Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Caderno de Formação – Março 2021

O grão de trigo se dissolve na terra

Estamos vivendo o tempo da Quaresma e em breve haveremos de percorrer os caminhos da semana santa. Estaremos novamente diante da cruz dolorosa e gloriosa do Senhor Jesus. Os cristãos e os verdadeiros místicos sempre se demoraram diante da cruz do Senhor. Para eles, não se trata apenas de manifestações sentimentais emotivas. A contemplação da Cruz produz impacto sobre nós e atinge o mais profundo de nós mesmos. Na cena do Calvário, dor e amor se misturam. Os verdadeiros místicos não são “doloristas”, quer dizer, pessoas que se comprazem em “ruminar” sofrimento e dores. Os que se detêm diante da Cruz e do peito aberto de Jesus não podem deixar de amar o Amado e de torná-lo muito amado durante o tempo de sua vida.

Duas coisas eu te peço, Senhor

Vejam esta prece atribuída a Francisco de Assis: “Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é que eu sinta no corpo e na alma, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora de tua acerbíssima paixão; a segunda é que eu sinta em meu coração, também quanto for possível, aquele excessivo amor do qual, tu, filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar tua paixão, por nós pecadores.
Fioretti

Onde se escondeu Adão?

“Adão, onde estás?”, grita Cristo no alto da cruz. Vim à tua procura e para poder te encontrar, estirei os braços na cruz. Com as mãos estendidas, dirigi-me ao Pai para render graças por te ter encontrado, depois faço minhas mãos se voltarem para ti para te abraçar. Não vim para julgar o teu pecado, mas para te salvar por meu amor pelos homens; não vim te maldizer por tua desobediência, mas para te bendizer por minha obediência. Haverei de te cobrir com minhas asas, tu haverás de encontrar um refúgio à minha sombra. Minha fidelidade te cobrirá com o escudo da cruz e não temerás o terror das noites, porque conhecerás o dia sem declínio. Procurarei tua vida escondida nas trevas e na sombra da morte, não conhecerei descanso até que, humilhado e tendo descido à mansão dos mortos para te buscar, tenha te levado para o céu.
São Germano de Constantinopla

O filho do carpinteiro

O admirável filho do carpinteiro, que levou a cruz até os abismos da morte que estavam prontos para tudo devorar, também levou o gênero humano para a morada da vida. E uma vez que o gênero humano, por causa de uma árvore tinha se precipitado no reino das sombras, sobre outra árvore passou para o reino da vida.

Na mesma árvore em que tinha sido enxertado um fruto amargo, foi depois enxertado um fruto doce, para que reconheçamos o Senhor a quem criatura humana pode resistir.

Glória a vós que lançaste a cruz como ponte sobre a morte, para que através dela as almas possam passar da região da morte para a vida!
Glória a vós que assumistes um corpo mortal, para transformá-lo em corpo de vida para todos os mortais.

Vós viveis para sempre! Aqueles que vos mataram, trataram vossa vida como os agricultores: enterraram-na como o grão de trigo; mas ela ressuscitou e, junto com ela, fez ressurgir uma multidão de seres humanos.
Santo Efrém, diácono, século IV

“Quero ver o lado traspassado do Senhor”

O místico busca abrigo no Coração do Redentor: “Minha alma tem sede de Deus. Quero ver aquele que sorveu o cálice mais amargo do mundo. Como, efetivamente, deve este cálice ter sido amargo para aquele que era tão puro e tão sensível! Quero beijar estes pés ensanguentados que não pararam de andar sempre à minha busca em becos sem saída e nos abismos mais profundos para onde meus pecados me levaram. Quero ver o lado traspassado daquele que, abrindo seu coração, fez ali um lugar para mim”.
Karl Rahner

A inscrição na cruz do Senhor

O letreiro da cruz de Jesus trazia, de acordo com o costume, a identificação do condenado, “Jesus de Nazaré”, e o motivo de sua condenação: “Rei dos Judeus”. O evangelho de João é o único a reproduzi-lo integralmente atribuindo sua redação a Pilatos, ou seja, o juiz que havia pronunciado a sentença. Muitos haviam visto esta peça documental, cujo texto os evangelistas não podem ter reinventado. É uma observação bem documentada dos especialistas das inscrições: para obras escritas num prazo inferior a três gerações após o acontecimento, é difícil crer que os textos públicos verificáveis por possíveis testemunhas oculares possam ser forjados.

“Rei dos judeus” era um título outorgado por Roma a Herodes, último soberano de um Estado judeu independente, no ano 40 antes de nossa era. O letreiro parece classificar Jesus entre os pretendentes à realeza que se sublevaram contra o ocupante romano após a morte de Herodes no ano 4 de nossa era, ou que assumiram o comando de uma revolta antifiscal como Judas, o Galileu, e depois seus filhos. Tudo mostra, portanto, que ele foi condenado pelo poder romano; se tivesse sido condenado pelas autoridades do templo, por blasfêmia, ou profanação, só poderia ser condenado caso fosse preso em flagrante delito e teria sido executado sumariamente por apedrejamento.

