Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fevereiro 2012

FEVEREIRO 2012

Buscando o rosto de Deus

 

No número anterior de nossa  revista  Tirando do Baú  refletimos sobre a vida interior,  sobre essa necessidade de  visitar nossa própria interioridade. Cada pessoa é  um mistério e, no mistério pessoal, é que Deus se revela.  Agora queremos refletir sobre o encontro com o Deus vivo  por meio de Cristo na força do Espirito.  Assim aprofundamos o tema da vida espiritual. Seguimos basicamente o texto de Enzo Bianchi, superior da comunidade de Bose, na Itália  (La vie spirituelle chrétienne,  in Vie consacrée  2000, n.1, p. 39-43).

I. LEITURA ESPIRITUAL

Encontro entre Deus e o homem

 

1. A vida espiritual pretende ser uma experiência de Deus, desse Altíssimo que, encontrado, conhecido e amado torna-se aquele que molda toda a vida do cristão e lhe dá sentido. Como fazer essa experiência de Deus? Ele não é aquele que não se pode ver sem morrer 0 (cf. Ex 33,20)? Ora, o fiel conhece uma experiência do Altíssimo que transcende a própria inteligência e que diz respeito a seu coração, sua vontade e seu agir. Trata-se de uma experiência que se traduz com palavras humanas: sinto, creio que Deus está presente. Tais palavras, em certos momentos, são tão fortes que quem as experimenta pode fazer um relato delas. Acontece com o homem de hoje aquilo que aconteceu com Isaías no templo ou Elias na caverna. Como Moisés, o fiel é convidado a tirar a sandália dos pés porque pisa uma “terra santa”. Tais palavras parecem inquestionáveis em determinados momentos de sucesso na caminhada espiritual. Nos momentos de secura e de aridez, de desolação e de abandono, elas parecem perder sua força. O fiel perde o pé e duvida. Os que atravessam regiões exuberantes e desertos secos continuam a se sentir ligados a Deus. Caminham em sua presença e suplicam que ele não se ausente. Os que fazem a experiência de Deus são testemunhas de sua fala e de seu silêncio.

2. O homem é um ser quaerens, um buscador. É capaz de andar à cata de Deus. No cristianismo, no entanto, é Deus que vem ao encontro do homem e lhe propõe a aventura da Aliança. Trata-se de uma experiência espiritual pela qual Deus, através do Espírito Santo percebemos o Senhor próximo e vivo. “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho unigênito que está no seio do Pai, este o deu a conhecer”. Assim, a convivência com o Filho nos leva ao Pai. Deus fica sendo sempre aquele que por primeiro chama o homem e o atrai por meio de Jesus. O Pai afirma: “Este é o meu Filho bem amado… escutai-o”. O Filho se entrega ao Pai e nós nos entregamos no Filho. Por aí começa a experiência cristã de Deus.

3. O encontro entre Deus e o homem somente é possível graças ao poder do Espírito Santo, porque Deus é Espírito e é ele que torna o cristão morada do Espírito Santo , capaz de encontra-lo e acolhê-lo. O Espírito que desce naquele que crê dá um começo de vida espiritual engendrando o homem como filho de Deus. A mesma palavra do Pai pronunciada no Jordão é repetida para cada cristão em seu novo nascimento no momento do batismo: vida filial, vida fraterna com Jesus, vida do Espírito em nós… “Esta nova criação que acontece com o Batismo deverá ser assumida posteriormente pelo cristão, que consentirá no desenvolvimento coerente da graça santificante. Diríamos que o cristão deve tudo preparar em si para uma aquisição coerente do Espírito Santo”.

