Dezembro 2011
I. LEITURA ESPIRITUAL
Natal: Quando o Altíssimo abre mão da Sua Onipotência
A humildade é a veste de Deus Isaac, o Sírio (VII século)
O encontro com Deus só se produz na humildade. É preciso que me entendas bem: trata-se da humildade de Deus, antes de tudo, porque como dizia São Francisco de Assis, Deus é humildade e ele sempre se abaixa quando quer falar conosco” (Enzo Bianchi)
1. Natal é festa do coração franciscano. Desde a nossa mais tenra idade estamos acostumados a ouvir falar de Greccio, do presépio, da ternura que Francisco tinha pelo menino das palhas, do carinho que devotava à Paupércula Maria que oferecia o leite generoso de seu peito para alimentar Deus carente e pobre. Francisco “recordava-se em assídua meditação das palavras e com penetrante consideração rememorava as obras do Senhor. Principalmente a humildade da encarnação e a caridade da paixão, de tal modo ocupavam sua memória, que mal queria pensar em outra coisa. Deve-se, por isso, recordar e cultivar em reverente memória o que ele fez no dia do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, no terceiro ano antes do dia de sua gloriosa morte, na aldeia que se chama Greccio” (1Cel 84). Ele queria ver com os próprios olhos, plasticamente, aquilo que havia se passado na noite do Oriente, na cidade de Belém, quando Deus resolveu ser o Deus-conosco. Quantas e quantas vezes participamos de encenações e celebrações que retomaram as palavras e os gestos de Francisco.
2. Aprendemos a ver o Poverello, perto do “berço” do Menino, tomando dois galhos e inventando um violino. Um dançarino que vive a festa da visita de um Deus que não esmaga, nem tira o fôlego, mas que estende a mão para ser socorrido, que precisa do leite generoso do seio de sua Mãe, que solicita ser cuidado como todas as frágeis crianças que vêm ao mundo. Para nós, não existe Natal sem as cores franciscanas de Greccio.
3. Mais uma vez vivemos essa atmosfera de dezembro. As pessoas correm de um lado para o outro, meio perdidas, meio aturdidas. Pressa, compras, consumo, certa alegria, ornamentações extremamente artísticas nos suntuosos centros comerciais das grandes cidades. Os comerciantes não sabem o que fazer para atrair a clientela e para terem resultados financeiros superiores aos do ano passado. Perfumes, sofisticados celulares, chocolates, roupas, sapatos, bolsas: tudo enfeitado em guirlandas, envolvidos em papeis coloridos, luzes cintilantes. Pelos corredores, música envolvente. Papai Noel sentado num trenó espera crianças que se assentem a seu lado para serem fotografadas. Estas ficam extasiadas esperando a noite dos presentes. O amado ou amante compra para a amada ou amante um colar de diamantes, presente de Natal. Nas casas cintilam as lâmpadas (made in China), na árvore da sala, nas plantas do jardim e nos arcos das varandas. Há luz e alegria. Mas pode ser que nessas catedrais do consumo e mesmo em muitas casas se tenha esquecido da figura central e mais importante: o menino das palhas. Sim, há aqui ou ali um presépio. Mas basta isso? Pode ser que tenhamos tirado de caixas de papelão que estavam no sótão ou no porão as figuras do presépio: os personagens centrais, os pastores, os animais, os anjos, o casario e a fonte que jorra água de verdade. Tudo isso faz parte da decoração exterior, dum certo folclore. Pode mesmo ter acontecido que alguns tenham seguido os textos desses livrinhos de novenas de Natal, livrinhos cheios de palavras piedosas ou libertárias que repetem o que já sabemos. O importante seria se viéssemos a nos reencantar com o fato: Deus se torna fragilidade.
