Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Dezembro 2021

I. A Boa Nova de uma grande alegria

       Nasceu-nos  um menino

 

Deus na terra, Deus no meio dos homens.  Não é mais aquele que outorga a lei  no meio de relâmpagos, ao som da trombeta na  montanha em labaredas,  na escuridão de uma  tempestade  terrificante,  mas aquele que se entretém  com doçura e bondade num corpo  humano  com seus  irmãos de raça.  Deus na carne.

São  Basílio Magno 

            Diante de nossos olhos a cena tantas vezes decantada:  uma criança  que nasce.  Um espaço modesto, a manjedoura, a Mãe, José e o Menino,  tudo singeleza e simplicidade.  Tudo encantamento.  Deus se torna acessível, palpável, próximo, criança.   Christian Bobin diz: “A criança é que alimenta a vida”.  A sociedade do descartável, do consumismo e da rotina  foi  perdendo a  condição de extasiar-se  diante da Criança.

Sim, Natal é  Deus que se torna a encanadora  figura de uma criança.  Para  Francisco de Assis dois abismos de amor de  nosso Deus  são revelados através  do Natal e da Cruz.  Os biógrafos de Francisco  lembram que o  santo festejava o Natal com inefável alegria.  Chamava de festa das festas o dia em que   Deus feito menino  se amamentava como todos os filhos dos homens.  O santo beijava a imagem do Menino com intensidade.  A  fragilidade do Menino  fazia com experimentasse  alegria incontida.  A grande notícia do Natal é que  Deus continua sendo Mistério. Mas agora sabemos que ele não é  um ser tenebroso,  inquietante e temível, mas alguém que se nos apresenta próximo, indefeso, afetuoso, a partir da ternura e da transparência de uma criança.

Escolheu tudo o que é pobre. Teodoro de Ancira  nos ajudar a refletir:  “Veio o  Senhor de todos em  forma de servo, revestido de pobreza, de modo a não afugentar os que buscava. Em terra incerta, escolhendo um lugar desconhecido para nascer,  foi dado à luz por uma virgem pobre, na pobreza total, para que pelo silêncio cativasse  os homens que vinha salvar.  Pois se tivesse nascido na glória, rodeado de muitas riquezas,  diriam sem duvida os infiéis  que a transformação da terra fora obra do dinheiro.  Se tivesse escolhido Roma, a maior cidade do mundo, atribuiriam  ao poder de seus cidadãos a mudança do mundo (Teodoro de Ancira, sec V).

Toda criança que nasce necessita ser acolhida em sua fragilidade.  “Para reconquistar os homens, eleva-los a si, para falar com eles Deus veio a este mundo como criança,  com o um balbucio  que é fácil sufocar. E de fato sufocam. Sufocam-no fazendo do Natal a festa da sociedade de consumo,  do esbanjamento, do institucionalizado, festa dos presentes e das decorações  luminosas,  do décimo terceiro salário, dos champanhes e  panetones, festa  de certa poesia de bondade generalizada, de um difuso sentimentalismo  com verniz de  generosidade e emoção.  Outros sufocam  Deus-menino impedindo-o  de crescer:  Deus permanece  criança por toda a vida;  uma frágil estatueta de terracota relegada a uma  caixa,  que se coloca  no presépio uma vez por ano;  é preciso um pretexto  para dar certa aparência  religiosa a esse  Natal pagão.  As palavras que essa criança trouxe  aos homens não são ouvidas;  são exigentes e inoportunas, enquanto um cristianismo adocicado  é mais cômodo”  (Missal Dominical  Paulus)