4. Necessário prestar atenção a alguns desvios. O encontro com o Deus que vem, será o encontro com o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Palavra feita carne, o Deus que no Espírito Santo nos salva e nos dá como dom sua própria vida, a vida divina. Na vida espiritual se procura e se busca no encontro com o Deus vivo, três vezes santo, quer dizer o Outro. Trata-se de uma vida espiritual cristã. “Vida espiritual cristã: não a busca de uma fusão impessoal com Deus, mas uma vida marcada pela aliança como encontro de uma alteridade. Há muita voracidade religiosa hoje, também na Igreja; busca-se mais a religião do que a fé, deseja-se um Deus imediatamente acessível, disponível em suas operações e recusa-se a arte do encontro e da comunicação na diferença, no respeito da alteridade, aceitando-se as distinções e a distância. Rejeita-se, assim, a santidade de Deus. Este tipo de comportamento leva a uniões holísticas e impessoais. Na espiritualidade cristã, o caminho não é o de uma divinização fácil e impessoal mas uma senda que começa com a regeneração pela graça em criaturas novas até se tornar filhos no Filho de Deus por meio do seguimento de Cristo vivido na história, na comunidade dos fiéis, em companhia dos homens. É caminhar na direção de Deus orientados pelo Espírito Santo”.

5. Necessário também prestar atenção a certos expedientes modernos que “garantem” o encontro com Deus por meio de práticas mecânicas, ascese oriental. Faz-se necessário prestar atenção à proliferação de escolas e técnicas de oração. A vida espiritual necessita de ascese, de métodos, de exercícios. Quem salva, no entanto, quem leva à comunhão com Deus é o Espírito Santo. É a graça e não o que vem do homem. Pode se dar que nosso orgulho humano tenha a pretensão de pensar a vida espiritual como uma empreitada da qual nós seriamos os protagonistas, uma vida marcada por nossas obras, nossos progressos, nossas contradições e nossas quedas. Fomos salvos pela graça. Não fomos nós que o escolhemos, mas Jesus que nos escolheu e nos enviou a produzir frutos e frutos que permaneçam, (cf. Ef 2,8; Jo 15,16).

6. Deus criou o homem no seu Filho e os destinou antes da fundação do mundo a ser filho no Filho; para que isso fosse possível Deus enviou seu filho para que se tornasse homem e por primeiro levasse os homens para Deus graças às energias do Espírito. Pode-se falar de um caminho de volta ao Pai, desse itinerário da vida espiritual, caminho que a imaginação humana descreveu como ascensão ao céu, uma escada que da terra vaio até Deus; um itinerário a ser percorrido na dessemelhança até a conformidade com Deus, um retorno a se realizar, um êxodo a ser vivido e que encontra seu cumprimento pascal na morte. O homem que aceita caminhar no Espírito, viver uma vida sob o senhorio do Espírito, aceita viver a Páscoa na qual ele se oferece em holocausto a Deus, assim se encontra nele como Filho do próprio Deus, vivendo a vida de Deus.

À guisa de conclusão:

Resta-nos ver com se viverá concretamente essa vida espiritual.  Há o encontro  com a Palavra, o empenho da conversão,  o seguimento de Cristo,  a prática do amor fraterno, a oração que culmina com a plena consciência da inabitação da Trindade, o ir  pelo mundo.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

II. JANELA ABERTA

Uma quarta-feira salpicada de cinzas

 

Senhor, a semana tem sete dias.
A maioria das pessoas prefere o domingo;
há outras que gostam do sábado.
Poucos diriam apreciar a quarta-feira.
Nós, cristãos, sempre haveremos de
associar a quarta-feira ao tema das cinzas.
Desde pequenos  fomos nos acostumando a receber
na fronte esse punhadinho de pó no dia seguinte à terça-feira gorda.
Sobre o altar ou na credência são colocados os potes com cinza.
Antes de se tornarem pó, essas cinzas eram galhos,
ramos frondosos que carregamos no domingo das palmas,
cantando  hinos ao Cristo Rei.
Garbosos nós os empunhávamos,
aclamando o rei entrando em sua cidade montado num burrico.
A força e a imponência dos ramos se converteram
na insignificância das cinzas.
Se desse um pé de vento  o pó se haveria de espalhar
por todo o templo.
As cinzas simbolizam a fragilidade, o efêmero, o fugaz.
Somos únicos no mundo, constituímos a realização de um sonho de Deus,
ao mesmo tempo somos nada, caniço pensante, mas caniço!
Cinza, poeira, terra.
Viemos do nada, o Senhor quis que existíssemos.
Somos imagem dele, mas amanhã deixaremos de existir.
Não somos onipotentes, não somos deuses.
Vivemos agora  o tempo da quaresma,
sem sandálias nos pés,
sem títulos de honra,
como gente humilde
gente consciente de sua  fragilidade.