Marie-Françoise Baslez, “Jesus – Dicionário Histórico dos Evangelhos”, Vozes p. 141-142

Um padre que seja verdadeiro padre

Na quinta-feira santa que ocorrerá a 1º de abril é dia da instituição do sacerdócio ministerial católico. Eis uma reflexão “exigente” feita sobre os padres por Madeleine Delbrêl, leiga católica, na década de 50 do século passado, líder da promoção do leigo

A ausência de um verdadeiro padre, numa vida é causa de enorme sofrimento. Um grande presente que possamos nos dar é conviver com um padre que seja verdadeiro padre. Trata-se da maior proximidade que se possa ter aqui na terra com a presença visível de Cristo.

Em Cristo há uma vida humana e uma vida divina. Almejamos encontrar no padre uma vida verdadeiramente humana e verdadeiramente divina. Triste ver que um bom número apareça como que privados de uma ou de outra.

Há padres que dão a impressão de nunca terem tido uma vida de homem. Não sabem avaliar as dificuldade de um leigo, de um pai, de uma mãe de família. Não se dão conta do que seja verdadeira, real e dolorosamente a vida de um homem e de uma mulher.

No momento em que leigos cristãos, uma vez, tenham encontrado um padre que os “compreenda”, que tenham entrado com seu coração de homem na sua vida, em suas dificuldades, nunca mais disto esquecerão.

Para tanto ele deverá envolver sua vida com a nossa, sem viver totalmente como nós. Durante muito tempo os padres trataram os leigos como menores. Em nossos dias passaram para o outro extremo, ou seja, se tornaram “colegas”. Gostaríamos que continuassem padres, “pais”. Quando um pai de família constata que o filho cresceu, trata-o como homem e não como criança, considerando-se sempre como filho: um filho, homem.

Há necessidade igualmente que o padre leve uma vida divina. Vivendo em nosso meio, o padre permanecerá em “outro lugar”.

Sinais que esperamos dessa presença divina:

♦ a oração: há padres que nunca vemos rezar (pensamos naquilo que se chama de fato rezar);

♦ alegria: padres ocupadíssimos, angustiados!

♦ a força: o padre é aquele que se mantém, pessoa firme. Sensível, vibrante, mas nunca “desmontado”;

♦ a liberdade: desejamos ver o padre livre de toda fórmula, liberto de todo preconceito;

♦ desinteressado: por vezes sentimo-nos usados pelos padres em lugar de cuidarem de sua tarefa que era de ajudar-nos a cumprir nossa missão;

♦ discrição: deve se aquele que se cala (perdemos a confiança em quem nos faz muitas confidências);

♦ a verdade: que seja sempre aquele que diz a verdade;

♦ a pobreza: é essencial, alguém que seja livre com respeito ao dinheiro; que o encaminhe para os pobres;

♦ senso de Igreja: que nunca fale da Igreja levianamente, como alguma coisa do exterior, que se dê a permissão de julgar sua mãe.

Catequese: Pensando em voz alta

Nosso intuito, com estas páginas, é refletir sobre alguns aspectos desse vastíssimo ministério que é o da catequese. A finalidade da catequese é formar pessoas que já são cristãs (ou começaram a sê-lo) para que possam chegar à plenitude de seu ser em Cristo. Foram tocadas pelo Evangelho e precisam aprofundamentos. A catequese não é um “mal necessário” para crianças e jovens em vista do sacramentos da eucaristia e da crisma, nem para noivos que se darão o sacramento do matrimônio. Muitos e importantíssimos documentos preparados pela Igreja em nível universal e nas dioceses levaram à reflexão e aqui e ali os resultados se fazem sentir. A catequese mais eficaz e mais verdadeira é aquela dirigida a adultos, pessoas que experimentam necessidade e sede de Deus e são mais conscientes do que vem a ser assumir um compromisso cristão de viver.

♣ Salvo raras exceções, crianças e adolescentes é que constituem o público mais numeroso da catequese. Ainda não chegamos a concretizar a ideia de uma catequese permanente para todas as idades. Parece, digo bem, parece que a catequese conserva ainda seu cunho de aulas, noções e a serem aprendidas e apreendidas. Ou, também, caricaturando, ela visaria a formação de pessoas boas, “boazinhas”. Nos meus 82 anos de vida sempre alimentei a esperança que as coisas pudessem ser diferentes: que os catequistas, em comunidades vivas, continuassem o jeito de ser do Mestre Cristo Jesus. Nunca entendi por que não tenhamos aprofundado mais a experiência das comunidades de base, espaços de vivência da palavra, espaços de criação de laços de caridade, plataforma de transformação do mundo com as leis do Reino, principalmente o Sermão da Montanha. Não chegamos a isto. E, no entanto, uma comunidade concreta é o lugar de uma catequese viçosa.

