeito de organizar a vida  e lança-se a caminho. Alguém avisa que ele, apesar de todos os pesares, apesar do ventre seco de Sara, será pai de uma multidão. Ele creu e por isso foi justificado.   A fé é um movimento de ir, de sair, de  fazer o que é pedido, com parcial clareza ou mesmo nenhum. “Meu Deus, meu  Deus, por que me abandonaste”, grita o homem Jesus no alto da cruz. Sim, a fé é uma criança que não se acalma, nem dá descanso. Coloca os que convoca em estado de busca. Nada tem de mesmice, de indolência, nada tem a ver com um pacote recebido não sei quando e que deve ser levado não sei para onde. A fé sempre questiona, interroga, ilumina, apresenta-se oportuna e inoportunamente à nossa liberdade. Digo bem, ela se apresenta à liberdade de cada um. Na abordagem do tema não é questão apenas de insistir sobre o saber de cor o Credo. Não se trata, em primeiro lugar, de doutrina, e sim do ingresso num universo que nos escapa, numa misteriosa comunhão com Deus, em caminhar na terra  como se víssemos o Invisível. Melhor imagem para explicar a fé: uma luz, uma claridade que dá sentido à vida e que nos permite organizar um consistente projeto de existência.  A luz da fé esclarece nosso presente e projeta luz em nosso  amanhã. Uma das experiências mais trágicas de uma existência é a que fazem os que não creem. A fé é dom do alto que é sempre dado aos pequenos. “Pai, Senhor do céu e da terra, eu te louvo, porque escondeste estas coisas dos sábios e poderosos e as revelaste aos pequenos”.  O dom é dado a quem abre a porta.

2. A fé é escuta e assentimento. No coração da vida  irrompe a voz de um Outro que chama e convoca. A fé tem a ver com o jogar-se naquele que chama, sem medo, correndo todos os riscos, com pouca bagagem. Com certeza, de um lado e questões do outro. Lançar-se sem medo porque quem nos chama nos ama. É um arremesso para frente. É movimento de confiança em Alguém que está fora de nós, que nos chama e convoca a sairmos de nós mesmos e ir ao seu encontro. O que vem depois é segredo ente o Amante e a amada. A fé leva à comunhão. Tornar-se uma pessoa de fé significa deixar-se conduzir por este dinamismo que aponta  para  Jesus  Cristo morto e ressuscitado. E saber que, aqui e agora, eu morro e ressuscito com ele. Um tal movimento de saída de si e busca do Outro comporta aspectos exigentes e, por vezes, dolorosos.  Andar na direção de Alguém exige um distanciamento do lugar em que estamos, daquilo de que se ocupa  nosso coração, nossos afetos, desejos e posses. Andar na direção da fé  implica na renúncia de queremos construir em nosso interior uma imagem desse Alguém de acordo com nossos gostos e nossas expectativas. Trata-se da aceitação humilde de uma descoberta que vai se dilatando ao longo do tempo:  uma vida à luz da fé, do Senhor, do Cristo morto-ressuscitado. Vida de fé que há de reservar suas surpresas.  Não se coloca esse Alguém a nosso serviço. Se assim fosse, estaríamos diante  de um ídolo.

3.  Andar na direção desse  Alguém significa aceitar que ele seja diferente. Nem sempre as  exigências da fé coincidem com nosso querer. Nossos critérios nem sempre são os critérios desse Alguém. Não se seleciona aquilo em que deseja-se acreditar. A fé pede que perdoemos setenta vezes sete, nos diz que o corpo apodrecido na sepultura é fadado à gloria,  que há força de redenção no sofrimento. O Outro será acolhido em sua totalidade, em tudo o que é e que diz. Trata-se do tudo ou nada.

4. O movimento da fé não desemboca num vazio, mas encontra um dado objetivo, em alguma  coisa que se acredita, um “regra de fé”.  A fé tem um conteúdo. Situa-se no observável, no coletivo, no comunicável. Há um conjunto de verdades que está diante de nós, um credo a ser conhecido, apreciado, vivido. Não verdades frias.  Há um Deus grande e belo que se revela em Jesus, morto  e ressuscitado,  no coração de uma comunidade de crentes  e que nos faz viver aqui e agora a intimidade com ele de modo nebuloso e esperando a  plenitude  na “vita venturi saeculi”.  Os sentimentos e sensações que cada um experimenta nem sempre são bons conselheiros,  sobretudo quando as pessoas não são  vigilantes nem perseverantes. No campo da fé, a emoção é má conselheira. O “credo”  permite nos ater a um linguajar sóbrio e distinguir os reais fundamentos da fé que são necessários para construir sobre o sólido uma experiência pessoal do Deus de Jesus Cristo.

5. A fé está ligada a uma experiência.  É um dado existencial.  Ela permeia e atravessa a vida de uma pessoa transformando-a através de um processo de conversão e de salvação. Exteriormente, a convicção interior se explicita num testemunho concreto e cotidiano, que arranca a pessoa do egoísmo e da instalação em seus próprios interesses e abre para uma solidariedade mais ampla, a uma justiça mais exigente, a uma caridade mais generosa. Não se pode pensar numa ortodoxia, sem pensar numa ortopraxia. Não se pode  falar de  uma fé solidamente estruturada, sem delinear também  um comportamento, uma moral. O comportamento deve refletir a adesão ao Deus de Jesus Cristo e deixar transparecer a fé através de escolhas coerentes e decisivas. Não existe fé sem obras. Os ritos externos que costumam exprimir a fé sem o fundamento da fé são vazios e inócuos.

