Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Dezembro 2018

DEZEMBRO 2018

TIRANDO DO BAÚ COISAS NOVAS E VELHAS

Reinventando a vida a cada dia

Edição de Dezembro de 2018

 Já estamos quase no fim do ano. Tudo aponta para o Natal e os  festejos de fim de ano.  Nossa Revista Eletrônica, desta vez, não segue o esquema habitual com suas variada e hatituais rubricas.  Queremos simplesmente oferecer aos nossos leitores uma “antologia” de páginas do tempo do fim de ano.  São textos densos que nos ajudam a viver bem a atmosfera formosa do mês de dezembro.

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

O Senhor anda atrás de ti!

“Afinal de contas, será que nunca serei o primeiro?”

 

Dezembro é tempo de arrumar o coração. Tempo de olhar as nuvens do céu que estão para chover o Justo. Tagore nos diz: “Você está ouvindo seu passo silencioso?  Ele está perto. A cada instante. A cada estação da vida, a cada dia, a cada noite. Ele está perto. Ele se aproxima”. Advento,  tempo de espera ativa.

Senhor,

havia começado a dar passos em tua direção

e depressa me dei conta que já vinhas ao meu encalço.

Queria correr rumo a ti e vi que já acorrias a mim.

Desejava esperar-te e fiquei sabendo que tu já me esperavas.

Queria te procurar, mas vi que andavas à minha procura.

Pensei comigo mesmo: “ Finalmente o encontrei”,

mas percebi que já tinha sido encontrado.

Eu queria te dizer: “Te amo”, mas fui eu que te ouvi dizer:

“Tu me és muito caro”.

Tinha a intenção de te escolher, mas me escolheste antes.

Queria te escrever, mas vi que tua carta chegou antes.

Desejava viver em ti e me dei conta que já vivias em mim.

Queria te pedir perdão e fiquei sabendo

que  já me havias perdoado.

Ansiava por me oferecer a ti e,

no entanto,  recebi o dom inteiro de ti mesmo.

Desejava te oferecer minha amizade e recebi a tua de presente.

Queria te chamar de “Abba Pai” mas tu já me dizias: “Meu filho”.

Ansiava por revelar-te meu mundo interior

e te surpreendi revelando-me a profundidade de teu ser.

Queria te convidar para que fizesses parte  do mais profundo de mim

e eis que fui convidado a entrar em tua intimidade.

Desejava exultar de alegria por ter voltado para ti

e me dei conta de que já estavas a te alegrar minha volta.

Afinal de contas, será que nunca serei o primeiro?

Tagore

Revista Prier, n. 98

A arte de esperar

 

José Tolentino Mendonça é escritor sem igual. Escreve sobre as coisas mais corriqueiras com elegância, graça e sobretudo com densa profundidade.  Faz com que  mergulhemos nas águas límpidas do Evangelho.  Aqui ele nos fala da arte de esperar, tema propício para o tempo do advento.

             Estava aqui lendo uma entrevista do grande fotógrafo  Sebastião Salgado em que faz o elogio de um prazer inusual: o prazer de esperar. E não é que ele tenha quaisquer ilusões  sobre a distância a que estamos  desse prazer culturalmente interdito: “Vivemos hoje num acelerador de partículas, num clima de permanente expectativa”, temos uma dificuldade, que nos chega a parecer insuperável, de mergulhar na lentidão e na gratuidade dos processos humanos autênticos, por mais excepcionais e cotidianos que sejam. Mas garante Salgado: “Para fazer uma fotografia, é mesmo necessário experimentar o prazer de esperar”.  Lembro-me a esse propósito, de uma história de Federico Fellini que ouvi contar a Tonino Guerra: um dos hábitos do cineasta era chegar a qualquer encontro  um bom bocado antes da hora aprazada, fosse a uma reunião de trabalho ou a um jantar de amigos. Chegava ao lugar e punha-se a fazer hora, caminhando prazenteiro e sem dar sinais de coisa alguma  ao longo da rua, para lá e para cá.

Quando os amigos o surpreendiam  nisso e lhe perguntavam porque não tinha tocado à porta imediatamente, a resposta era semelhante à do fotógrafo: “O prazer de esperar”. A nossa cultura, que mistifica (ingenuamente) a eficácia e o utilitarismo, há muito cancelou o  valor da espera. Os prazos sôfregos que incorporamos consideram-na um atraso de vida, um excrescência irritante, bota de elástico e obsoleta.  Esperar por quê? Do pronto a vestir ao pronto a comer, da comunicação em tempo real ao experimentalismo instantâneo dos afetos: a espera tornou-se um peso morto com o qual não sabemos lidar e que é preciso descarregar  porta afora. Talvez esse desejo de instantaneidade seja em nós um dissimulado reflexo defensivo, o medo crescente de que num mundo acelerado não exista afinal ninguém nem coisa alguma que nos espere.  Quando todos vivem altamente pressionados, tudo se torna arriscadamente precário  –  é o que vamos constatando.  Mas por dentro, e com medo, e sem falar disso.