Dá-nos,  Senhor,  nesse tempo oportuno
nesse tempo de salvação
entrar  frequentes vezes  no silêncio do quarto,
buscar teu rosto no  mistério do silêncio.
Que saibamos dar sem ver a quem
e enfeitar no rosto quando estivermos jejuando
de nós mesmos e nos privando daquilo a que temos direito.
Queremos fazer o jejum de nossos acertos de contas,
de nossas reivindicações e autossuficiência.
Do pó viemos e para o  pó voltaremos.
Esta é uma quarta-feira salpicada de cinzas.

B)   Chama que queima como o fogo

Simeão, o novo teólogo (sec. X)

Dá-me, Cristo,  beijar teus pés,
permite-me oscular tuas mãos,
estas mãos que me criaram pela  tua palavra,
estas mãos que tudo fizeram sem cansaço.

Dá-me de cumular de teus dons sem ser saciado.
Que possa ver o teu rosto, ó Verbo
e desfrutar de tua beleza inexprimível,
de contemplar e saborear tua visão, visão inefável,
visão invisível, visão tremenda.

Tu estás para além da natureza,  além de tudo
totalmente todo, tu, meu Deus, meu Criador.
É-nos permitido ver um reflexo de tua glória divina
e uma luz simples, uma luz doce;
Revela-se como luz, como luz se une inteiramente a nós
em totalidade,  teus servos;
luz que se contempla pelo espírito e de longe;
luz  que  se descobre de repente em nosso interior,
luz que desliza como a  água e arde como o fogo
no coração daquele que ela  se apossa…
Por meio desta luz  vim a saber, meu Salvador,
que minha alma  humilde e pobre  fora tocada,
que ela ardia e se consumia.

Não tolero me calar,  meu  Deus,
e esconder nos abismos do esquecimento as obras
que realizaste e que realizas cada dia
para os que te buscam com ardor e que,
com espírito de penitência, se refugiam junto a ti.

Não quero de minha parte
como o servo mau que enterrou seu talento
ser justamente condenado.

Divulgo  estas maravilhas  e a todos as revelo;
passo adiante o que sei a respeito de tua misericórdia
e as narro às gerações que estão  para  chegar, ó meu  Deus.

III. CRÔNICA

Silêncios e ruídos…

 

Se a Porciúncula já por si era um lugar santo,  os frades lhe conservaram a santidade, ali rezando continuamente, dia e noite, e guardando  constantemente silêncio. Se por vezes  tinham que falar, depois da hora do silêncio, era sempre com a máxima devoção e seriedade, em coisas da glória de Deus e do bem das almas. Se acontecia, o que era raro,  alguém proferir palavra ociosa ou inútil, era logo repreendido pelo companheiro.  (Legenda Perusina)

 

Há silêncios que incomodam e ruídos que fazem bem.  Há barulhos irritantes e silêncios desejados. Há ruídos suspirados e silêncios temidos.  Seria  bom que o garoto da casa, sempre doentinho,  gritasse, bradasse  berrasse. O doente precisa de silêncio para dormir.  A velha senhora que mora sozinha estremece de alegria quando o telefone toca ou quando ouve os passos de alguém que se aproxima da porta de sua casa. Sua dolorida solidão será quebrada. Há o triste silêncio do quarto do doente no hospital ou da cela da mulher encarcerada.  Silêncio e ruído; coisas relativas. Há o perverso silêncio do mutismo, sinal de orgulho. Há a fala que comunica, que estabelece uma ponte entre os seres.  Há pessoas que falavam o tempo todo mas nada dizem porque nunca  moram em si mesmas.