6. A fé designa o ato pessoal de crer, de se confiar a Cristo e a seu ensinamento  que não se limita à submissão a códigos engessados ou a um corpo de doutrina.  Christophe Theobald: a fé  tem a ver com uma liberdade que faz a experiência de ser libertada de si mesma.  A  fé cristã significa apostar todas as fichas nesse Jesus de Nazaré, que veio ao mundo da parte de Deus, caminhou pelas estradas da terra, conheceu os mistérios do coração humano, sofreu, morreu e ressuscitou e vive entre nós.  Estará conosco  ate à consumação dos séculos. A fé em Deus não exige renúncia de viver e responder aos convites do tempo. Ela, no entanto, dá um sabor diferente a nossos  planos, projetos e vivência.  A fé não nos fecha  numa modalidade de autossuficiência ou complacência para conosco mesmo.  Convida-nos a nos reabastecer numa fonte fora de nós.  A fé não é qualquer coisa mágica que nos garante tudo  uma vez por todas. Ela coloca à prova nossa  liberdade e nossa  confiança  no cotidiano de nossas escolhas.  A fé informa tudo: casamento, vida de padre, pessoas solteiras, alegrias, sofrimentos, prioridades, vida e morte.  Vivemos como se sempre estivéssemos vendo o Invisível.

7. Crer significa entrar numa relação de confiança com Deus. Repetimos:  ter fé é aderir pessoalmente ao Deus que se revela como o Pai criador,  como Jesus Cristo o Filho, morto e ressuscitado para nós, como Espírito Santo, doador  de vida e santidade. Com todos os homens e mulheres, os cristãos têm perguntas que dançam seus lábios vindas de seu interior.  Como chegar a uma verdadeira felicidade?  Qual o bem a ser feito e o mal a ser evitado?  Como decidir quando as situações são complexas?  Por que os justos sofrem?  Por que o  Senhor parece mudo.  A fé nos convida  a elaborar respostas a estas questões. Ela não é uma caixa de conteúdos e de soluções no sótão da nossa vida.  Ela ilumina. A nós de enxergar e aderir.

8. Crer é saber-se  precedido e amado pelo Senhor na existência.  Aderir  a Deus, é descobrir aquele que é fonte de minha vida, aquele que suscitou minha liberdade e  quer me guiar pelo caminho do amor.  Esta experiência tem suas consequências  práticas:  minhas ações e decisões  terão sentido somente na medida  em que responderem ao dom  do amor de Deus. Sabemos em quem colocamos nossa confiança.  Antes que amássemos esse Outro, ele nos amou. É belo e reconfortante percorrer os salmos e ver como o salmista se sente coberto de amor.  “Bendirei  o Senhor em  todo o tempo…”.

9. Crer nunca é obra solitária, mas significa  ingresso numa tradição herdada dos apóstolos. O compromisso que a fé suscita na vida cotidiana não é um ato isolado, mas testemunho secundado e modelado pela comunidade dos crentes.  Outros viveram a fé  e no-la transmitiram. Como discípulos de Cristo, acreditamos também na Igreja que é seu corpo comunitário animado pelo Espírito. A fidelidade ao Cristo supõe  a fidelidade à sua Igreja. Um documento pastoral dos bispos franceses, reza: “Recebemos da Igreja  encorajamento,  formação e orientações para nosso comportamento. Toda a comunidade cristã é lugar de discernimento da retidão cristã das decisões. Para estarmos certos de responder em nossa vida aos apelos do Espírito de Cristo temos necessidade de buscar tal verificação na comunidade habitada  pelo Espírito como se manifestam os frutos do Espírito”.

10. “A comunidade cristã,  de modo especial pela vida litúrgica,  modela nossa maneira de ver o mundo, instrui nosso caráter moral, e educa  nossa atitude diante de questões éticas.  A liturgia nos descentraliza, nos coloca diante da Palavra de Deus  para que possamos ser imitadores de Cristo. Por seus pastores também a Igreja nos fornece indicações a respeito de nosso seguimento de Cristo”  (Thomasset).

11. A partir de Abraão, o pai dos crentes, crer é entrar em relação.  Um eu diante de um tu, uma resposta de fé à iniciativa de Deus. A fé  é da ordem da relação (e da revelação) e da confiança.  Abraão é a testemunha maior de tal confiança do homem em Deus pessoalmente encontrado: a questão não é mais a da existência de Deus, mas da confiança feita a esse Deus que se interessa pelo homem. “A fé um caminho a ser percorrido, também como foi para Abraão, o ato de caminhar na direção de Deus, do outro e de nos mesmos.  Para o cristãos, esse caminho se faz seguindo um homem que se encarnou em nossa história:  Jesus se Nazaré.  Este homem, Filho de Deus, nos arranca  da crença e da religiosidade, convidando-nos a segui-lo em toda a liberdade  e nos comprometendo a viver o Evangelho e sua mensagem:  amar, partilhar, perdoar e dar a vida.”  (Régine Maire).  A fé nunca é adquirida de uma vez por todas. Dúvidas estão ligadas à fé. A fé é combate que todos os santos conheceram. Podem surgir dificuldades para crer a partir do mal,  da mediocridade do testemunho cristão.  Entramos, por vezes, na noite terrível da dúvida.