Damos por nós hipermodernos, polivalentes, aparelhados de tecnologia com um central ambulante, multifuncionais mas sempre mais dependentes, perfeccionistas mas sempre insatisfeitos, vivendo as coisas sem poder refleti-las, próximos da atividade extenuante e, no fundo, distantes da criação. Precisaríamos, talvez, dizer a nós próprios e uns aos outros que esperar não é necessariamente uma perda de tempo. Muitas vezes é o contrário. É reconhecer o seu tempo, o tempo necessário para ser; é tomar o tempo para si, como lugar de maturação, como oportunidade reencontrada; é perceber o tempo não apenas como enquadramento do sentido, mas como formulação em si mesma significativa. Quem não aceitar, por exemplo, a impossibilidade de satisfação imediata de um desejo, dificilmente saberá o que é um desejo (ou, pelo menos, o que é um grande desejo). Quem não esperar pacientemente pelas sementes que lançar, jamais provará a alegria de vê-las florir.

No que aos tempos respeita, a vida é completamente artesanal.  Não é possível reproduzi-la em série, nem encontra-la feita no outro lado.  A vida requer a paciência do oleiro, que, para fazer um vaso que o satisfaça, produz duzentos só para treinar o gesto, a habilidade, testando a sua ideia. Por isso gosto muito da forma bem-humorada  com que o Edgar Morin explica  todas essas coisas. Diz ele: “Como  toda a gente, tenho um horror total às esperas nos correios ou nos consultórios e não suporto as filas burocráticas as que nos obrigam.  Contudo, não cesso de esperar o inesperado”.

José  Tolentino Mendonça
Libertar o tempo
Para uma arte espiritual do presente
Paulinas,  2017 , p. 33-36

Amor de Jesus às crianças

Cedemos agora a palavra ao capuchinho  Ubaldo Terrinoni, italiano de Viterbo. Neste tempo do nascimento do Menino é bom ler estas reflexões que falam  do carinho e atenção de Jesus para com as crianças.  Afinal de contas, Natal é a festa da  Criança.

             Com a sua fina arte pedagógica, Jesus demonstra um profundo amor às crianças.  A ele acorrem os pequeninos, sentindo que são por ele amados com um amor especial. Os seus prediletos são as crianças  (Mt  18, 1-5), os simples  (Mc 10, 13-16), os puros de coração  (Jo 13,23), os pobres (Lc 6,21), os que sofrem  (Mt 11,28); numa palavra, são os fracos, os indefesos, os inofensivos, não somente porque se sintoniza com eles, mas também porque ele procura e exige uma alma infantil, simples, pobre  naquele que quer entrar no Reino dos Céus (Mt  18,3). E para os pequenos  reserva demonstrações de afeto. Por duas vezes, em diferentes circunstâncias, Marcos relata que Jesus toma as crianças, abraça-as afetuosamente e as abençoa (Mc 9,36; 20,16).

Basta somente recordar que o termo “criança” e seus sinônimos aparecem nos evangelhos mais de duzentas vezes. É evidente que este é um tema que interessa muito ao Mestre. E com justiça!   Porque a infância evangélica é o máximo da maturidade. Trata-se, de fato, não de permanecer crianças, mas de tornar-se  (em grego: genèsthe)  crianças (Mt 18,3). Isso supõe percorrer um longo itinerário espiritualmente que lentamente leva a profundas conquistas interiores, reconduz às fontes originais da simplicidade, da inocência e da transparência.

Um dia os discípulos fizeram esta pergunta a Jesus: “Quem é o maior?” (Mt 18,1). Jesus respondeu que verdadeiramente grande é o “pequeno” (em grego paidion). Ou melhor, ele escolhe identificar-se, justamente com esta figura fraca e frágil:  “Quem acolher em meu nome  uma criança como esta, estará acolhendo a mim mesmo”  (Mt 18,5). Ele quer ser encontrado nessa simplicidade.

Tornar-se “crianças”, portanto, não é voltar atrás no infantilismo, na puerilidade, nos caprichos de criança. A infância evangélica é fruto precioso da idade adulta, vivida num exercício incessante de se fazer “pequeno” por amor. Assim, para ser realmente “grande” ao coração do Mestre, não se deve “subir” na escala social, mas “descer”; para  “progredir”, é preciso voltar atrás  (em grego: straphète) (Mt 18,3); para uma avaliação correta de si mesmo, não se deve colocar em evidência, mas se esconder.

Pede-se uma mudança radical da própria existência, no modo de agir, de pensar, de falar, de viver, de conduzir-se, de projetar e avaliar a realidade. Para realizar uma reviravolta na vida, é preciso praticar o exercício do fazer pequenos, pobres, humildes, sem segundas intenções, sem reivindicações e pretensões. E isso não acontece facilmente, como num passe de mágica, mas através de sofrimentos, de provas indizíveis de solidão, de escuridão, de humilhações, de incompreensões e até de morte.