Há esses barulhos que incomodam: o estridente  roncar de uma moto na calada da noite,  o som  de aparelhos sonoros vindo de carros parados ou em movimento, essas baterias em nossas liturgias, esses animadores do canto que cantam para si com toda a força do peito e da potência dos aparelhos nem sempre afinadamente, uma pessoa que remexe o fundo da bolsa ou amassa sacos plásticos na sala de cinema.

A mulher está no fundo da sala, sentada, desfiando as contas do rosário. Há  silêncio à sua volta. Lá no fundo da capela um sacerdote  reza a  Liturgia das Horas diante do silencioso sacrário.  Há o amigo que vem para consolar o amigo que perdeu  um filho.  Não faz discurso. Não tem a intenção de declinar as razões para não desesperar… Basta  sua presença. Coloca a mão no ombro do amigo e permanece em silêncio. Que eloquência nessa presença silenciosa!  Há o silêncio de alguém que acaba de se despedir de um parente no aeroporto.  Acena um lenço e caminha lentamente pelos corredores do terminal aéreo depois que o amigo partiu e que vai demorar a voltar. Sofre de saudades antecipadas e, em silêncio, enxuga uma indiscreta lágrima que teimou em  rolar rosto abaixo.  Que beleza nesses silêncios. Quanta emoção, quanta fala verdadeira!

Há o silêncio da casa das contemplativas.  Terminada a janta, algumas  irmãs vão para a cela.  Procuram ler.  Deixam que o Mistério as envolva.  Depois todas se dirigem à capela para a  prece das Completas. Caminham na ponta dos pés.  Chegam ao espaço de suas celebrações. Recolhem-se protegidas pelo manto do silêncio. Terminada a oração, algumas permanecem ainda no lusco-fusco da igreja dizendo coisas ternas ao Deus que habita no silêncio dessa casa. E durante o dia há essa irmã que ajuda  a descascar batatas e cenouras silenciosamente.  Silenciosamente, ela arruma o refeitório para as irmãs que vão chegar para o almoço.

Há esses ruídos irritantes, enervantes, alucinantes. Soam os celulares nos lugares mais indiscretos possíveis:  no meio de uma sinfonia de Tchaikovsky  na Sala São Paulo, na hora da consagração da missa  ou  no meio de um discurso da Presidente no Palácio Alvorada.  E as chamadas dos celulares, das centenas de celulares…  enervam… até  que as pessoas  tiram o  estrupício do bolso ou da  bolsa. Isso  não é o pior. O dramático é você precisar ouvir  intermináveis conversas  no metrô, nos ônibus urbanos e intermunicipais ou interestaduais. Por vezes são cinco pessoas que falam ao mesmo tempo com seus interlocutores…  Uns falam mais baixo e vertem mel junto com a voz.  São os  amorosos e as amorosas.  Outros falam de cheque  sem fundo, de brigas de família, de disse que disse.  Somos obrigados a escutar histórias que não nos dizem respeito, conversas que nos impedem de ler, de rezar, de dormir… Pessoas sem nenhuma educação  pensando que com seus celulares são os donos do mundo.  Não vejo a hora que se proíba o uso de celular  em tantos lugares.

Tenho saudades de certos silêncios,  de modo especial,  nos espaços celebrativos. A ação litúrgica começa sacristia.  Houve tempos em que ali se guardava silêncio e silêncio total.  O celebrante entrava na sacristia, ajoelhava-se e rezava belíssimas  orações como preparação para a celebração da  missa. Celebrante e ministros esperavam o toque do sino para o início da cerimônia  em santo e belo silêncio,  dialogando com Aquele que está para ser cantado e decantado.  Tenho saudade  do silêncio em nossas igrejas, não um silêncio sepulcral,  mas delicado.  As pessoas chegam com seus desejos, suas  dores e suas alegrias e querem estar com o Senhor na capela bonita, limpa, docemente iluminada  e estar  com o  Senhor envoltas no mistério do silêncio.