12. “ A fé é virtude, atitude habitual da alma, inclinação permanente a julgar e agir segundo o pensamento de Cristo, com espontaneidade e vigor, como convém  a  homens  “justificados”. Com a graça do Espírito Santo, cresce a virtude da fé, se a mensagem cristã é entendida e assimilada como “boa nova”, no sentido salvífico que tem  para a vida cotidiana do homem!  A Palavra de Deus haverá de aparecer a cada um como abertura aos próprios problemas, uma resposta às próprias indagações, compreensão dos próprios valores  e satisfação das próprias aspirações.  A fé se torna facilmente motivo e critério de todas as avaliações e escolhas” (Il Rinnovamento dela Catechesi, n. 52).

13. Michel  Hubaut,  franciscano francês, no seu livro  La Voie Franciscaine  (tr. espanhol  El caminho franciscano)  disserta sobre o horizonte da fé de Francisco. O Poverello busca a fé como se procura um poço  no deserto. Ele se dá conta que ela é uma frágil chama no meio da noite. Vai procurar a fé como se  remexe  a terra para ver se por ali está enterrado um tesouro. A fé começa sempre com uma rutura. O homem frágil,  ergue-se, abre os braços. Como acolher a gratuidade dos dons do Senhor sem deixar cair de nossas mãos nossas pseudo-riquezas? Nos começos de sua caminhada o evangelho fez com que Francisco tivesse dores como aquelas que provoca o bisturi do cirurgião rasgando a carne. A homilia  dominical que mantinha meio adormecida a assembleia tornou-se para ele o evangelho de fogo. Hubaut: “O contrário do medo é a fé.  Ter a coragem de tudo arriscar.  Renunciar ao desejo de  manipular sua vida, seus talentos, seus bens, de cada um seguir seu caminho solitário. Renunciar a tudo isso para  entregar-se à vontade de Deus, para entrar no projeto amoroso que Deus tem para cada um: este é o mistério da fé.  Tudo aposta na fé. Não se pode compreender nada da vida de Francisco quando se esquece este fundamento inicial.  Sua conversão é o desejo  do homem que se abre ao desejo de Deus”

14. “Este é o cerne da espiritualidade de Francisco:  a fé vigilante. Para além das ideologias, das sirenes  que anunciam desgraças, dos slogans publicitários sobre a felicidade, permanecer disponível ao chamamento de Deus, ao Espírito do  Senhor.  Iluminar de novo  nossas fontes interiores. Escutar a Deus.  Buscar a Deus. Deixar-se modelar por Deus. Deixar-se conduzir de novo no meio da noite pela esperança que ganhou rosto em  Jesus Cristo. Despertar desta sonolência espiritual em que se entregou o mundo ocidental  no meio de sua abundância.  O projeto evangélico de São Francisco se enraíza na fé. A fé que crê que  Deus é amor, que seu projeto sobre o homem  faz ir pelos ares a estreiteza de nossos horizontes e que esta dependência de amor (a Deus) não aliena o homem, mas o liberta”

Obs.:

Esta reflexão esteve fortemente apoiada  em:

● Introdurre ala  vita di fede oggi,  Roberto Laurita,  in Credere oggi,  n. 89, 5/  1995, p. 89-107
● La Joie de croire, Régine Maire, in  Les cahiers de croire, , n. 284
● Croire c’est imiter Dieu,  Alain Thomasset,  in Les cahiers, op.cit.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

II. JANELA ABERTA

Coragem, audácia e sobretudo fé

 

O Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores,  em documento de 2006,  fazendo uma análise da situação da Ordem no mundo, teceu algumas considerações sobre a força da fé que deverá permitir aos frades menores serem corajosos e audaciosos  na fidelidade criativa.

 

Coragem e audácia

Certamente deveremos continuar a questionar-nos sobre nossa vida e analisar a situação da sociedade em que vivemos, conscientes de que, como diz um amigo meu,  quando compreendemos a resposta, mudamos a pergunta; certamente devemos começar de novo. Hoje, mais do que nunca, a fidelidade sofre de solidão, por isso deve sempre ser acompanhada de criatividade.  Sem dúvida, neste momento não basta continuar a analisar ou a questionar-nos;  exatamente  porque a fidelidade deve ser criativa, é preciso passar da ortodoxia à “ortopraxia”, é preciso optar por linhas de ação concretas, é preciso  passar para a outra margem,  é preciso viver o presente “não só como  memória o passado, mas como profecia do futuro”.

E para isso são necessárias a coragem e audácia evangélicas. Coragem e audácia, como antídoto  contra o medo. “Não tenhais medo”, repete-nos hoje o Senhor, como disse às mulheres que, no primeiro dia da semana, se aproximaram do sepulcro  (cf. Mc 16,6). Coragem e audácia  como antídotos  contra o realismo asfixiante:  “Tudo posso naquele que me conforta”, deveremos dizer como Paulo  (Fl 4, 13).  Coragem e audácia que nascem da certeza de que o Senhor  está sempre conosco:  “Por que estas dúvidas em vosso coração?” (Lc 24,38), “ estou convosco todos os dias até o fim do mundo”  (Mt 28,20).  Sim, necessitamos de coragem e audácia que nascem da renovada fé naquele para o qual nada é impossível (Lc 1,37). Estamos dispostos a assumir a criatividade como companheira da fidelidade?

O presente exige de nós a fé

Assumir o Evangelho como  Boa Nova, passar para a outra margem, viver o presente com audácia e coragem evangélicas, pôr-se a caminho, pressupõe a fé. Sem fé, nada disso é possível. Sem fé, o perigo de acomodar-nos, de repetir-nos, de anular os sonhos mais profundos, de perder pouco a pouco a alegria que brota da paixão  de viver nossa vocação e missão  é mais do que eventualidade.