4. A onipotência de Deus se manifesta em sua fragilidade. Lá no final de sua trajetória tudo fica claro: um jovem adulto sem apoios externos, um ser na plenitude de suas forças sendo ridicularizado, despojado de tudo, vilipendiado, amarrado, desrespeitado, insultado, abandonado. Remexendo-se de dor no alto da cruz, torturado pela sede, tentado pelo desânimo, sorvendo gole após gole o cálice da amargura: um ser frágil que ali atinge o ápice da fragilidade. Fragilidade que acompanhou seus dias: sem casa, sem propriedades, sem mesmo pedra para reclinar a cabeça, buscando sempre abrigo no interior do coração de pessoas que iam se fechando a ele, não lhe restando outra coisa senão tomar o bastão e buscar abrigo em outros corações. Tudo havia começado lá naquela noite antiga do Oriente, na singeleza do começo da aventura de Deus na terra dos homens, na noite despojada da gruta de Belém.
Sim, perto de nós e à nossa volta está a fragilidade de Deus.
5. Uma frágil criança, sem vontade própria, que não fala… Assim Deus vem à humanidade. Não como um conquistador ou um dominador, mas através de um presente que nos é feito. A pobreza desse nascimento tem tudo a ver com sua Paixão dolorida. Um Deus que se desapropria. Como que a dizer que o amor que salva é sempre desapropriação. Natal é a revelação de um Deus de humildade, que não vem obrigar o homem reconhecê-lo pelo medo. Quando chega a plenitude dos tempos e chega o momento das revelações, ficamos todos pasmos de ver a fragilidade de Deus. “Deus criança! Talvez estranhássemos menos se Deus tivesse ganhado corpo num adulto com belo porte, um militar graduado ou chefe de Estado. A criança, contrariamente, é a figura da humanidade dependente que precisa ser alimentada, vestida, assistida em todos os momentos. A criança tem os olhos voltados para aqueles que têm a força, o ter e o poder. A criança necessita aprender. Aquele que é o Verbo necessita aprender a falar, esse Verbo que vai de um extremo ao outro da terra. Terá que aprender a andar. Deus perde sua onipotência. Ele se desarma totalmente e se submete à escolha de nossa liberdade. Deixará a todos os homens o poder sobre o mundo. Um Deus que se torna criança.
6. Deus é o criador. Tira do nada as estrelas e o ser humano do pó da terra. Agora, depois do pecado do homem, vai começar um mundo novo em que Deus se torna uma criança despojada, um Deus desapropriado. Começa agora um mundo novo que esse Menino chamará de Reino. Um reino que começa na fragilidade do rosto de uma dependente criança e que será inaugurado com a entrega irrestrita de um condenado à morte sem defesa. Um começo novo, distante do poder. “A liturgia do advento é um caleidoscópio de imagens de nascimento e de novidade: é um jardim que surge no meio do deserto, é a libertação dos que estavam na prisão, é a expectativa realizada. Quem reconhecerá isso nos traços de um recém-nascido? Alguns pastores humildes em sua condição social; magos, humildes buscadores de verdade. Esses nos abrem os caminhos. Ela continua sempre aberta” (Christophe Chaland). Um Deus que abre mão de sua onipotência e é buscado pelos pequenos da face da terra.
7. “Enquanto um profundo silêncio envolvia o universo e a noite ia no meio do seu curso, desceu do céu, ó Deus, de seu trono real, a vossa Palavra onipotente (Antífona de entrada da Missa de 30 de janeiro, inspirada em Sabedoria 18,14-15). No belo tempo do Natal, essas palavras soam forte aos nossos ouvidos. O Deus que se torna frágil aparece no quadro do silêncio e não do espalhafato e das proclamações ruidosas. Trata-se de um nascimento comum. Talvez para deixar de pensar no chocante que é esse nascimento de Deus numa criança fomos aos poucos sobrecarregando o Natal com elementos perfeitamente acessórios: Papai-Noel, os presentes, a ceia. Tudo só tem sentido quando colocado em relação às núpcias de Deus com a humanidade: “Teu autor te desposará!” Com Cristo e no Cristo somos uma só carne”. Não é por isso que, no final do tempo do Natal, costuma-se ler o evangelho das Bodas de Caná? Por ocasião do nascimento de Jesus, os evangelistas não mencionam nenhuma palavra de Maria ou de José. Eva, no Gênesis, é mulher prolixa. Maria, quieta, guarda todas as coisas no fundo do coração. A razão é que esta criança disse tudo, ele é toda Palavra divina e humana (Pensamentos de Marcel Domergue, SJ, in Croire Aujourd’hui, n. 251).