Durante a celebração da Missa e dos sacramentos, o silêncio é  fundamental.  Há esse silêncio do ato penitencial.  Na coleta da Missa, o celebrante convida à oração e guarda silêncio. Há o silêncio para que as leituras sejam ouvidas e depois de proferidas mergulhe em nosso silêncio interior, silêncio de nossos brados egoístas.  Há esse silêncio depois da comunhão, silêncio de ação de graças, silêncio que cavamos para neles caber aquele que quer morar em nossa intimidade.

Impressiona-me  o silêncio  durante a ordenação  sacerdotal.  O bispo impõe a mão em silêncio, os presbíteros  fazem o mesmo sem comentários,  sem discursos,  sem falas ocas. Terminada a celebração, o jovem presbítero deveria ter um  tempo para deixar que coisas se assentassem nos cantos de seu coração. Há esse silêncio do enfermo que recebe o sacramento da unção  sabendo que o fim está próximo. Depois de ungido, de coração contrito, ele guarda silêncio.  Terminada  a promessa  do sim no sacramento do matrimônio, os noivos deveriam ser presentados com minutos de silêncio.

Jesus nasceu no silêncio de um presépio.  Não  há relatos em que ele participe de algazarras. Ele vive no silêncio. No silêncio do deserto ele vai tentar ouvir a voz do Pai. Quando as multidões o sufocam, ele se retira. Não fala nada quando o acusam.  Não fala nada suspenso entre o céu e a terra. É o príncipe do silêncio que vive silenciosamente ligado ao Pai da fala e do silencio.

Há ruídos que ficaram na memória de nossas vidas:  o barulho  forte da chuva de verão no telhado de zinco da casa da infância, o canto da mãe  enquanto lavava roupa.  Há o latir do cão vira-lata, do Duque, que, na calada da noite anunciava que tinha um gambá no galinheiro.  Há esse ressonar sereno e suave do bebê  no berço.  Há  essa voz carinhosa do amado  que soa como  uma música  aos ouvidos da amada.  Há silêncios que incomodam e ruídos que fazem um bem enorme.

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI?

Família: ternura e violência

 

A família será sempre um espaço de manifestação de bem querer e de expressões de ternura. Lamentavelmente as pessoas vivem terríveis momentos de violência no seio das famílias. Esta  não pode ser uma camisa de força.

 

1. Falar em família é pensar em pessoas que se estimam. Um homem e uma  mulher se escolhem livremente. Deixam seu universo e lançam-se na aventura do amor a dois. Confiantes, serenos, uns velando pela vida dos outros:  assim é a família. Ali nascem os filhos no terno e delicado encontro dos corpos e dos corações de um homem e de uma mulher que fazem um pacto de amor, de  bem querer, de profunda estima. Os filhos, pequenos ou grandes, serão objeto da ternura  masculina e feminina:  cuidados materiais, preocupações, manifestações de estima e de carinho. Uns com os outros, ligados pela força do amor. A família é espaço de entendimento, de compreensão,  de crescimento humano na convivência. Certas famílias formais e frias de tempos passados deixaram de existir e foram surgindo espaços de acolhimento e de carinho. O pai,  menos áspero, não tem vergonha de beijar seu filho crescido. Que beleza essas famílias feitas com o tecido da ternura! Por vezes penso que o amanhã será melhor!

2. De outro lado, continuam existindo  manifestações de violência  no seio da família.  Perdura ainda, aqui e ali, uma certa mentalidade machista. Muitas mulheres do passado e do presente  não tiveram e não têm voz. Meio desajeitadamente, talvez  por insegurança,  há homens que  gritam, magoam, cerceiam a liberdade de suas mulheres,  usam-nas, de alguma forma, como se fossem coisas. Há mulheres que  não podem praticar a fé como desejariam para agradar aos maridos. Há maridos que usam de violência verbal e física. Nos últimos tempos esses casos de violência contra mulheres andam se multiplicando. De outro lado, certas  mulheres que não amam seus maridos  servem-se deles, usam seu dinheiro e mantêm envolvimentos amorosos com outros homens.  Este engano é forma de violência.

