Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Caderno de Formação – Fevereiro 2021

Vida espiritual, o que vem a ser?

Viver segundo o Espírito de Jesus

♦ Vida espiritual, espiritualidade, espiritualidade cristã são expressões que empregamos e ouvimos a cada momento. Fala-se de uma espiritualidade dos leigos e de religiosos, espiritualidade dos beneditinos, dos franciscanos e dos jesuítas e assim vai. O tema é vasto e mereceria um livro para ser sumariamente abordado.

♦ Quando no homem surge a pergunta pelo sentido, quando se sente atraído pelo conhecimento de si mesmo, começa a explorar o que lhe é interior, a observar o mundo, a escutar, a pensar, a meditar, a interpretar e, por conseguinte, a escolher, a decidir, a assumir, sentimentos e comportamento. Tem início para ele a vida espiritual. Há uma vida exterior e há uma vida interior.

♦ Somos seres dotados de um corpo com todo o seu esplendor (e suas limitações) e somos animados por um sopro interior de vida que escapa à nossa percepção: um princípio invisível, que um dia cessa e deixamos de viver. Sons, cores, superfícies que tocamos. Somos matéria. Somos pó e ao pó tornaremos. Há dentro de nós, no entanto, misteriosos desejos de plenitude. Esse sopro interno não nos deixa descansar. Somos seres a caminho. Vivemos. E o que importa mesmo é viver. Há uma Plenitude que está além do comer, comprar, sorrir, viver e morrer. Tem que haver…

♦ Não basta um corpo sadio e esbelto. Não são suficientes posses e arranjos que nos permitam levar uma vida mais ou menos folgada. Nem mesmo o casamento, a casa, os amigos, o êxito ou o fracasso. Há um borbulhar incessante dentro de cada um de nós. Esse sopro pede que vivamos intensamente: relacionamentos, arte, sucesso da técnica. Temos uma vida interior: visitamo-nos a nós mesmos, contemplamos interiormente a candura do rosto de uma criança, frequentamos o silêncio interno e externo, uma peça musical nos fascina…Somos mistérios ambulantes… Quem somos nós?

♦ Cristãos que somos dizemos que vivemos uma vida espiritual. Quer dizer que nascemos, crescemos, casamo-nos, colocamos filhos no mundo, trabalhamos sob o olhar do Mistério que nos chama, nos convoca, nos arrasta para Si. Ele nos inventou… Há uma claridade que vem desse Mistério e que clareia decisões escolhas, comportamentos e nos leva até a porta de um horizonte de plenitude. Diz a Escritura que pouco abaixo dos anjos o Senhor fez o homem. Há um fogo que arde em nós. Muito dissemos e nada dissemos, tão complexo o assunto.

♦ A vida espiritual cristã transcende à vida interior, da simples interiorização da realidade. Ela pertence aos que se deixam guiar pelo Espirito de Deus (Gl 5, 18). A vida espiritual cristã é uma vida tornada possível por causa do Espírito criador que a faz ser, que a inspira, que a sustenta e que a leva a uma plenitude impossível de ser atingida por meras forças humanas.

♦ Esta vida espiritual cristã tem a ver, como já dissemos, com a vida interior humana, mas a transcende. É resposta de fé, esperança e caridade a Deus que chama e que se deixa “contar” por Jesus Cristo que se faz presença eficaz no Espírito Santo. Enzo Bianchi: “A vida espiritual cristã nasce da palavra dirigida ao cristão no batismo: “Tu es meu filho”, filho no Filho Jesus Cristo e pois filho bem amado, chamado a “respirar o Espírito Santo”, participando assim da própria vida de Deus”.

♦ Ainda o pensamento de Enzo Bianchi: “Uma vida interior – e exterior – animada e dirigida pelo Espírito Santo é explicada por diferentes expressões de São Paulo: “vida escondida com o Cristo em Deus” (Cl 3,3), vida que é o próprio Cristo (cf Cl 3,4), vida do homem interior que se renova dia após dia (2Co 4,16). Vida nova na qual o cristão caminha (cf. Rm 6,4). Até essas vertiginosas afirmações quase indizíveis: “Não sou eu que vivo, e Cristo que vive em mim” (Gl 2,20) ; ou ainda “para mim viver é Cristo e morrer é lucro (Fl 1, 21).