8. Tempos novos, tempos de simplicidade. Tempos de facilitar a encarnação de Deus no humano. Hoje, mais do que nunca, precisamos mostrar um Deus humilde que chega perto de nós. Ele está nos campos de concentração de ontem e de hoje, está nessas chacinas que ceifam a vida de seres queridos. No coração de tudo está não o Deus tonitruante, mas o Deus frágil, tão frágil como o menino das palhas, tão frágil como o torturado do Gólgota. Natal, tempo de serena e profunda alegria. Um menino nasceu para nós. Um Deus que vem bater as batidas de seu coração ao ritmo da batida de nosso peito. Um Deus que abdica de sua onipotência para estar perto da humanidade.
9. Por vezes, temos a impressão que muitos se mostram indiferentes à fé cristã e à Igreja. Há sensível e preocupante diminuição dos fiéis cristãos. Nossas assembleias dominicais contam com poucos participantes e a grande maioria, em muitos lugares, constituída de pessoas idosas. Nem sempre a Igreja consegue ser expressibilidade da força do Evangelho. A festa do Natal, esse momento em que vemos um Deus que abdica do poder e abre mão da onipotência nascendo criança e fragilidade não seria um momento em que nós, discípulos de Cristo e membros da Igreja, venhamos a agir cristã e pastoralmente simplesmente a partir da pobreza do Deus das palhas?
10. Nada de tristeza, nada de espírito sombrio. Na pobreza do Natal, a alegria explode. Para Francisco, não existe sexta-feira nem abstinência quando o Natal cai em sexta-feira: “Beijava em famélica meditação as imagens daqueles membros infantis, e a compaixão pelo Menino, derretida em seu coração, fazia-o mesmo balbuciar palavra de doçura à moda de crianças. E este nome era para ele como o mel e o favo na boca. Uma vez que conversava sobre a questão de não comer carnes, porque era dia de sexta-feira, ele respondeu a Frei Mórico, dizendo: Irmão, pecas ao chamar de sexta-feira o dia em que o Menino nos foi dado. Quero que até as paredes comam neste dia e, se não podem, pelo menos sejam esfregadas com carne por fora”. Que todos saibam que Deus se tornou fragilidade e abdicou de sua onipotência para poder viver perto de nós nossa aventura humana! É festa para sempre na terra dos homens!
Frei Almir Ribeiro Guimarães
II. PÁGINAS FRANCISCANAS
Francisco, Greccio e alegria
Uma página que é dupla. Neste mês de dezembro pensamos no Natal de Francisco em Greccio. Neste mês de alegrias serenas pensamos no jeito de Francisco viver a alegria.
a) Natal de Greccio
Por ocasião de visita a Roma, Francisco obteve do Papa a licença para celebrar o Natal de uma maneira toda particular e conforme suas ideias pessoais. Escolheu Greccio porque o proprietário do lugar, Giovanni di Velita, “que dava menos importância à nobreza do sangue do que a da alma” havia lhe dado uma montanha coberta de bosque que dominava os rochedos do vilarejo e o vale de Rieti até os montes azulados, que se estendiam diante de seu horizonte.
Na encosta da muralha de pedra, Francisco havia construído um pequeno eremitério aproveitando, como de costume, grutas ou reentrâncias que a natureza oferecia. A gruta foi transformada em capela. A pedido de Francisco colocou-se ali uma manjedoura generosamente guarnecida de palhas. Havia também um boi e um burro, conforme mandava a tradição.
No coração da noite, foram acesas tochas e a população dos arredores chegava de todos os lados, por entre as árvores, carregando archotes, de tal maneira que as trilhas da montanha palpitavam como riozinhos de luz. Um sacerdote veio para dizer a missa sobre a manjedoura, transformada em presépio. Revestido de dalmática, Francisco leu o Evangelho da Natividade. A multidão maravilhada pela redescoberta do grande mistério acompanhava com atenção os mínimos detalhes da cerimônia e muitos diziam terem visto Francisco tendo no braços o Menino banhado de raios luminosíssimos. A fé da Idade Média, muito mais próxima da infância do que a nossa, traduzia instintivamente, através de visões, as verdades a serem cridas e que assim melhor falavam ao seu coração.
