Dezembro 2021
- I. A Boa Nova de uma grande alegria
- II. Advento: vigiar e esperar
- III. Sacramento dos Enfermos - continuação
- IV. Cultura da Solidariedade
- V. Um pensamento final
I. A Boa Nova de uma grande alegria
Nasceu-nos um menino
Deus na terra, Deus no meio dos homens. Não é mais aquele que outorga a lei no meio de relâmpagos, ao som da trombeta na montanha em labaredas, na escuridão de uma tempestade terrificante, mas aquele que se entretém com doçura e bondade num corpo humano com seus irmãos de raça. Deus na carne.
São Basílio Magno
Diante de nossos olhos a cena tantas vezes decantada: uma criança que nasce. Um espaço modesto, a manjedoura, a Mãe, José e o Menino, tudo singeleza e simplicidade. Tudo encantamento. Deus se torna acessível, palpável, próximo, criança. Christian Bobin diz: “A criança é que alimenta a vida”. A sociedade do descartável, do consumismo e da rotina foi perdendo a condição de extasiar-se diante da Criança.
Sim, Natal é Deus que se torna a encanadora figura de uma criança. Para Francisco de Assis dois abismos de amor de nosso Deus são revelados através do Natal e da Cruz. Os biógrafos de Francisco lembram que o santo festejava o Natal com inefável alegria. Chamava de festa das festas o dia em que Deus feito menino se amamentava como todos os filhos dos homens. O santo beijava a imagem do Menino com intensidade. A fragilidade do Menino fazia com experimentasse alegria incontida. A grande notícia do Natal é que Deus continua sendo Mistério. Mas agora sabemos que ele não é um ser tenebroso, inquietante e temível, mas alguém que se nos apresenta próximo, indefeso, afetuoso, a partir da ternura e da transparência de uma criança.
Escolheu tudo o que é pobre. Teodoro de Ancira nos ajudar a refletir: “Veio o Senhor de todos em forma de servo, revestido de pobreza, de modo a não afugentar os que buscava. Em terra incerta, escolhendo um lugar desconhecido para nascer, foi dado à luz por uma virgem pobre, na pobreza total, para que pelo silêncio cativasse os homens que vinha salvar. Pois se tivesse nascido na glória, rodeado de muitas riquezas, diriam sem duvida os infiéis que a transformação da terra fora obra do dinheiro. Se tivesse escolhido Roma, a maior cidade do mundo, atribuiriam ao poder de seus cidadãos a mudança do mundo (Teodoro de Ancira, sec V).
Toda criança que nasce necessita ser acolhida em sua fragilidade. “Para reconquistar os homens, eleva-los a si, para falar com eles Deus veio a este mundo como criança, com o um balbucio que é fácil sufocar. E de fato sufocam. Sufocam-no fazendo do Natal a festa da sociedade de consumo, do esbanjamento, do institucionalizado, festa dos presentes e das decorações luminosas, do décimo terceiro salário, dos champanhes e panetones, festa de certa poesia de bondade generalizada, de um difuso sentimentalismo com verniz de generosidade e emoção. Outros sufocam Deus-menino impedindo-o de crescer: Deus permanece criança por toda a vida; uma frágil estatueta de terracota relegada a uma caixa, que se coloca no presépio uma vez por ano; é preciso um pretexto para dar certa aparência religiosa a esse Natal pagão. As palavras que essa criança trouxe aos homens não são ouvidas; são exigentes e inoportunas, enquanto um cristianismo adocicado é mais cômodo” (Missal Dominical Paulus)
Uma criança envolta em faixas: foi este o sinal dado pelo anjo aos pastores. Profundas as reflexões de Elredo de Rielvaux sobre as faixas que envolviam o menino: “Que sinal receberam os pastores? Encontrareis um recém-nascido envolto em faixas, deitado numa manjedoura. Ele é que é o Salvador. Ele que é o Senhor. Mas que há de especial no fato de estar envolto em faixas e deitado numa manjedoura? Não são tantas as crianças envolvidas em faixas? Então que tipo de sinal é este? Na realidade é um grande sinal se o soubermos compreender E haveremos de compreender se não nos limitarmos a ouvir esta mensagem de amor, mas se tivermos no coração a luz que brilhou com os anjos. Foi assim que um deles apareceu como luz quando anunciou pela primeira vez esta notícia, para sabermos que só os que têm luz espiritual no coração é que ouvem a verdade (…) Belém , “a casa do pão” e a santa Igreja na qual se serve o corpo de Cristo, o pão verdadeiro. A manjedoura de Belém é o altar da Igreja, onde as ovelhas de Cristo se alimentam. Desta mesa está escrito: Diante de mim preparas uma mesa (Sl 22,5). Nesta manjedoura, Jesus está envolvido em panos e esse invólucro dos panos pode ser comparado aos véus do sacramento. Nesta manjedoura, sob as espécies de pão e de vinho está… o verdadeiro corpo e sangue de Cristo. Cremos que ali está o próprio Cristo, mas envolto em panos, isto é, oculto no sacramento. Não temos sinal maior e mais evidente do nascimento de Cristo do que seu corpo e sangue que recebemos todos os dias no santo altar; daquele que nascido da Virgem por nós uma vez, vemos por se imolar diariamente “(Sermo 2, in Natali Domini).