Uma criança envolta em  faixas: foi este o sinal dado pelo anjo aos pastores.  Profundas as  reflexões  de Elredo de Rielvaux sobre as faixas que envolviam o menino: “Que sinal receberam os pastores?  Encontrareis  um recém-nascido envolto em faixas, deitado numa manjedoura. Ele é que é o Salvador. Ele que é o Senhor. Mas que há de especial  no fato de estar  envolto em faixas e deitado numa manjedoura? Não são tantas as crianças  envolvidas em faixas? Então que tipo de sinal é este?  Na realidade é um  grande sinal se o soubermos compreender  E haveremos de compreender se não nos limitarmos a ouvir esta mensagem de amor, mas se tivermos no coração a luz que brilhou  com os anjos.  Foi assim que um deles apareceu como  luz quando anunciou pela primeira vez esta notícia, para sabermos que só os que têm luz espiritual no coração é que ouvem a verdade (…) Belém , “a casa do pão” e a santa Igreja na qual se serve o corpo de Cristo, o pão verdadeiro.  A manjedoura de Belém é o altar da Igreja, onde as ovelhas de Cristo se alimentam.  Desta mesa está escrito: Diante de mim preparas uma mesa (Sl 22,5).  Nesta manjedoura,  Jesus está envolvido em panos e esse invólucro dos panos  pode ser comparado aos véus do sacramento.  Nesta manjedoura, sob as espécies de pão e de vinho  está… o verdadeiro corpo e sangue de Cristo.  Cremos que ali está o próprio  Cristo, mas envolto em panos, isto é, oculto no sacramento.  Não temos  sinal maior  e mais evidente do nascimento de Cristo do que seu corpo e sangue que recebemos todos os dias no santo altar; daquele que nascido da Virgem por nós uma vez, vemos por se imolar  diariamente “(Sermo 2, in Natali Domini).


Imagem: Natividade – Botticelli (domínio público)

II. Advento: vigiar e esperar

            Vocês não estão ouvindo seus passos silenciosos?  Ele está chegando, está chegando, está realmente chegando.  A todo  momento e em qualquer tempo, a cada dia e a cada noite.  Ele está  chegando. (Tagore) 

No  mês de dezembro  Advento e Natal nos envolvem. A fé está sempre a nos alertar que Deus, altíssimo e belo, armou sua tenda entre nós. Trata-se de um tempo em que somos  convidados a fazer brotar  em nós o desejo de Deus, de abismarmos  diante de tão grande maravilha: o Altíssimo se torna fragilidade humana,  se torna carente de tudo e de todos dependente. Há, pois festa, no coração dos homens simples e retos.. Natal  é sempre festa dos que se parecem a crianças.  Não se cansam de admirar.

Elredo de Rielvaux, monge, escreve: “Determinou a Igreja com sabedoria que no tempo do advento recitemos palavras dos que antecederam à primeira vinda do  Senhor e revivamos seus desejos. Não celebramos seus desejos apenas um só dia, mas por um tempo prolongado,  pois o objeto de nossos desejos, quando tarda, parece ao chegar, mais doce ao nosso amor”.

Desejo, anelo, esperança e expectativas  perpassam a liturgia e acompanham as batidas de nosso coração .  Não podemos viver dezembro como um dos outros meses.  A espera  aumenta o desejo.   José  Tolentino Mendonça, em um de seus livros,  cita textos que podem nos ajudar a compreender o que é esperar e desejar.   Sebastião Salgado, um dos maiores fotógrafos  dos últimos tempos, afirmou: “Para fazer uma fotografia  é  mesmo necessário experimentar o prazer de esperar”.  Esperar o  Inesperado: “Como todas as pessoas tenho horror às esperas, nos correios, nos consultórios  e não  suporto as filas burocráticas a que nos obrigam.  Contudo não cesso de esperar o inesperado (Edgar Morin).

Desejo, palavra esplendorosa!  Vontade de ir adiante, de não parar,  de não acorrentar a vida na velhice, no que está gasto e está se esfarrapando.  Começar o dia como se fosse a primeira  jornada da existência.  Vontade de sustar os passos do cansaço e da desmotivação.  A  vida não descansa.  As flores continuam desabrochando.  Enfeitam nosso presente.  O sabiá continua se banhando no laguinho em frente  à minha janela. Entra  na  água. Vai para o seco.  Sacode o corpo e as asas à exaustão.  Gosta tanto do banho que  mergulha uma segunda vez no laguinho…A  vida. Voa manifestando uma indiscutível alegria de viver. As andorinhas andam  fazendo ninho no forro da. casa.  A religiosa idosa  se olha no espelho:  cabelos brancos,  rugas  aqui e ali e, no entanto, um brilho nos olhos, um renovado desejo de amar o Amado que ela contempla com as vistas do coração.