Aquela noite foi de uma extraordinária doçura que nunca foi esquecida. Pelos bosques os frades cantavam e as luzes brilhavam docemente em quase todos os lugares querendo se juntar a essa explosão de alegria inesperada, respondendo, de alguma forma, à claridade obscura do céu. Era já a nossa missa do galo, da meia noite, a primeira cheia dessa poesia que somente Francisco de Assis podia ter inventado. Naquele ano, as lutas incertas terminaram para Francisco no êxtase de alegria.
“Frère François”, Julien Green, Ed. du Seuil, 1991, 304-305
b) A alegria
O prazer do mundo se manifesta ainda mais claramente no comportamento alegre. Nisso, ainda, há aproximação entre religiosos e leigos, enquanto que o modelo monástico fazia do monge um especialista em lágrimas ( is qui luget = ele que chora). Ao contrário, abundam textos que mostram Francisco hilaris, hilari vultu ( alegre, com o rosto alegre).
Em sua narrativa sobre os primeiros Menores na Inglaterra, Thomas d’Eccleston multiplica o testemunho sobre a alacridade dos frades que às vezes parece até forçada ou excessiva.
Quando os frades se instalam na cidade inglesa de Cantuária, numa casa em que à noite, de regresso, acendiam o fogo, sentavam-se em torno dele, cozinhavam uma beberagem (potus) numa panela e a bebiam em círculo. Às vezes, a bebida era tão grossa que nela precisavam jogar água e depois a bebiam alegremente ( et sic cum gaudio biberent). Da mesma forma, em Sarum, os frades bebiam diante do fogo na cozinha uma imunda borra (faeces) com tanto prazer e alegria (cum tanta iucunditate et laetitia) que se divertiam em roubar uns dos outros a bebida amigavelmente.
Em Oxford, os jovens frades adquirem de tal modo o hábito de serem entre si iucundi et laeti (jucundos e alegres) que, olhando-se mutuamente, têm dificuldade para conter o riso ( ut vix in aspecto mutuo se temperarent a risu). Essas crises de riso bobo acabam por provocar chibatadas, que entretanto não dão resultado. Só um milagre para acabar com epidemia do riso.
Quanto a Peter Tewksbury, disse ele a um frade: “Três coisas são necessárias para a salvação temporal, o alimento, o sono e o jogo. Assim, receitou a um frade melancólico que bebesse um cálice cheio de ótimo vinho como penitência, e como ele o bebesse, ainda que o tivesse feito contrariadíssimo, disse-lhe: Irmão caríssimo, se fizeres frequentemente uma tal penitência, terás sempre melhor consciência”.
A palavra de ordem de Francisco é paupertas cum laetitia (Adm XXVII, 3): pobreza com alegria.
De fato, a fonte dessa alegria é também de ordem divina. É uma existência transcendente, um sinal da graça, efeito do Espírito Santo, nasce da descoberta do Evangelho e da pobreza. O demônio nada pode contra ela (2Cel 88).
Afinal, ela se combina com o ascetismo e a experiência da dor, para se consumir no amor. Boaventura o diz em De triplici via (“Sobre o caminho tríplice”) : “Começa esse caminho com um aguilhão da consciência e se acaba como um sentimento de alegria espiritual, e exercita na dor, mas se consuma no amor”.
“São Francisco de Assis”, Jacques Le Goff, Ed. Record, 2001, p. 228-230
III. ORAÇÕES
Cantilena do Natal
Senhor,
há qualquer coisa diferente no ar.
É noite , é noite santa do Natal!
Maria, Maria da Esperança,
coloca o corpo frágil do teu Filho Jesus
nas palhas do presépio.
José, José justo e bom,
contempla a cena e eleva o coração
até as alturas dos céus.
Nasceu teu Verbo na terra dos homens.
Tu mesmo vieste morar entre nós
para chorar nossas lágrimas
e cantar nossos cantares.
Ganhaste carne humana no corpo transparente
de Maria da Esperança.
Bendita esta hora de teu nascimento
na terra dos homens!