Imagem: Natividade – Botticelli (domínio público)
II. Advento: vigiar e esperar
Vocês não estão ouvindo seus passos silenciosos? Ele está chegando, está chegando, está realmente chegando. A todo momento e em qualquer tempo, a cada dia e a cada noite. Ele está chegando. (Tagore)
No mês de dezembro Advento e Natal nos envolvem. A fé está sempre a nos alertar que Deus, altíssimo e belo, armou sua tenda entre nós. Trata-se de um tempo em que somos convidados a fazer brotar em nós o desejo de Deus, de abismarmos diante de tão grande maravilha: o Altíssimo se torna fragilidade humana, se torna carente de tudo e de todos dependente. Há, pois festa, no coração dos homens simples e retos.. Natal é sempre festa dos que se parecem a crianças. Não se cansam de admirar.
Elredo de Rielvaux, monge, escreve: “Determinou a Igreja com sabedoria que no tempo do advento recitemos palavras dos que antecederam à primeira vinda do Senhor e revivamos seus desejos. Não celebramos seus desejos apenas um só dia, mas por um tempo prolongado, pois o objeto de nossos desejos, quando tarda, parece ao chegar, mais doce ao nosso amor”.
Desejo, anelo, esperança e expectativas perpassam a liturgia e acompanham as batidas de nosso coração . Não podemos viver dezembro como um dos outros meses. A espera aumenta o desejo. José Tolentino Mendonça, em um de seus livros, cita textos que podem nos ajudar a compreender o que é esperar e desejar. Sebastião Salgado, um dos maiores fotógrafos dos últimos tempos, afirmou: “Para fazer uma fotografia é mesmo necessário experimentar o prazer de esperar”. Esperar o Inesperado: “Como todas as pessoas tenho horror às esperas, nos correios, nos consultórios e não suporto as filas burocráticas a que nos obrigam. Contudo não cesso de esperar o inesperado (Edgar Morin).
Desejo, palavra esplendorosa! Vontade de ir adiante, de não parar, de não acorrentar a vida na velhice, no que está gasto e está se esfarrapando. Começar o dia como se fosse a primeira jornada da existência. Vontade de sustar os passos do cansaço e da desmotivação. A vida não descansa. As flores continuam desabrochando. Enfeitam nosso presente. O sabiá continua se banhando no laguinho em frente à minha janela. Entra na água. Vai para o seco. Sacode o corpo e as asas à exaustão. Gosta tanto do banho que mergulha uma segunda vez no laguinho…A vida. Voa manifestando uma indiscutível alegria de viver. As andorinhas andam fazendo ninho no forro da. casa. A religiosa idosa se olha no espelho: cabelos brancos, rugas aqui e ali e, no entanto, um brilho nos olhos, um renovado desejo de amar o Amado que ela contempla com as vistas do coração.