Desejo aguçado e atenta vigilância  são  características  do advento.  Não  brincar com o tempo que passa.  A sentinela caminha de um lado para o outro espiando a  entrada da casa e o portão dos fundos.  Não pode dormir.  Ao ouvir o assobio do vento aguça  a atenção, músculos rijos nas  pernas e nos braços.  Olhar arisco e ouvidos em prontidão.  O Inesperado pode chegar e tem desejo de nós.  Esperar o Inesperado  com “gulodice, ” como  disse um autor.

Viver  despertos:

♦ Verificar se não estamos perdendo o gosto pelo Evangelho. Será que o distanciamento do Evangelho não se deve a uma falta de interiorização, de silêncio, de busca de nossa verdade? Será que nossa fé em Cristo Jesus deitou raízes ou consiste numa religião mais ou menos fluida? Vigiar.

♦ Natal, encontros familiares, confraternizações com parentes… Não seria oportuno no tempo do advento verificar como andam precisamente nossos laços familiares. Juntos na diferença, reunidos com o coração ou mera justaposição de indivíduos?

♦ Se a família é a Igreja doméstica não se faz necessário criar caminhos para a chegada do Senhor no seio da pequena célula? Caminhos de simplicidade, terra de contrição, horizontes de atenção para com aquilo que é pequeno, inventar caminhos de perdão?

            “Meus filhos, quando eu tiver entregue a alma, deitem-me de lado no túmulo, amarrem bem as sandálias aos meus pés, coloquem o bastão em minha mão;  quero estar pronto para me levantar  quando vier aquele que deve vir” (Lanza del Vasto).

III. Sacramento dos Enfermos - continuação

Um sacramento que configura à paixão de Cristo 

 

A  integralidade do sacramento dos enfermos provém da unidade profunda que ele permite através de  sua união com a paixão de Cristo.  Associando-se livremente à paixão e à morte de Cristo  os doentes  contribuem  para o bem do povo de Deus.  O Bom  Samaritano é o Verbo feito carne e suspenso na cruz  que permite  ao  homem a possibilidade  de atingir sua verdadeira identidade no âmago de seu sofrimento.

Quem recebe a unção  dos enfermos acolhe antes de tudo o  Cristo que vem em sua paixão  se associar a ele em sua doença.  O Verbo feito carne  tudo assumiu  do homem, inclusive a doença, o sofrimento e a morte.  Ele é o homem ao qual o doente é chamado a se configurar, ele cujo amor se manifesta sacramentalmente em sua ternura na unção dos enfermos. Se a enfermidade  pode ser atenuada ou superada graças  à medicina  o enfermo  recebe uma nova graça de união com o  Cristo redentor.  Os sofrimentos da doença são transfigurados no Cristo de tal sorte que assim não são apenas do doente  mas também  do próprio Salvador.  A solidão do doente  fica impregnada da presença de  Cristo.  Uma força é injetada em sua fraqueza,  brota nele vida que dele toma conta, uma força de Deus,  não mais a sua, mas  a de Deus.

O sofrimento é um escândalo  aos olhos dos homens.  O sofrimento físico é injusto, não responde a uma  lógica,   ataca  aleatoriamente, não corresponde nem a faltas a serem expiadas nem a relacionamentos a serem construídos.  Não  há que inventar-lhe um sentido.    E, no entanto, o homem que sofre  em sua carne pode  descobrir  como fazer do sofrimento material de uma redobrada esperança  de que todos os homens acolham o perdão e entrem na comunhão que  Deus lhes  abre.   Cristo não procura explicar o sofrimento racionalmente   mas une-se aos que sofrem. O sacramento  da unção dos enfermos  comunica esta experiência vital do Cristo  para fazer  da doença um meio  de cooperar com a obra do amor  do Salvador. O homem assim faz o dom de si mesmo.

Evidentemente nada falta ao sacrifício perfeito de Cristo na cruz, mas foi sua vontade nos associar gratuitamente  à sua obra de redenção para sua glória e salvação do mundo.  “Agora regozijo-me de meus sofrimentos  por vós e completo o que falta às tribulações de Cristo em minha carne pelo seu corpo que é a Igreja”,  escrevia Paulo (Colossenses 1,14). Esse texto é  incontornável para compreender  a verdade do sacramento da unção dos enfermos  (cf. Lumen Gentium  11). Oferecendo seu  sofrimento, o enfermo une-se ao Cristo no dom             que ele fez de si mesmo e que se transforma em graça  para a Igreja que é seu Corpo.