Nas prisões e nos hospitais,
nos exílios e nas masmorras,
todos precisam ficar sabendo
que hoje é dia de Natal.
Tu vieste de mansinho
no tempo que foi passando
e, quando chegou a plenitude dos tempos,
nasceste numa noite do Oriente.
Nas esquinas do bairro,
nos portões das casas,
nas janelas dos apartamentos,
nas praças públicas,
todos deveriam hoje gritar
uns para com os outros:
é festa do Natal de Deus
na terra dos homens.
Vê a procissão dos famintos de Deus,
dos peregrinos da esperança,
dos pequenos de todos os cantos
e de todas as terras
que se dirigem ao teu presépio
para agradecer tua chegada.
Não vens para passar uns tempos entre nós.
Tu vens para ficar!
Que possas te sentir bem
na casa dos homens.
Que os espaços explodam num cântico novo:
nasceu hoje, da Virgem Maria,
Jesus, Verbo Eterno!
DIANTE DE UMA VITRINE
Senhor Jesus, todos esses brinquedos e toda essas luzes
estão aí porque tu vieste e tudo se transformou em alegria.
A festa de teu nascimento é a grande festa da alegria.
Gostaria de alguma coisa a mais.
Desejo que os isolados e tristes
recebam uma gota de alegria.
Quero ser hoje, para alguém,
seu anjo do Natal.
Poder anunciar-lhe a Boa Nova,
encontrar sentimentos, atenções e palavras
que possam fazer com ele compreenda que não está só.
Chegar mesmo a dizer:
“Eu te juro, te juro de verdade. Alguém te ama.
Deus te ama. Permite que ele te ame”.
André Sève, “Prier” n. 227, p. 20
OBRIGADO PELA VIDA
E, se eu resolvesse, por uma vez que fosse, dizer obrigado!
Obrigado por tudo o que vivo
e que considero como se me fosse devido, como um direito!
Se foi necessário colocar por escrito os Direitos do Homem,
os direitos de todas as criaturas humanas,
isso se deveu ao fato de que alguns se apossarem deles
em detrimento dos outros.
Foi necessário lembrar que são direitos de todos.
A vida é antes de tudo um dom
e de ti misteriosamente procede, Senhor.
Obrigado pela luz que dá vida à tua criação
e que a cada manhã renova a surpresa da vida.
Não permitas que venhamos a fazer sombra a nossos irmãos.
Grato pelo ar que respiramos
e que nos mantém na vida.
Não permitas que nossas poluições semeiem a morte.
Obrigado pela água que bebemos,
ela que desaltera nossas sedes mais ardentes.
Que não venhamos a permitir que morram de sede nossos irmãos.
Obrigado pela terra mãe, como dizia Frei Francisco.
Que ela não venha a se esgotar
impedindo a vida de futuras gerações.
Obrigado por todos esses dons,
que generosamente renovas
de geração em geração.
Que nossas mãos levantadas
cantem nossa ação de graças.
Michel Wagner, Arbre, n. 268.
IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI?
Essa gente jogada na rua
Há vidas e vidas. Gosto de observar as pessoas no metrô, na fila dos bancos, no hall de uma sala de espetáculos e na rua…
Aquele homem perambulava por ruas sujas e imundas, com paredes rabiscadas e fétido odor… Ele era jovem, bonito, cabelos negros, sujo, descalço, descuidado, com calças dobradas até o meio da canela. Tinha, no entanto, no jeito de caminhar e no brilho de seus olhos lampejos de nobreza. Andava a esmo, carregando uma vasilha de plástico e arrastando um cobertor…
Lavava o rosto numa bica que havia ali, perto do viaduto… e à noite se enrolava naquela coberta que carregava de um lado para o outro e dormia… nem mesmo sei se conseguia dormir… ali mesmo num canto… meio escondido, antes de deitar, urinava… sujo… sem nada, sem ontem, sem antes de ontem e sem amanhã… antes de dormir rezava uma ave-maria e fazia o nome do Pai… Andou se metendo no mundo das drogas, estragou a vida e os seus o deixaram. Ninguém sabe nada a respeito desse homem bonito e transformado num caco humano e num resto de gente.