Desejo aguçado e atenta vigilância são características do advento. Não brincar com o tempo que passa. A sentinela caminha de um lado para o outro espiando a entrada da casa e o portão dos fundos. Não pode dormir. Ao ouvir o assobio do vento aguça a atenção, músculos rijos nas pernas e nos braços. Olhar arisco e ouvidos em prontidão. O Inesperado pode chegar e tem desejo de nós. Esperar o Inesperado com “gulodice, ” como disse um autor.
Viver despertos:
♦ Verificar se não estamos perdendo o gosto pelo Evangelho. Será que o distanciamento do Evangelho não se deve a uma falta de interiorização, de silêncio, de busca de nossa verdade? Será que nossa fé em Cristo Jesus deitou raízes ou consiste numa religião mais ou menos fluida? Vigiar.
♦ Natal, encontros familiares, confraternizações com parentes… Não seria oportuno no tempo do advento verificar como andam precisamente nossos laços familiares. Juntos na diferença, reunidos com o coração ou mera justaposição de indivíduos?
♦ Se a família é a Igreja doméstica não se faz necessário criar caminhos para a chegada do Senhor no seio da pequena célula? Caminhos de simplicidade, terra de contrição, horizontes de atenção para com aquilo que é pequeno, inventar caminhos de perdão?
“Meus filhos, quando eu tiver entregue a alma, deitem-me de lado no túmulo, amarrem bem as sandálias aos meus pés, coloquem o bastão em minha mão; quero estar pronto para me levantar quando vier aquele que deve vir” (Lanza del Vasto).
III. Sacramento dos Enfermos - continuação
Um sacramento que configura à paixão de Cristo
A integralidade do sacramento dos enfermos provém da unidade profunda que ele permite através de sua união com a paixão de Cristo. Associando-se livremente à paixão e à morte de Cristo os doentes contribuem para o bem do povo de Deus. O Bom Samaritano é o Verbo feito carne e suspenso na cruz que permite ao homem a possibilidade de atingir sua verdadeira identidade no âmago de seu sofrimento.
Quem recebe a unção dos enfermos acolhe antes de tudo o Cristo que vem em sua paixão se associar a ele em sua doença. O Verbo feito carne tudo assumiu do homem, inclusive a doença, o sofrimento e a morte. Ele é o homem ao qual o doente é chamado a se configurar, ele cujo amor se manifesta sacramentalmente em sua ternura na unção dos enfermos. Se a enfermidade pode ser atenuada ou superada graças à medicina o enfermo recebe uma nova graça de união com o Cristo redentor. Os sofrimentos da doença são transfigurados no Cristo de tal sorte que assim não são apenas do doente mas também do próprio Salvador. A solidão do doente fica impregnada da presença de Cristo. Uma força é injetada em sua fraqueza, brota nele vida que dele toma conta, uma força de Deus, não mais a sua, mas a de Deus.
O sofrimento é um escândalo aos olhos dos homens. O sofrimento físico é injusto, não responde a uma lógica, ataca aleatoriamente, não corresponde nem a faltas a serem expiadas nem a relacionamentos a serem construídos. Não há que inventar-lhe um sentido. E, no entanto, o homem que sofre em sua carne pode descobrir como fazer do sofrimento material de uma redobrada esperança de que todos os homens acolham o perdão e entrem na comunhão que Deus lhes abre. Cristo não procura explicar o sofrimento racionalmente mas une-se aos que sofrem. O sacramento da unção dos enfermos comunica esta experiência vital do Cristo para fazer da doença um meio de cooperar com a obra do amor do Salvador. O homem assim faz o dom de si mesmo.
Evidentemente nada falta ao sacrifício perfeito de Cristo na cruz, mas foi sua vontade nos associar gratuitamente à sua obra de redenção para sua glória e salvação do mundo. “Agora regozijo-me de meus sofrimentos por vós e completo o que falta às tribulações de Cristo em minha carne pelo seu corpo que é a Igreja”, escrevia Paulo (Colossenses 1,14). Esse texto é incontornável para compreender a verdade do sacramento da unção dos enfermos (cf. Lumen Gentium 11). Oferecendo seu sofrimento, o enfermo une-se ao Cristo no dom que ele fez de si mesmo e que se transforma em graça para a Igreja que é seu Corpo.