♦ Uma vida que pretende ser espiritual não se apoia apenas da experiência cristã da liturgia e da gnoseologia (do grego gnosis, ‘conhecimento’, e logos, ‘discurso’). Trata-se de uma experiência prática, uma ciência, de um conhecimento dado através de uma conformação de sua própria vida com a vida de Jesus Cristo. Trata-se de uma respiração que existe em nós tão profunda que num determinado momento já não é a nossa. Rilke escrevia: “Respirar, ó invisível oração”. A oração: gemido do homem ou gemido do Espirito.

♦ Normal que se pense um lugar, uma fonte, um órgão simbólico para situar a vida espiritual cristã: trata-se do coração humano que fornece a imagem mais adequada por ser o interior mais profundo do homem, porque por suas palpitações, faz vibrar todo nosso corpo. Philippe Ferlay define a vida espiritual como uma longa e paciente peregrinação na direção do coração. Assim, para a tradição bíblica e posteriormente a tradição cristã o coração é o órgão da tradição espiritual, como centro do pensamento, da vontade e do amor. Santificar o coração: eis a vida espiritual. Torna-se espiritual aquele que se deixa animar pelo Espírito. Este Espirito purifica, orienta, ilumina todas as nossas faculdades (afetividade, inteligência, vontade) e fecunda todo o nosso ser (corpo, espírito e alma). Viver no Espírito e não deixar que o coração endureça.

♦ Régine du Charlat: “A vida espiritual não é feita de um somatório de convicções, teorias ou de dogmas que se situariam exteriores a nós. Ela consiste no tocar, escutar, ver, degustar, sentir. Será uma experiência ao mesmo tempo humana e espiritual” Segundo Galilea: “É o processo de seguimento de Cristo sob o impulso do Espírito e a orientação da Igreja”.


Rementemos especialmente para: Enzo Bianchi, “La vie spirituelle chrétienne”, Vie consacrée, 2000, n. 1, p.35-52

O que vem a ser, na realidade, pastoral?

♦ Ai está uma realidade com a qual “convivemos”: a pastoral. Em poucas linhas vamos tentar compreender o que pode bem ser pastoral no contexto da vida da Igreja de hoje. Salvador Valadez Fuentes, sacerdote mexicano, escreveu uma boa súmula do assunto no texto que leva o título de Espiritualidade Pastoral. Como superar uma pastoral sem alma?, em castelhano e que as Paulinas publicaram em português.

♦ Antes de mais anda devemos afirmar com força que a pastoral é uma atividade extremamente importante para formar cristãos e para acompanhar seus passos ao longo da vida em vista da consecução de ser em Cristo. Trata-se de uma atividade que não se improvisa, requer pessoas profundamente cristãs e significa basicamente em acompanhar cuidadosamente a ação da graça do Senhor agindo nas pessoas. O agente pastoral é veiculo das graças redentoras e humanizadoras conquistadas por Cristo Jesus em seu amor sem limites. Pastoral é mais do um “hobby” piedoso.

♦ Etimologicamente, o termo “pastoral” deriva de pastor. No início de seu uso (finais do século XVIII e começo o século XIX) referia-se basicamente à doutrina de formar pastores (presbíteros), e ao modo de modo de realizar o ofício da cura animarum (cuidado das almas), própria do pároco. A partir daí esse conceito foi se revestindo de muitos significados ambíguos ou mesmo errôneos.

♦ Em muitos institutos de formação do clero havia uma ano de pastoral que era como que uma coleção de receitas práticas. Compreende-se esse modo de ver as coisas num mundo mais ou menos estático. Tinha-se a impressão que a teologia e suas matérias era o mais importante e que a pastoral era uma “cozinha” mais ou menos independente fortemente marcada pela sacramentalização e recursos práticos para responder às necessidade que pudessem ocorrer e resolver as dúvidas na moral.

♦ Hoje compreendemos a importância do agir cristão fortemente marcado pela Ressurreição do Senhor e pela ação do Espírito. Revalorizou-se todas as dimensões do Pastor que foi Jesus como pano de fundo do grande leque das “pastorais”. Ele, o Pastor que dá a vida pelas ovelhas. É ele que está por detrás de todas as nossas pastorais e seus agentes, servos e amigos do Pastor.

Conceitos inadequados

⇒ É um assunto exclusivo da hierarquia eclesiástica: bispos, presbíteros e diáconos são eleitos por Deus para esta tarefa. Os religiosos e as religiosas são colaboradores próximos, porém não responsáveis diretos. Os leigos são auxiliares do clero em tarefas que este lhes atribui.

⇒ É um conjunto de atividades realizadas das mais diversas formas por pessoas da Igreja, especialmente pelos clérigos: o porque e o como são realizados não importam tanto; o que importa é fazer algo, ter boa vontade de contar com a graça de Deus.