Alguém, no entanto, tem que saber alguma coisa a respeito desse homem. Um dia um homem e uma mulher se uniram carnalmente e esse homem foi gerado… com casamento… sem casamento… não sei. Não aconteceu assim do nada. Mas teve um pai e uma mãe.
Quem sabe, talvez, ele teve um berço, sapatinhos de lã, chocalho, brinquedos do Papai Noel, tio, avós, primos, padrinho, madrinha, bilu-bilu… Deve ter mamado de peito ou de mamadeira. Deve ter sido beijado e a muitos beijado. Teve um quarto com colchão, travesseiro, edredom, mosqueteiro, livros, terço, escrivaninha para estudar com lâmpada de mesa. Sim, livros, atlas, gramática portuguesa, livros de inglês. Quando voltava à casa depois das aulas tomava uma xícara de chocolate quente nos dias de inverno.
Será que não? Será que o que escrevo é pura fantasia? Será que esse homem nunca usou faca e garfo?
Que será desse resto humano de um pouco mais de 30 anos. Quem se interessará por ele? Será que basta alguém passar e deixar uma sacola com biscoitos, leite e frutas? Será que basta que ele receba roupas que as pessoas não querem mais? Como fazer de sorte que este homem possa dormir numa cama decente, abrir a janela para o dia que chega, tomar banho, pentear o cabelo, encontrar um amor, descobrir que Jesus , belo e magnifico, deu a vida por ele numa tarde de amor?
Que tristes histórias perambulam pelas ruas….
V. PASTORAL
Atitudes pastorais a serem encorajadas
em nossos tempos (II)
Concluímos as reflexões começadas no mês passado em torno do tema de prioridades pastorais. Este texto se inspira no documento “La Passione del Vangelo”, do bispo francês Claude Dages, publicado em italiano na Revista Il Regno (8/2010).
O tema é vasto e complexo. Estamos todos em busca de caminhos novos para a pastoral e a evangelização. Há acertos e desacertos.
7. Manifestar a visibilidade sacramental da Igreja. A Igreja tem seu mistério invisível aos olhos, ou seja, ela é criatura de Deus, criação do Senhor. Mas esta comunidade de santos e dos discípulos de Jesus se manifesta no meio do mundo. Assim com Jesus era o sacramento, sinal do Pai, a Igreja é sinal de Cristo e do Reino em construção. Falamos de uma visibilidade da Igreja presente na vida das pessoas, no coração da história e, hoje, de modo especial, nos mass media. Pensamos também na manifestação sacramental da Igreja (nos sacramentos). São duas maneiras de falar de sua “visibilidade”. Normal que a Igreja se faça presente nos meios de comunicação social e na vida de todos os dias. Ela pode ter seus canais televisivos e radiofônicos próprios e não ficar na dependência da boa vontade dos senhores dos meios de comunicação. Pode ser servir de canais de outras pessoas. A Igreja não pode ter medo de enfrentar as verdadeiras questões do homem e do mundo e de dizer em praça pública aquilo que arde em seu coração. Pedro, o apóstolo, dizia que precisamos dar as razões de nossa fé. A Igreja haverá de participar de discussões e de debates públicos quando convidada ou fazendo-se convidar. Esta manifestação da “diferença” será ocasião de aprofundar as questões e fazer com que as pessoas conheçam aquilo que a Igreja vive. Até que ponto a Igreja se manifesta, chama atenção, provoca a reflexão? Que expressão tem a comunidade eclesial no mundo de hoje?
8. Através dos sacramentos, de modo especial a Eucaristia, a Igreja visibiliza a graça de que é portadora. Não se trata apenas de sacramentalizar, ou seja, de colocar “materialmente” os sinais visíveis dos sacramentos. Necessário será que esses sejam expressivos, toquem o coração das pessoas, sejam portadores de significação. Ora, para que os sacramentos não sejam apenas vistos como “reminiscências” de um tempo de cristandade e possam tornar visível, de alguma forma, o mistério da Igreja, será preciso que os batizados tenham a vontade de morrer para si e nascer da água do peito de Cristo, que aqueles que se alimentam da Eucaristia sejam famintos de Deus e desejosos de criar uma terra onde não haja mais fome, que aqueles que recebem o sacramento do matrimônio saibam que são sinais do amor de Cristo por sua Igreja. Não há dúvida: é urgente trabalhar por uma visibilidade forte da Igreja.