Os crentes  – Abraão, nosso pai na fé, Maria, a mulher crente;  Jesus, autor e aperfeiçoador de nossa fé  (cf  Hb 12,1); Francisco, humilde servo de Cristo pobre e crucificado;  a Igreja que, unificada por obra e à imagem da Trindade, aparece diante do mundo  como  corpo de Cristo e  templo do Espírito  – todos foram convidados, e neles também nós o somos, a sair da terra natal, da casa paterna, e pôr-se a caminho para a terra que o Senhor nos indicar (cf. Gn 12,1).

Como eles também nós nos poremos a caminho movidos somente pela fé na Palavra de Deus. Pela fé em suas promessas sairemos sem saber para onde iremos;  por fé emigraremos como estrangeiros para uma terra prometida; por fé nos tornaremos homens da estrada e habitaremos tendas, aguardando a cidade do cimento, cujo arquiteto e construtor é  Deus  (cf. Hb 11, 8-10).

Movidos pela fé na  Palavra de Deus, contemplaremos a realidade com os olhos da fé e nos moveremos nela guiados pela luz da fé, quando um dia alcançarmos aquilo que esperamos, então desaparecerá a fé, que hoje é nossa luz e nossos olhos.  Afinal, a esperança que se vê já não é esperança. Como alguém pode esperar o que já vê (cf Rm 8,24)?  E em outra passagem  lemos:  “A fé é o fundamento  do que se espera e a prova das  realidades que não se veem” (Hb  11, 1).

Não nos porá a caminho a beleza  descritível e efêmera  daquilo que vemos, mas a beleza inefável e permanente daquilo que esperamos. Por isso, renunciamos a fixar nossas tendas na cidade do vale, ainda que ela possa nos parecer um jardim de Deus (cf. Gn  13, 1-12) e nos fazemos seguidores do Cristo pobre e crucificado, no qual esperamos encontrar a plenitude das bênçãos de Deus para nossa vida.

É o momento de exercitarmo-nos na fé, de mover-nos a partir da fé, de viver a fé. Só a fé nos permite ver que tudo é graça, e que em tudo se manifesta o infinito amor que Deus tem por nós. Esta é a fé  que  move montanhas, a esperança que põe em movimento  os filhos da Igreja, o amor que abre caminhos para o futuro. Esta  é a vida que enche de paz  o coração de todos.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

III. FAMÍLIA

Ele e ela, o envelhecimento e a morte

 

A propósito do filme  “Amor”  de Michael Heneke

 

Por vezes ficamos profundamente impressionados com figuras de pessoas  muito envelhecidas.  Lembro-me sempre de algumas aparições do querido Papa João Paulo II nos últimos tempos de sua vida: sua dificuldade de falar, de locomover-se, o cansaço estampado em seu rosto, o corpo pesado que ia se arrastando. Sentimento de gratidão por assumir assim a velhice e a doença, quer dizer, com coragem e visão de fé. Vejo também esses grandes artistas do teatro e do cinema envelhecendo com coragem. Recentemente apareceram na telas  Geraldine Chaplin cheia de sinais de envelhecimento  avançado e  Jane Fonda, bem esticada, com o milagre da  plástica.  Lembro-me sempre do último olhar de minha mãe, olhar com certa angústia, olhar de dor e de adeus.

A família  é uma realidade camaleoa.  Muda de configuração ao longo de sua história.  Uma coisa são os primeiros anos do casal, ainda sem filhos.  Depois vem a fase dos filhos pequenos, adolescentes e jovens.  Quando as asas ficam sólidas, cada  filho  empreende  o voo para fora do ninho.  Permanecem ele e ela. Esse tempo de casal sozinho pode durar. Pode ser abreviado pela chegada da morte. E um ou o outro vive a viuvez. Hoje, coloca-se um problema delicado:  o cuidado  que os filhos precisam prestar a pais idosos e doentes.  Nem sempre os filhos podem assumir a responsabilidade pelos  últimos breves ou longos  tempos de  seus genitores.  Os que dispõem de recursos providenciam acompanhantes ou  descobrem uma casa que acolhe e hospeda pessoas  doentes e de muita idade. O tema é complexo. Os filhos casados com sua vida, seu trabalho e suas preocupações, via de regra, não podem assumir os pais nestas condições.  Muitos desses idosos,  sem recursos financeiros,  não podem viver em clínicas de idosos, caras e nem sempre de boa qualidade.  Os pais envelhecidos e gravemente doentes não podem ficar entregues à própria sorte. Há todo um arranjo delicado a ser encontrado. Por um tempo, os pais podem viver na casa de um filho casado. Depois, um neto ou um parente passa um tempo na casa dos idosos. Nada disso resolve o problema. Cada família buscará a melhor  solução,  o expediente que possa atender aos  pais. Em tudo, trata-se de uma postura de amor. Há muitas esposas que  cuidaram de maridos doentes e envelhecidos anos a fio.  Trata-se de amor. Esse trabalho é desgastante.

Gostaria de continuar esta reflexão tecendo alguns comentários  ao magistral filme de  Michael  Haneke, Amor,  vencedor do Globo de Ouro de 2013  e candidato para o Oscar de 2013 em diversas categorias.  Não sou crítico de cinema.  Limito-me a pinçar elementos que nos colocam diante da realidade de um casal octogenário, e ela, a esposa, gravemente doente.