♣ Depois da primeira comunhão, os que fizeram o percurso de catequese, vivendo em espaços sólidos de manifestação de fé, como sua família, via de regra, continuaram a levar uma vida cristã regular. Muitos se tornaram apenas pessoas de missa, batizaram os filhos, mandaram celebrar missa pelo sétimo dia de seus entes queridos. Faltou-lhes, talvez, o fogo da fé que queima e ilumina. Muitos participaram da catequese, fizeram a primeira comunhão, foram crismados, mas aos poucos acharam tudo tão vazio e sem base. A fé não foi fincada na rocha, mas na areia.

♣ Para ser bem-sucedida, a catequese precisa do respaldo de comunidades vivas e sadiamente cristãs. Esse é o útero onde nasce e cresce o cristão Há a comunidade do lar, Igreja doméstica. Digo há… deveria dizer… deveria haver… os que se formam cristãmente precisam sentir em casa pessoas que se deixam tocar pelo Evangelho e levam vida alegre, desprendida, atenciosa, coerente. Os catequizandos, por exemplo, ouvem as parábolas nos encontros de catequese e podem identificar pessoas que adotam o modo de viver de Jesus. O mesmo deveria se dar na vivência de uma comunidade: homens e mulheres, luminosamente cristãos. Pessoas que rezam e não apenas dizem fórmulas. O espaço da comunidade deverá ser frequentado além das salinhas de catequese.

♣ Uma palavra chave na vida de todos os dias e também na catequese é encontro. Na vida há encontros e desencontros, abraços e distanciamentos. Um grupo de catequizandos… de onde vêm, qual seu inverso familiar, que história tem o catequista, os catequizandos devem poder se exprimir para que histórias se entrecruzem com histórias e façam uma experiência humana e aos poucos que o Ressuscitado também seja descoberto no meio dos encontros. Acolher, dar importância ao outro, saber escutar. Ter a coragem de falar.

♣ Jesus foi o homem dos encontros. Encontros com o Pai no silêncio da noite e nas montanhas, encontro com Zaqueu, com a mulher de Samaria, com leprosos e cegos, com a mulher que ia sendo apedrejada, encontros com a família de Marta, Maria e Lázaro, encontros com os discípulos de Emaús. Encontros que redundaram no “Vem e segue-me”. Os catequizandos precisam ter a certeza de que estão sendo chamados a seguir o Mestre dos encontros.

Não gosto da palavra “velho”

       Curioso,  Senhor,   muitas  vezes  escutei falar de primeira idade.  Não me recordo de ter ouvido   a expressão segunda idade.  Não sei quando ela começa.  Dizem que termina aos sessenta o setenta anos.  Depois viriam a terceira  e a quarta idade.  A passagem da terceira para a quarta depende de cada  um quando ele olha-se a si mesmo  ou olhado com  o olhar dos outros.

Devo estar presentemente na terceira idade,  já que  jornais, discursos, sermões classificam  de “idosos”, as pessoas de minha geração.   A palavra  “velho”    deveria  ser banida.  Ela é reservada pra quem está na quarta,  ou mesmo na quinta-idade,  quando o interessado não tem mais condição de ouvi-la e de entende-la.

O Padre  Sertillanges  escreveu:  “O velho é a criança do céu”.  Depois que tomei  conhecimento desta afirmação, reconciliei-me com o termo que, confesso me provocava frio na coluna,  em todo caso  no que  me concernia  era inexato…  Prefiro  “idoso”,  “ancião”.  Esses dois me dizem  de deveres com relação aos que veem depois de mim.  O idoso abre o caminho; deve dar o exemplo, se possível tornar sedutor  o caminho que ele escolheu.

Que caminho? Quantas ideias na minha cabeça!   Tento dar-lhes uma certa ordem.  Depois tentarei te  dizer,  Senhor,  os apoios que preciso de ti  que  não  recusarás  que, brevemente, viverá  sua juventude eternamente em seu Reino.

*Ambroise-Marie  Carré, OP

     Prières pour les jours de notre vie

     Cerf,  Paris, p.  100

 

 

Nesta edição

CADERNOS DE FORMAÇÃO
Março de 2021

Cadernos de Formação, edição de março de 2021, tempo da Quaresma. Nossos leitores aqui encontram material de reflexão e meditação. Foca-se a Quaresma em primeiro lugar, mas também refletimos sobre a catequese, rezamos no tempo do envelhecimento, lemos com os olhos do coração a inscrição que foi colocada no alto da cruz do Amado: Este é o Rei dos Judeus. Ainda refletimos sobre o que vem a ser um verdadeiro padre.

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com