9. Formar comunidades fraternas e apostólicas – A sacramentalidade da Igreja, chamada a ser “em Cristo como sacramento, como sinal e instrumento da íntima união com Deus e da sua unidade com todo o gênero humano”, passa evidentemente através de comunidades particulares. Na concreteza de comunidades vivas se pode “ver” a Igreja. Comunidades eclesiais bem encarnadas e vivas “gritam” o Reino e tornam palpável o mundo novo de Jesus. A esse respeito, a experiência das novas comunidades é significativa: estas conferem uma sempre maior importância à prática da caridade entre as diferentes pessoas que participam do mesmo Corpo de Cristo. A palavra de Deus que se ouve, a oração que se pratica, os sacramentos recebidos, os atos de solidariedade colocados por todos, são expressões bem concretas da caridade de Cristo. Importante que os cristãos façam essa experiência de fraternidade. Esta, porém, não se limita ao pequeno grupo, à comunidade particular. Diz respeito ao conjunto da Igreja, com a diversidade dos grupos, dos movimentos e dos serviços que a constituem. Mesmo se em nossa sociedade prevaleça a lógica da fragmentação, é vital que os membros da Igreja envidem todos os esforços para serem pessoas que se respeitem, que dialoguem, que provem mútua estima e vivam o mútuo perdão.
10. A Igreja é também chamada a viver a caridade de Cristo na realidade complexa da sociedade. Criará serviços gratuitos de solidariedade e de presença na vida do mundo, fora de seus “muros”. Estará presente nos lugares de fratura da humanidade, em nome de Cristo que por meio da cruz matou a inimizade (Ef 2,16). Missão de reconciliação e de união. Uma Igreja madura se faz presente nas estruturas onde se decide o amanhã das pessoas e dos povos.
11. Os tempos que vivemos, no início do século XXI, se caracterizam por insegurança e incertezas. Somos chamados a viver aí a esperança cristã. Estaremos abertos ao invisível de Deus. Tal esperança está vinculada a uma compreensão da história como um parto. “Sabemos que toda a criação até agora geme e sente dores de parto. E não somente ela, mas também nós que possuímos os primeiros frutos do Espírito gememos dentro de nós mesmos, aguardando a adoção, a redenção de nosso corpo. Pela esperança é que estamos salvos. Mas a esperança que se vê já não é esperança. Como pode alguém esperar o que já vê? Se esperamos o que não vemos, é com esperança que esperamos” (Rm 8, 22-26.
12. Assim, a prática cristã da esperança comporta sempre uma tensão entre os sofrimentos e as provações do tempo presente e a glória que um dia há de se manifestar em nós. Uma tal tensão mora no centro da existência cristã, como afirma com força o apóstolo Paulo: “Por isso é que não desfalecemos. Ainda que o ser humano exterior se decomponha em nós, o ser humano interior se renova a cada dia. A presente aflição, momentânea e leve, nos dá um peso eterno de glória incalculável. Por isso, não olhamos para as coisas visíveis, mas para as invisíveis. As coisas visíveis são temporais, as invisíveis, eternas” (2Cor 4, 16-18).
13. A medida cristã do tempo, não é a de um tempo breve. Estamos diante do propósito inimaginável de Deus que, em Cristo, vem morar em nosso meio, em nossa história para abrir-nos ao que vai além de nós. Mesmo que os tempos atuais não sejam mais portadores daquelas promessas que anunciavam as ideologias do progresso, eles estão sob o signo do Deus da promessa, desse que faz continuamente nova todas as coisas. Esta esperança funda uma teologia da história, uma teologia realista que não desconhece a contínua mistura entre o bem e o mal, bondade e violência, amor e ódio, também uma teologia aberta às realidades últimas, escatológicas, tudo o que atesta a vitória do Cristo ressuscitado sobre as potências do mal. Uma tal teologia da história pode ser de grande auxílio para motivos esforços duráveis em nossa sociedade mutável e imprevisível.