Os dois intérpretes são magistrais.  São artistas de verdade: Jean- Louis Trintignant e Emmanuelle  Riva, ela musa de “Hiroshima, Mon amour”, clássico de Alain Resnais. Em boa parte, eles constituem o filme. Com suas rugas e sua velhice, com seu olhar e seu andar, com suas expressões fisionômicas, com  suas roupas de andar dentro de casa  constituem a alma desse hino ao amor. É preciso dizer logo que é  amor na crueldade e na dureza de situações mostradas em sua nudez.  Basicamente, esse é o enredo: octogenários, Georges e Anne  são professores de música,  pessoas cultas, independentes que vivem num apartamento razoavelmente confortável em Paris. Ela sofre um AVC e precisará dos cuidados do marido até o fim.  Toda a trama do filme é mostrar como Georges vai administrar essa situação nova, cuidar de sua amada companheira, acompanhando a degradação de seu corpo e de seu espírito até o desfecho trágico.

Quando as pessoas envelhecem, mas gozam de boa saúde não se colocam maiores problemas. Uma certa assistência dos filhos à distância, uma pessoa que cuide da casa, da limpeza, visitas frequentes, manifestações de atenções e tudo está resolvido. Não é o caso do filme em questão.

Tudo começa com um concerto de música clássica. Georges e Anne estão no meio dos espectadores. Voltam conversando. Ela se sente cansada não quer tomar um chá e vai dormir. No dia seguinte, no petit déjeuner, ela tem momentos de esquecimento. O marido estranha. Depois de ter recobrado a lucidez, ela não se lembra de nada. George tenta dizer o que aconteceu… ela não se lembra.  Em seguida, ela tenta servir-se de chá e perde o senso de orientação  vertendo o chá fora da xícara. Médicos serão procurados, diagnósticos feitos. A cirurgia das carótidas não deu grande resultado.  Lá está ela voltando à casa em cadeira de rodas. Começa a dureza da vida para ele e para ela. O amor se exprimirá numa dedicação sem nome.  Ela, ainda lúcida, pede que o marido não a coloque numa clínica. Quer ficar em casa, quer morrer em casa. Dois octogenários. Ela de cama, precisando de todos os cuidados. Ele, meio trôpego, com  feições de idoso bem idoso, mãos de idoso, manchas de idoso nas mãos, mas corajoso, valente. Ela, carinhosa,  em alguns momentos.  Em outros, uma mulher que grita, que cai da cama, que vai se deteriorando a olhos vistos.  Georges já não sabe o que fazer.

Mário Mendes,  crítico de cinema, na revista “Veja”  de 16 de janeiro de 2013, descreve bem a situação:  “Com exceção da sequência inicial,  em uma sala de concerto, toda a ação se passa no interior de um apartamento – os limites estreitos do confinamento  destinados aos muito velhos e muito debilitados – que o diretor apresenta em esparsos movimentos da câmara, longos planos estáticos e close-ups cada vez mais dilacerantes  à medida em que  Georges vê a outrora elegante Anne se desfazer diante de seus olhos.  Haneke não desvia o olhar de situações que outros  instintivamente atenuariam, e registra com inabalável sinceridade até os aspectos mais humilhantes  que a decadência física e mental  impõe aos que passam a depender de todos para tudo.  A transformação gradual do quarto do casal em uma ambiente de decrepitude e doença mostra o hábil controle do diretor  sobre detalhes sutis que amplificam o clima de tensão  e do sem ruídos desnecessários”.

A filha, casada com  um inglês estranho, aparece de quando em vez, mas não assume a condição da mãe.  A  impressão que se tem é que não há vínculos afetivos  entre a filha e os pais. Há discussões ácidas entre pai e filha.  A fala de Trintignant é soberba quando, na frieza de seu  discurso,  brada o que faz e mais do que ele faz é impossível, quando a filha  insiste nervosamente na busca de uma outra solução. Num determinado momento, a filha, interpretada por Isabelle Huppert, tem momentos de ternura, dizendo do amor de seus pais lhe dava muita segurança. Durante todo o filme não vê chegar o  neto do casal. A preocupação da filha era que o pai a internasse numa casa de doentes e idosos com bom atendimento. Georges  se lembra que Anne  disse que não queria morar e morrer nessas hediondas casas.

Assim, a doença  faz seu caminho e Anne vai se deformando fisicamente, não dizendo mais coisa com coisa, não consegue falar, tem a boca torta.  Há um momento em que Georges tira a chave do quarto para que a filha não veja a mãe naquele estado degradante.  Nós, espectadores, vamos olhando tudo com os olhos de Georges.  Tudo é feito por amor.  Por isso, o título do filme não podia ser outro  senão amor, amor dedicação, sacrifício e pronto.  Sente-se que Georges   não tem mais reservas de paciência e custa-lhe ver a mulher inteiramente degradada.  Ele perambula pela casa como um fantasma, se arrastrando, velho e olhando sempre a mulher numa cama, delirando, torta.  Quanta crueldade! Por vezes ter-se-ia vontade de ouvir uma música.  Esta é rara. Muito rara.  Há um silêncio que parece uma espada a nos penetrar.