Transcrevo, palavra por palavra, um escrito do cardeal Lustiger, antigo arcebispo de Paris, dirigido aos ministros deste sacramento ao que recebe o sacramento da unção dos enfermos: “Estais unidos ao Cristo que sofre convosco, que se oferece por vós, vos ama e deseja ajudar-vos. Para alegria vossa ele se faz próximo de vós e vos toma pela mão para que por vossa vez, oferecendo vosso sofrimento, espancando vosso medo, aceitando unir-se à sua Paixão, estareis trabalhando para a salvação de todos, os que amais e os que vós não conheceis” […]. Recordai-vos que sois úteis a todos os vossos irmãos, necessários à missão da Igreja. Aos olhos dos homens estais quase à margem; na Igreja e para o Cristo estais no centro, no coração do mistério divino”. Os doentes oferecem vida com Cristo para todos os outros. Os doentes são reservas secretas da Igreja porque sua comunhão com a paixão de Cristo coloca-os no coração do mistério da Igreja. No mistério da comunhão dos santos trata-se de uma autêntica graça de co-redenção Um autor afirma: “Seus sofrimentos identificados com o de Cristo têm valor para a salvação dos que, numa tribulação maior ainda, têm necessidade de um acréscimo de amor para serem salvos” Assim fazendo entram num mistério de compaixão semelhante ao da Virgem Maria em pé diante da cruz.
De maneira misteriosa o sacramento da unção permite que o doente perceba o que a Paixão tem de bem-aventurança e já acolher a alegria. O doente via encontrar o Cristo no Jardim das Oliveiras, lugar de aceitação da vontade do Pai, mas também lugar de subida para o Pai. Esse duplo mistério do Monte das Oliveiras atua no óleo sacramental da Igreja. Assim a carne pode experimentar desde aqui embaixo a alegria da salvação. Na própria carne, a complexidade humana encontra antecipadamente o penhor de sua unidade e mesmo de sua ressurreição.
FIM
Fonte inspiradora: L’onction des malades: sacrement de la tendresse de Dieu – Vicent Guibert –Nouvelle Revue Théologique 134, 2012, p.215-232
IV. Cultura da Solidariedade
Uma das características da sociedade atual é o individualismo e a insolidariedade. Todo mundo se preocupa com seu bem estar e seu futuro. O lema é “salve-se quem pude. Não importa o que aconteça desde que minha família esteja bem. Assim surge o corporativismo egoísta: os direitos do grupo ou do setor são reivindicados. As pessoas se mobilizam quando seus interesses estão em jogo; as greves e as reivindicações de outros grupos incomodam. É urgente formar uma nova consciência inspirada na solidariedade que, segundo João Paulo II é a “firme e perseverante determinação de lutar pelo bem comum; isto é, pelo bem de todos e de cada um para que todos sejam responsáveis por todos” (Sollicitudo Rei Socialis, 38).
Para alcançar essa consciência inspirada na solidariedade, é necessário despertar uma responsabilização coletiva das situações das vítimas, incentivar uma sensibilização diante das suas necessidades, promover a integração dos marginalizados, estimular o compartilhamento, criticar a competitividade como um valor absoluto. As comunidades cristãs devem trabalhar para criar uma outra cultura, contribuir para promover um convívio social mais justo e mais fraterno.
Caminhos de Evangelização – José Antonio Pagola – Vozes, p. 134
V. Um pensamento final
A MULHER GRÁVIDA DE DEUS
Maria, grávida de Deus, percorrendo os montes de Judá é a imagem mais potente que o Evangelho nos dá sobre o sentido e o fim de nossa vida. É uma metáfora prodigiosa. Ser grávidos de Deus, grávidos de luz, significa viver na presença. Não é preciso estar sempre a pensar em Deus, porque já está dentro de mim, como um filho no ventre materno Sinto que cresce em mim uma espécie de certeza interior, porque existe dentro de mim um depósito de ouro.
Frei Almir Guimarães
FELIZ NATAL!