3. Ainda em  nossos dias há certos “cavalheiros” machistas que escolhem sozinhos a escola para os filhos, a fé que os filhos vão praticar ou não praticar,  a maneira de educar os meninos numa sexualidade meio aberrante, abrutalhada,  meio de orgia.  As mulheres não podem dar seu parecer.

4. Há uma certa forma de violência  no casal quando não é trabalhada a harmonia sexual. As coisas são feitas sem atenção, desvinculadas de um amor mais profundo.  As pessoas se sentem usadas e violentadas e não fazem mais esforço  para amar de verdade.  Suportam-se, toleram-se.  Ou então, evitam o encontro dos corpos. E esses casais,  embora vivendo juntos,  não são casais.  Há uma violência camuflada  nesses relacionamentos.  Por causa da violência  há a indiferença e traição.

5. Há  curiosas  formas de violência  no lar.  Um rapaz simples se casa e passa a viver na casa dos pais. Ele e a mulher têm seu quarto, mas todos os outros espaços  da casa  são  da mãe dele…  A  esposa do rapaz  depende da  sogra:  a casa é da sogra, o telefone é da sogra,  a cozinha é da sogra, a voz definitiva é da sogra, o banheiro é da sogra.  Uma situação dessas, evidentemente,  deve ser provisória.  Há outra situação.  Um rapaz casa-se com uma moça possessiva e profundamente imatura. Esta não admite que os familiares dele se aproximem de sua vida. O jovem esposo, um apaixonado alucinado, não reage. A mãe  e o pai do rapaz não se sentem em liberdade para visitar o filho. Quando nasce o neto não são convidados a viver esse momento de alegria. Estamos diante de terríveis manifestações na vida familiar.

6. Há a violência  de palavras  e gestos no seio de uma família. Violência entre marido e mulher. Espancamento até  quase à morte. Violência com requintes de perversidade. Há essa violência dos pais para com seus filhos. Pais que  não conversam com os filhos. Há biografias muito sofridas de crianças e jovens sem afeto, sem carinho. Há meninos que teriam querido um abraço e um beijo e recebem solenes manifestações de indiferença  e mesmo de desprezo. Há filhos que gostariam de conversar com o pai e com a mãe a respeito de dúvidas  na questão  da opção  pela sexualidade. Há  rapazes e moças “homossexuais”  desprezados  no seio da própria família.

7. Nem precisamos lembrar  outra forma de  violência que acontece no seio das famílias:  violência sexual, abuso sexual.   Pais, padrastos, irmãos mais velhos que se aproveitam dos  filhos, enteados e irmãos. E  esses envolvimentos deixam feridas profundas na vida das pessoas. Alguns desses crimes são denunciados.  Há pessoas que sofrem tais abusos e que experimentam medo e vergonha de tocar  no assunto.  A família não deveria ser um espaço de ternura?

8. Talvez possamos dizer que  é  forma de violência por parte  dos pais quando não cuidam de abrir o coração dos filhos para as coisas de Deus e do Evangelho.  No fundo  do  coração de cada pessoa  há uma sede oculta de Deus e  há pais  fazem de tudo para mostrar a inutilidade da fé.  Penso nas famílias católicas que pedem o batismo para os filhos,  colocam-nos na preparação catequética para a primeira eucaristia, mas no dia a dia não alimentam sua fé.  Pais que não frequentam a missa, que vivem na vida esquema de duplicidade de vida com comportamentos nítidos de pessoas que não seguem a Cristo. Isso também é violência.