Há cenas  doidas e doloridas.  A bela senhora que tinha ido ao concerto no começo do filme entra em casa  numa cadeira de rodas, começando sua dependência total.  Tem uma cadeira elétrica e num determinado momento, em sua cadeira,  vai de um lado para o outro, freneticamente, sem choro, com uma espécie de vontade de  sair, chocando com o rodapé do cômodo… Quer sair, mas não pode. Está confinada ao seu apartamento.  A única porta de saída será,  depois, a morte.  Há   essas conversas entre os dois, tenras, delicadas, adoráveis.  Dois adoráveis velhos, em certos momentos. Passam a impressão de muito se terem amado. Ele a arrasta para cá e para lá,  passo após passo, como se fosse uma dança de amor. No concerto de abertura do filme, o casal assistirá a um pianista que fora aluno dos dois. Um belo dia este visita a professora e seu  rosto é de piedade ao vê-la com a mão imobilizada.  Anne diz claramente que não quer a piedade do aluno.  Como também não faz questão de receber o genro inglês para que ele venha a se apiedar dela. Há essas cenas que poderiam ser subentendidas, mas que são mostradas em toda sua crueza: as fisioterapias… movimentar a perna branca e velha quinze vezes… A pobre mulher sentada no vaso vem a cair e o marido a levanta e sobe-lhe as peças íntimas. Esse homem que prepara a comida, que não tem empregada, que  lhe dá a comida na boca, colher após colher, limpando-lhe a boca com uma toalha felpuda… Ele faz questão que ela beba, ela precisa beber água e não quer… Depois aceitar o copo e encher a boca, ela devolve tudo… George perde a paciência e lhe um tapa  que cada um de nós recebe. Ele não tem mais reservas de paciência. Esse homem que havia mesmo aprendido a trocar as fraldas da mulher… Nada de  histórias adocicadas  de  idade feliz.  Envelhecer é cruel. Cenas cruas.  Esse homem que depende do  casal da portaria, sempre com a mão na carteira para pagar… sempre pagar.  Uma das moças contratadas  para cuidar de Anne não  agrada a Goerges. É seca e pouco delicada para  com sua mulher.  Ele a despede… precisa lhe pagar  soma alta de euros e ouvir dos lábios dessa ordinária mulher palavras ofensivas, esse homem que estava para entrar no desespero.  Sentado, andando de um lado para o outro, mexendo nas coisas, ele é um solitário, completamente solitário. Não consegue comungar com a filha. Não consegue falar com a mulher. Não aguenta mais tanta decrepitude.  Numa cena  dolorida, com um travesseiro sufoca a mulher que não é mais a mulher que ele conheceu,  simplesmente uma casca. E o filme sobre o amor termina.  Perambula pela casa e desaparece.

Um tal desfecho parece  compreensível. Estamos diante de uma grandiosa obra  de ficção, grandioso trabalho.  Sente-se falta de netos, de filhos, de amigos, de pessoas que pudessem cercar o casal do calor da proximidade.  Nós, cristãos, temos o hábito de lançar sobre esses fatos a luminosidade da fé.  Digamos  alguns raios de luz.  Nunca devemos nos esquecer que Jesus, no alto da cruz,  na sua solidão e no seu abandono, disse:  “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.  Depois ele dirá: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito!”  O final do filme é o nada e o desespero.  Em momento algum se aponta para a Transcendência.  Quando vidas humanas se fecham na limitação do humano, as portas se fecham. O homem não é feito para o que vê, sente, mas para Transcendência. Não estou querendo dizer que a fé cristã  “deletaria” todos os sofrimentos.  Mas ela projetaria um nesga de esperança onde tudo parecia absurdo. O Jesus que  pede que o pai que afaste dele  o cálice, que  vive a solidão porque o  Senhor o havia abandonado,  entrega-se ao pai na noite da fé.

Então, fica a pergunta:  como cuidar de nossos pais doentes e  envelhecidos?  Cada um  haverá de responder a partir do concreto de sua vida.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

IV. PASTORAL

O mundo em que os jovens vivem

 

O ano de 2013 é, de alguma forma, o Ano da Juventude.  O encontro dos jovens com o Papa no Rio de Janeiro, a Campanha da Fraternidade e o Ano da Fé constituem  convites a que venhamos organizar uma sistemática pastoral  dos jovens. Tarefa ingente, complexa e delicada.  Urgente pensar no assunto. A Igreja de amanhã, nesse mundo em transformação, precisa de um laicato maduro, de casais maduros, de políticos maduros, de gente  nova por dentro.  Nossa reflexão  nesta rubrica  Pastoral pretende lançar  um olhar  sobre o mundo que vivem os jovens.  Tocamos apenas em alguns pontos.  Cabe aos leitores desta “Revista Eletrônica” completar o elenco das situações concretas em que vivem os jovens e, sobretudo,  imaginar uma possível pastoral  (ou evangelização) dos jovens.

Vivemos um tempo de transformação.  Há a crise econômica e social. Há a crise eclesial.  Há a crise cultural. Morre um mundo e nasce outro.  Morre um modo de viver a fé. O que é ser cristão nesse mundo novo vago que se delineia a duras penas. Ora, os jovens são aqueles que poderão ser protagonistas desse novo nascimento. Poucas de nossas comunidades, no entanto,  conseguem organizar e alimentar uma pastoral juvenil.  Em que mundo vivemos nós e os jovens?

1. Vivemos o tempo do imediato, do que precisa ser feito aqui e agora, sem delongas, sem demora. O que desejo, quero para já, aqui e agora. Nem sempre esse desejo do imediato é acompanhado  pela reflexão.  Não sabemos colocar o pé no freio. Compramos o que temos vontade de comprar e pagamos a crédito, com cartão de crédito, com pagamentos a perder de vista.  Mas queremos agora.  Essa característica da busca do imediato lembra os caprichos de uma criança que pensa que tudo se lhe deve e que esperneia enquanto  não consegue o que quer na rua, no metrô, na igreja e na sala de espera do consultório médico.  As pessoas querem tudo rapidamente  e não se dão o tempo de pensar, de escolher, de decidir com  um mínimo de discernimento.  O tempo da  juventude não seria o tempo de escolhas importantes que marcam a vida de uma pessoa para sempre? Será possível melhorar  nossas escolhas?