Transcrevo,  palavra por palavra,  um escrito do  cardeal Lustiger,  antigo arcebispo de Paris, dirigido aos ministros deste sacramento  ao que recebe o  sacramento da unção dos enfermos: “Estais unidos ao  Cristo que sofre convosco, que se oferece por vós, vos ama e deseja ajudar-vos.  Para alegria vossa ele se faz próximo de vós e vos toma pela mão para que por vossa vez, oferecendo vosso sofrimento, espancando vosso medo, aceitando unir-se à sua Paixão, estareis trabalhando para a salvação de todos, os que amais e os que vós não  conheceis” […]. Recordai-vos que sois úteis  a todos os vossos irmãos, necessários à missão da Igreja.  Aos olhos dos homens estais  quase à margem;  na Igreja e para o  Cristo estais no centro,  no coração do mistério divino”.   Os doentes oferecem vida com Cristo para todos os outros. Os doentes são reservas secretas  da Igreja porque sua comunhão com a paixão de Cristo coloca-os no coração do mistério da Igreja.  No mistério da comunhão dos santos  trata-se de uma autêntica graça de co-redenção   Um autor afirma:  “Seus sofrimentos identificados com o de Cristo têm valor para a salvação  dos que,   numa tribulação maior ainda, têm necessidade de um acréscimo de amor  para serem salvos” Assim fazendo  entram num mistério de compaixão semelhante ao da Virgem Maria em pé diante da cruz.

De maneira misteriosa o sacramento da unção permite que o doente  perceba o que a Paixão tem de bem-aventurança  e já acolher  a alegria.  O  doente  via encontrar o  Cristo  no  Jardim das Oliveiras, lugar de aceitação da vontade do Pai,  mas também lugar de subida para o Pai.  Esse duplo  mistério do Monte das Oliveiras  atua no óleo sacramental  da Igreja.  Assim a carne pode experimentar desde aqui embaixo a alegria da salvação.  Na própria carne, a complexidade  humana encontra antecipadamente  o penhor  de  sua unidade e mesmo de sua ressurreição. 

FIM 


Fonte inspiradora: L’onction des  malades: sacrement de la tendresse de Dieu – Vicent Guibert –Nouvelle  Revue Théologique  134,  2012, p.215-232 

IV. Cultura da Solidariedade

Uma das características da sociedade atual é o individualismo e a insolidariedade.  Todo mundo se preocupa com seu bem estar e seu futuro.  O lema é “salve-se quem pude.  Não importa o que aconteça desde que  minha família esteja bem.  Assim surge o corporativismo egoísta:  os direitos do grupo ou do setor são reivindicados.  As pessoas se mobilizam  quando seus interesses estão em jogo;  as greves e as reivindicações de outros grupos incomodam. É urgente formar uma nova consciência inspirada na solidariedade  que, segundo  João Paulo II é a “firme e perseverante determinação de lutar pelo bem comum;  isto é, pelo bem de todos e de cada um para que todos sejam responsáveis  por todos” (Sollicitudo Rei Socialis, 38).

Para alcançar essa consciência  inspirada na solidariedade, é necessário despertar  uma responsabilização  coletiva das situações das  vítimas, incentivar uma sensibilização diante das suas necessidades, promover a integração dos marginalizados, estimular o compartilhamento, criticar a competitividade  como um valor absoluto.  As comunidades cristãs devem trabalhar  para criar uma outra cultura, contribuir  para promover  um convívio social  mais justo e mais fraterno. 


Caminhos de Evangelização – José Antonio Pagola – Vozes, p. 134

V. Um pensamento final

A MULHER GRÁVIDA DE DEUS 

Maria, grávida de Deus,  percorrendo os  montes de Judá é a imagem mais potente que o Evangelho nos dá  sobre o sentido e o fim de nossa vida. É  uma metáfora prodigiosa.  Ser grávidos de Deus, grávidos de luz, significa viver na presença.  Não é preciso estar sempre a pensar em Deus, porque já está dentro de mim, como um filho no ventre materno  Sinto que cresce em mim uma espécie de certeza  interior, porque existe dentro de mim  um depósito de ouro.

Frei Almir Guimarães

FELIZ NATAL!