São provas que fazem passar pelo cadinho o espírito e a carne, e então é como se se nascesse de novo. Sim, tudo começa do princípio e tudo estava revirado. Toda a realidade é descoberta como  dom de Deus e não como uma coisa devida;  e nada se torna hábito, mas tudo é acolhido com o sentido da maravilha, da surpresa, do assombro. “Sempre me comoveram certos anciãos que dão a impressão de defrontar-se todos os dias com a vida. Adquiriram a capacidade de admirar-se com tudo, de não considerar nada previsto” (A.Pronzato). Esses são os verdadeiros “pequenos” do Reino: a eles o Senhor reserva o seu amor e suas predileções.

 Ubaldo Terrinoni
Projeto de pedagogia evangélica
Paulinas  2007, p. 90-11

Natal: Um amor que desarma

Será sempre Natal se conseguirmos discernir em todo semblante humano traços do semblante de Deus.

 “No começo era o Verbo, a Palavra de Deus, e o Verbo era Deus… o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Assim escreveu João em seu fascinante Prólogo.  No dia de Natal Deus se fez carne.  Será que não nos acostumamos demais com esta afirmação e ela deixou de  causar espanto em nós?  Não temos a faculdade da admiração?  Talvez tenhamos perdido o alcance da palavra Deus e da palavra carne. Experimentem  chegar perto do berço de uma criança e tentar murmurar: Deus! Que poderá isto provocar em vocês?

Diante desse rosto tão frágil em que a Luz incriada ganha a forma de dois pequenos olhos deslumbrantes, em que a Ternura criadora se faz boca que sorri, em que o Poder se faz braço que se estende, a partir de então nossas concepções de Deus e do homem voam pelos ares. Deus-criança. Vertigem da encarnação.  Nossa razão se assusta! Nosso coração maravilha-se.

Natal! Mistério de fé.  Só o Espírito pode nos fazer contemplar, no colo desta jovem judia,  chamada Maria, Deus nos visitando.

Natal! Encontro imprevisível  entre a eternidade e o tempo, o divino e o humano, a vida eterna e o homem mortal. Hoje o impossível aconteceu. A espera multissecular  dos homens ganhou corpo.

Hoje o horizonte de nossa história explodiu. O planeta Terra, esse minúsculo grão de poeira perdido na imensidão das galáxias tornou-se a residência de Deus.  Num corpo de homem bate o coração de Deus!

Estupefaciente humildade de Deus que se esconde e se revela  sob os traços de uma criança.  O que de mais inocente e de mais puro do que o olhar de uma criança?  Diante dos olhos de uma criança o mercenário, o que experimenta saciedade, o vagabundo, o homem mais indiferente  podem ver ainda brilhar a esperança de um mundo de amor e de paz.  Quando Deus vem salvar o homem armado até os dentes, ele, o Altíssimo  ganha olhos de criança para nos olhar.  Seu único poder é o do amor. Um amor que desarma.

E João acrescenta ainda uma frase lapidar, já contendo toda a paixão de Jesus: “Deus veio para os seus e os seus não o receberam”.  Aí está o drama permanente de nosso mundo: o homem só pode renascer e fazer nascer um mundo novo quando acolher o amor, a humildade e paz desse Deus insólito.

Esta é a razão pela qual o amor  nunca acaba de nascer em nossa terra.  Será sempre natal cada vez que contemplando um semblante humano  ouso ali discernir os traços de Deus… 

Inspirado em Michel Hubaut, OFM

in  Prier, dez. 1993, p. 8

Cada ano que passa... um passo adiante

Vamos começar a servir a Deus, meus irmãos, porque até agora nada fizemos.

Francisco de Assis

Senhor Deus bondoso,

sumo bem,  Deus de todos os tempos, acima de tudo Amado!

Cada ano que passa é um passo em tua direção.

Normalmente com o passar do tempo as pessoas

se encaminham para o tempo da velhice.

Os cristãos, no entanto, se dirigem para um tempo novo.

O tempo da visão sem fim de teu semblante.

Voltamos para a casa de teu amor de onde saímos quando inventaste a cada um de nós.

Ficou para trás mais um ano de nossas vidas e da vida do mundo.

Trilhamos um caminho por vezes reto e plano,

outras vezes  pedregoso e esburacado,

por vez por ofuscante  luminosidade,

outras vezes por sombras.

Uns dias caminhamos sob  sol escaldante,

outros dias uma brisa suave acariciava o nosso rosto.

Chegamos atrasados a alguns encontramos

nos quais nos era pedido pontualidade.

Questão de indolência e de preguiça,

de distração ou de indiferença.

Alguns desses encontros foram marcados

com pobres, abandonados e crianças…

Pois é,  tens a mania de te ocultar atrás dessas vidas.

Falhamos aqui e ali,

quase desanimamos e  desesperamos.

Ano novo…

Temos certeza  que teu amor e tua misericórdia  nos renovam.

Só tu conheces nosso amanhã.

Soubemos que contas os fios de cabelos de nossa cabeça

e também os dias, minutos e segundos que temos para viver.

Demos, ao longe de 365 dias,

mais uma volta em torno ao sol, astro brilhante,

palidíssima  imagem do clarão da eternidade.

Sei muito bem que minha e nossa vida

estão em tuas mãos e isso nos basta.

Colocamos nossos passos nos caminhos

do ano com toda confiança.

Vamos começar tudo de novo

porque até agora pouco ou nada fizemos.