2. A realidade é como um líquido que escorre por entre os dedos.  Nada passa a impressão de ser sólido. Os relacionamentos são  fugazes: casamento, amigos, convicções. Como uma pessoa jovem se situa nesse mundo líquido de que fala  Zygmund  Bauman? Onde o jovem encontrará uma âncora vital  que o ajude a navegar no vaivém das oscilações da vida?  O mundo nunca foi estático. Mas hoje é “louco”.  É possível encontrar um sentido último para a vida e que oriente as decisões e ajude a construir projetos existenciais que valham a pena?

3. Vivemos num mundo descosturado. As coisas não estão interligadas.  Cada fragmento tem sua lógica, obedece a seus princípios,  contém seus “valores”, uns separados dos outros.  Jovens vivem essa descostura na carne.  Muitos deles trabalham para ajudar na renda familiar, fazem estudos à noite, ou ensino fundamental, ou faculdade. Não têm tempo de aprofundar seus estudos e nem de conhecer-se a si mesmos. Derramam-se nas coisas e nos finais de semana  precisam  uma válvula de escape: namoricos, por vezes para distração, bebida e certas fugas no mundo das drogas. Precipitados envolvimentos amorosos  podem redundar numa gravidez. Como esses jovens  tão ocupados  poderão participar de grupos de  jovens, de espaços de iniciação cristã e de reorganização de seu universo?  Como viver com eles?  Como eles  poderão sentir  beleza da fé vivida por outros?

4. Há jovens de todos os tipos e horizontes.  Vemos uma certa juventude que cresce em ambientes familiares de compreensão, de harmonia. Crianças que encontram regularmente os pais, que  sentem a firmeza do relacionamento dos mesmos, que vivem segurança na vida, apoiadas no sólido amor dos pais.   De outro lado vemos jovens que vivem em ambientes de profunda hostilidade familiar.  São filhos de mães solteiras, criados pelas avós.  Jovens que têm conviver com “meio-irmãos”,  filhos do novo companheiro da mãe. A mãe e seu novo companheiro não vão viver o tempo todo juntos. É coisa apenas por um tempo. O que realmente se passa na cabeça desses jovens? Onde estão?  Como fazer pastoral com eles?  Quando tentar atingi-los com o Evangelho?

5. Nossos jovens crescem num  ambiente marcadamente  consumista.  O mundo é consumista. A vida é consumista. Os meios de comunicação falam de consumo, convidam  ao consumo.  Consumo de bens, consumo de coisas modernas, de viagens, de pessoas.  Como  fazer com que ressoe nesta sociedade de consumo o espírito de desprendimento do Sermão das Bem-aventuranças?

6. Vivemos a cultura do êxito. É preciso  vencer na vida. Há a competição.  Competição  que estressa. Competição que aponta para uma certa eliminação do outro. Há famílias que treinam os filhos para  estudar, vencer na vida e assim poderem desfrutar  de folgada situação financeira em suas vidas. Êxito e sucesso também nos relacionamentos amorosos: corpos sarados, bem cuidados, cuidados  demais. Meninas magras e rapazes “bonitos”.  Culto das aparências: beleza do corpo, viagens, carros e facilidades.

7. “Construímo-nos  como pessoas em relação com os outros.  O jovem de hoje, como nunca antes, vive possibilidades de comunicação e de  relacionamentos quase ilimitadas.  Que jovem não se serve das redes sociais  com centenas de amigos nesses fóruns?   Os jovens de hoje conhecem melhor o mundo do que aqueles de gerações anteriores.  Também se deslocam e se locomovem muito mais.  Com tudo isso, a solidão parece ser uma ameaça real para não poucos jovens. Nem sempre conseguem viver uma amizade em profundidade. Vínculos que pareciam muito estáveis se desfazem com relativa facilidade.  Há jovens que chegam aos trinta anos numa dificuldade de encontrar seu par com quem construir sua vida. Pode o evangelho ajudar a  viver vinculações  mais  sólidas, mais estáveis, de pessoas mais comprometidas  umas com as outras?”  (Abel Toraño  Fernández, SJ, Jóvenes e nueva evangelización: escenario y desafios,  Sal Terrae, 100 (2012), p. 529-530).

Questões:

● O que chamou sua atenção neste texto?
● O que mais diria a respeito do mundo em que vivem os jovens?

Frei Almir Ribeiro Guimarães

V. NOSSO GÊNERO DE VIDA

Obediência

 

Art 7

§ 1. Pelo voto de obediência, seguindo Jesus Cristo que abandonou sua vontade na vontade do Pai, os irmãos renunciam a si mesmos e submetem a própria vontade a seus legítimos  Ministros e Guardiães em tudo ao que o Senhor prometeram observar, a fim de conseguirem,  mais plenamente, a maturidade pessoal e a liberdade dos filhos de Deus.

§ 2. Para o bem da Igreja e da Ordem, todos os irmãos prestem especial obediência e reverência ao Ministro Geral, legítimo sucessor  de São  Francisco e sinal de unidade e comunhão de toda a Fraternidade.

§ 3. Os irmãos sirvam e obedeçam de bom grado uns aos outros  na caridade do Espírito, procurando juntos os sinais da vontade do Senhor.