9. Exprimo meu encantamento diante de  filhos que cuidam carinhosamente de seus pais ou padrastos envelhecidos e adoentados. As pessoas que vão perdendo suas forças se sentem inseguras e amedrontadas.  Há pais idosos,  tios e tias solteiros que precisam ir ao médico,  fazer uma cirurgia, comer um pedaço de torta de maçã,  receber um presente no dia do aniversário.  No seio de uma família carinhosa todos passam a se interessar por esses seres hoje cansados mas que deram  tudo pelos seus e mesmo que  não tenham dado…

10. Há uma terrível forma de violência  que precisa ser denunciada.  Nosso mundo hoje é o mundo das drogas, do tráfico.  Há pessoas corrompendo jovens, aliciando-os, colocando-os à beira do abismo da dependência  e fazendo com que eles se tornem seres em decomposição. Esses rapazes e moças serão um eterno sobressalto para a vida dos pais… Muitos deles vão morrer muito cedo…

Frei Almir Ribeiro Guimarães

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

Quando o coração dá muitas voltas

Encontro consigo mesmo

Que pretendemos fazer de  nossas vidas?  Para onde caminhar?  Que fazer desse espaço que se chama  minha vida, nossa vida?  Na sua juventude, o coração  de Francisco,  esse de Assis, deu muitas voltas em seu peito. Continuamos a série de reflexões sobre  um certo  Francisco de Assis.  Esta é uma pagina para grupos vocacionais e para  pessoas que não querem viver mediocremente.

 

1. Francisco vai vivendo sua vida na Assis dourada e cheia de promessas.  Novos tempos para a cidade.  A nobreza deixa de imperar.  Surgem novas classes. O pai de Francisco é um comerciante que anda tendo muito sucesso. O dinheiro impera. Os nobres se refugiam em seus castelos. Há classes emergentes. Novos ricos. As revoluções populares derrubam a fortaleza de Assis. No meio de  tudo isso há um jovem chamado Francesco.  Jovem,  podendo tornar-se rico, mas que não se sente bem em lugar nenhum.  Seu desejo de glória parece não realizar-se. O que fazer da vida?  Para onde ir?  Ficar a vida toda vendendo tecidos na loja do pai? Ganhar dinheiro? Casar-se?  Ter uma porção de filhos? Simplesmente envelhecer e morrer? Que fazer da vida?  Esta é  uma pergunta que sempre nos trabalha por dentro.  Sim, o que estamos fazendo, ou o que faremos de nosso existir? Parece que,  no começo de seu processo vocacional, Francisco  começou a frequentar mais seu interior.  Foi quando seu coração começou  a dar  muitas voltas. Francisco começou  a se encontrar consigo mesmo.

2. Francesco está em torno dos vinte anos de existência.  O mundo está  aos seus pés. O que é certo:  ele não deseja viver mediocremente. Quer agarrar tudo. Começa a buscar, de maneira bem prática,  seu caminho.  Inicia um verdadeiro processo de discernimento vocacional. Engaja-se nas batalhas e lutas de sua Assis contra a cidade de Perúgia. Ali, no campo de batalha, vestido com roupas de guerreiro, pensa poder encontrar a glória… Depois… depois poderia voltar  vitorioso e as meninas não o largariam mais.  Seria coroado de troféus. Mas não são assim que as coisas acontecem. O jovem Francesco é feito prisioneiro. A  Legenda dos Três Companheiros diz  que  seus companheiros de cárcere estavam  muito tristes. Francisco,  sempre  jovial e alegre,  não  se mostrou  triste. Disse aos circunstantes: “O que vocês pensam de mim?  Haverei ainda de ser honrado no mundo inteiro!” (3 Companheiros  4).   Tem-se a nítida impressão que Francisco começa a se preocupar com seu  futuro. Não deveremos pensar em primeiro lugar que sonhe com grandezas  quaisquer.  Pensava em ideais nobres como o da cavalaria.  Esse tempo da prisão deve ter purificado o interior do jovem.

3. As coisas iam sendo trabalhadas em  seu coração. Naquele cárcere, privado de liberdade,  em contacto com bandidos e criminosos  Francisco tem ocasião de refletir sobre  sua vida. Esta situação de reflexão vai continuar  durante o tempo de doença que viveu de volta à casa.  A mãe cuidava dele. Dedicava-se às atividades comerciais e assim enchia o tempo.  São Boaventura afirma que nesse tempo  ignorava  ele os planos de Deus a seu respeito.  Não estava acostumado a pensar nas  coisas divinas.  Mas acrescenta que o sofrimento pode dar compreensão  às coisas da alma.  Francisco vai sendo trabalhado  pelo  Alto.  Sempre a pergunta:  “O que fazer da vida?”