 

Este artigo  das Constituições Gerais da Ordem dos Frades Menores, com seus três parágrafos, contém esplendorosas orientações de vida.  Pelo voto de obediência, o frade menor deseja seguir esse Jesus que colocou sua vontade na vontade do Pai.  Obedecem a Deus, seguem as determinações de seus superiores, que por sua vez, obedecerão a Deus.  Serão  ministros sem autoritarismo. Os que obedecem vão amadurecendo  pessoalmente  e, não se guiando por seu caprichos, conseguem a liberdade dos filhos de Deus.  Há a obediência aos que animam a Igreja  e os irmãos, juntos, farão a vontade de Deus, obedecerão uns aos outros. Felizes aqueles que abandonam sua vontade na vontade de Deus.

Vamos nos servir de reflexões  de K.Esser e Engelbert Grau  em texto que os dois escreveram sobre o nosso tema.  Temos diante dos olhos a versão francesa  do original alemão:   Pour le Royaume, publicada pelas Ed. Franciscaines de Paris.  Muitas partes traduziremos. Aqui e ali faremos um resumo, esperamos, sem prejudicar a compreensão do texto em francês.

1. Na vida de todos os dias, a penitência, fruto da conversão operada pela Redenção, manifesta-se  no empenho de seguir os passos de Nosso Senhor Jesus  Cristo. Francisco quer viver como o Cristo, Verbo encarnado, e convida  seus irmãos e suas irmãs a imitar seu exemplo.  Recomenda-lhes que conheçam o Evangelho em profundidade.  Assim, caminharão na estrada que leva ao Reino.  Tal Reino se instaura desde que  a graça redentora de Cristo  impulsione o filho de Deus a não ter nada de próprio e entregar-se a Deus, finalidade última da vida.  A pobreza, interior e exterior, foi a contribuição mais preciosa  proporcionada por Francisco e seus discípulos em vista da edificação do Reino.

2. A obediência é elemento essencial da pobreza interior e exterior. Para que alguém renuncie a si mesmo a ponto de nada possuir de próprio, será necessário antes de tudo abandonar sua vontade pessoal. O Senhor diz no Evangelho: “Quem não abandona tudo o que possui, não pode ser meu discípulo”  (Lc  14,33).  Francisco daí tira uma conclusão radical: “Abandona tudo o que possui e perde seu corpo aquele que se oferece totalmente à obediência nas mãos de seus prelados” ( Adm II).  Segundo Celano, Francisco dizia  que não deixou tudo por Deus aquele que conserva  as bolsas da vontade  própria.  Sempre queremos  nos apropriar da própria vontade. Foi esse o pecado de Adão. Esse é o pecado dos que querem se subtrair à soberana vontade de Deus para se colocarem em seu lugar.  O que precisa ser feito é a expropriação. Tudo o que pode constituir um bem próprio é objeto de renúncia e leva à obediência, a mais nobre das abnegações, coroa da vida de penitência, radical renúncia de si e conversão total a Deus.

3. A obediência não causaria problema  se fosse feita diretamente a Deus. Por um voto solene, no entanto, o frade  coloca-se sob a dependência de um homem, seu superior.  Deus manifesta sua vontade ao frade  por meio do superior.  “O súdito não deve considerar o homem em seu superior, mas Aquele  por amor de quem ele resolveu obedecer” (2Cel 151).  A obediência só é possível pela fé, no abandono total a Deus e na aceitação efetiva da graça redentora. Em união com Cristo  que os frades saibam libertar-se de apegos a si mesmos para procurar sempre a vontade de Deus e a ela se conformar, mesmo quando esta se manifesta  através de instrumentos tão “desconcertantes”. A qualidade do instrumento importa pouco  aos olhos daquele que se serve dele a seu bel-prazer. A obediência a um superior exige renúncia, despojamento de tudo o que é terreno e humano, cume de toda uma vida sem nada de próprio, mas ainda e sobretudo uma entrega total a  Deus, ponto de chegada da vida de penitência e da “metanoia”. Para designar o ingresso  dos novos candidatos na Ordem  não é por acaso que os primeiros frades  empregavam a expressão “recipere oboedientiam”, “admitidos à obediência”.

4. Vejamos os fundamentos da obediência.  Desde que o pecado veio a romper a harmonia da natureza, o homem se opõe a Deus. Esse desacordo, aberto ou velado, se manifesta por meio de uma tenaz resistência a Deus. Voltando as costas para Deus, o que se  rebela se erige em ídolo e se adora.  Cria-se um abismo entre o homem e Deus.  Com suas próprias forças, o homem não consegue restaurar-se. Essa é a  situação do homem digna de pena. E  Deus vem em socorro do homem pela salvação trazida por  Cristo. “Ele subsistindo na condição de Deus, não se apegou à sua igualdade com Deus. Mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de  escravo, tornando-se solidário com os seres humanos. Apresentando-se como simples homem, humilhou-se feito obediente até à morte numa cruz (Fl 2, 6-8)   Assim, “como pela desobediência de um só, todos se tornaram pecadores,  assim pela obediência de um  só todos se tornarão justos” (Rm  5, 19).  O aniquilamento de Cristo, obedecendo até à morte, nos deu a salvação.  A vida de penitência se impregna da obediência na medida em que  abençoada  Redenção de Cristo  pode operar seus efeitos na alma. Faremos progressos na obediência  na medida em que tivermos em nós os mesmos sentimentos de Cristo e que obediência do Senhor possa produzir  seus frutos na alma.

Obs.:   Na próxima edição deste  Tirando do Baú  voltaremos ao tema da obediência franciscana.