4. Outro episódio importante  foi o do sonho do palácio cheio de armas.  Sonha em ser cavaleiro, bonito, elegante, galante, tendo as moças  a seus pés… coberto de honras.  Francisco interpretou este sonho como se ele estivesse fadado a ser um grande príncipe.  Há nele um desejo de buscas. “Despertando, levantou-se de manhã animado e alegre, pensando de maneira mundana, como quem ainda não saboreia  plenamente o espírito de Deus, que devia ser um príncipe magnífico e, julgando e visão um presságio de grande prosperidade, deliberou empreender uma viagem à  Apúlia  a fim de ser constituído cavaleiro….”  (3Companheiros  5).

5. E continua  a busca de seu caminho.  Os biógrafos falam da visão de Espoleto.  Estava no empenho de tornar-se cavaleiro, de pegar em armas,  na busca das glórias terrenas.  Ouviu meio dormindo  alguém que lhe dizia:  “Quem te pode fazer  melhor ou maior:  o servo ou o senhor? Francisco diz que  é melhor servir ao senhor.  A voz lhe diz:  Por que andas servindo o empregado e não o patrão?  Francisco não entendia as coisas. Era o Mistério de Deus que começava  atraí-lo. Elaborava-se a sua vocação.  Precisava servir a um patrão.  Mas quem era esse patrão, esse senhor?

6. Depois desta visão de Espoleto, os biógrafos falam de uma mudança  de comportamento por parte de Francisco. O alegre  Francisco se torna pensativo.  Numa determinada ocasião após o jantar  seus companheiros de festas iam  à frente, cantando.  Francisco permanecia mais atrás, pensativo. Parece que Deus começa a empurrar a porta de seu coração.  Era uma visita de Deus. Dizem os biógrafos que  Francisco experimentou uma grande doçura no fundo do coração. Os companheiros pensavam que estava amando, que tinha arranjado uma namorada.  Sua cabeça dava muitas voltas.  Ele estava diferente. Características desse  momento da vida de Francisco:  atitude de reflexão, recolhimento interior,  disponibilidade, exame da possibilidade de arriscar a vida.

7. A pergunta fundamental  é esta:  O que queres de mim? Os biógrafos de Francisco dizem que ele começa a não levar tanto em conta as coisas superficiais e dedica-se  mais à oração.  O que antes amava aos poucos vai perdendo o gosto e  o filho de Pietro di  Bernardone vai se desligando das coisas do mundo. Começava a ser visitado pelo  Espírito. O doce começava a se tornar amargo e o amargo, doce.  Pede à Providência que lhe mostre um caminho. Parecia que sabia da existência de um tesouro, mas ignora onde encontrá-lo.  Tudo indicava que ele  teria que vender todas as coisas,  também sonhos e vaidades.

8. Uma oração aflorava em seus lábios: “Iluminai as trevas de minha alma, dai-me uma fé íntegra,  uma esperança firme,  uma caridade perfeita. Concedei meu Deus que eu vos conheça muito para poder agir segundo a vossa vontade”. O homem de Assis estava vivendo uma santa inquietude.  Muitas etapas haveriam de ser percorridas antes de encontrar o verdadeiro caminho a trilhar. Para ele e para todos nós fica a  questão:  O que queres de mim, Senhor? O coração de Francisco andava dando  muitas voltas… 

Para continuar a reflexão
Como  Francisco se tornou  prisioneiro em Perúgia (Legenda dos Tres Companheiros  4)
O   sonho  das armas  (Legenda dos Três Companheiros  5)
É melhor servir ao senhor do que ao servo  (Legenda dos Três Companheiros 6)

Para refletir

  1. O que mais chamou sua atenção na leitura desta reflexão?
  2. O que estava se passando com Francisco?
  3. Que tipo de perguntas os jovens costumam fazer a respeito de seu amanhã?Frei Almir Ribeiro Guimarães