⇒  É um conjunto de métodos e técnicas para evangelizar: a ela compete a organização, os planos, e o programas etc… a conversão e a transformação da realidade virão por acréscimo.

⇒ É um apêndice ou aplicação prática da moral e do direito canônico: uma espécie de casuística para que os pastores possam orientar os seus paroquianos, de modo particular na questão do pecado.

⇒ É uma tarefa orientada para conservar os costumes e as tradições religiosas do povo: sua função seria manter a fé simples das pessoas, seus sentimentos religiosos, suas devoções e manifestações de piedade. avia pouca preocupação em levar as pessoas à maturidade cristã.

Descrição de pastoral

⊕ As coisas começaram a mudar a partir do Concílio do Vaticano II, em torno dos anos 60 do século passado. Por detrás de toda ação pastoral se colocou um sopro novo. As janelas se abriram para receber um vento mais fresco. Esse sopro novo é o de uma presença nítida do mistério de Cristo vivo e não a conservação de posturas obsoletas executadas pelo tempo da cristandade. Pastoral passou quase a querer dizer evangelização.

⊕ Definição de pastoral proposta por Salvador Valadez Fuentes:

Pastoral é o ministério da Igreja, povo de Deus que, sob o impulso do Espírito Santo, atualiza a práxis evangelizadora de Jesus, voltada para a auto-edificação dela mesma e para a expansão do Reino de Deus no mundo.

É o ministério: O grande serviço pelo qual a Igreja, diaconal por natureza, expressa-se como comunidade de servidores, convertendo-se em sinal daquele que veio não para ser servido mas para servir (cf. Mc 10,45).

Da Igreja, povo de Deus: Significa que tal ministério não é exclusivo da hierarquia, mas de todos os membros da comunidade crente, cada qual a partir de seus carismas e vocação específica.

Que sob o impulso do Espirito Santo: A pastoral é uma obra divino e humana realizada por Deus, por meio de seu Espirito, principal agente, e pela pessoa crente, por meio de sua colaboração livre e responsável.

Atualiza a práxis evangelizadora de Jesus: Jesus, “Evangelho vivo do Pai”, é o paradigma, a norma suprema, do ministério pastoral da Igreja. De modo que tudo e somente aquilo que consiga tornar presente Jesus e sua práxis merece o qualificativo de “pastoral”.

Voltada para a auto-edificação dela mesma: Muitas ações pastorais estão orientadas par dentro, pois a Igreja precisa se auto-evangelizar permanentemente, celebrar sua fé e expressa-la na comunhão e no serviço.

E para expansão do Reino de Deus no mundo: A implantação do Rein, entendido como senhorio (reinado) efetivo do Pai na história, na humanidade e no coração de cada ser humano. Esta foi a Causa de Jesus, sua prioridade absoluta, sua grande utopia e de ser também a causa da Igreja.

Nota: Talvez alguns tenham achado árido e teórico este texto inspirado em Salvador Valadez Funtes. Deveria ser lido em grupo e tiradas consequências práticas para nossas diferentes atividades pastorais: que sejam verdadeiras acolhendo a presença do Espírito nas pessoas. Pastoral não curso relâmpago para recepção dos sacramentos.

Diário de um frade muito idoso

Maio

Vivo a fase da vida caracterizada pela mais plena velhice. Percebo isso de maneira muito forte. Dores, em todos os “seguimentos existenciais”, da cabeça aos pés. Hora após hora, fraqueza e cansaço. O Eclesiastes fala da velhice como de “dias tristes”… Anos dos quais dirás: “Não tenho mais prazer” (Ecl 12,1). Confesso que não vejo motivo de tristeza na velhice. É, como todos os outros anos da vida, um dom de Deus. Evidente que o fazer muitas vezes se torna difícil e, por fim, quase impossível. Mas o ser pode aperfeiçoar-se e enriquecer-se mais e mais. “Embora em nós, o homem exterior vai caminhando para sua ruína, o homem interior se renova a cada dia (2Co 4,16). Se existe uma época em que é necessário viver um tempo de abandono em Deus, momento após momento, é o tempo da velhice. É o único meio de viver em paz consigo e com os outros. Deus dá a graça no momento que vivemos. Não como “reserva”, diria Santa Teresa do Menino Jesus, mas não falta nunca na hora da necessidade.

Junho

No tempo da velhice não confiamos em nossas forças, nem no amanhã nem nos outros que, na verdade podem fazer muito pouco por nós. Deus permanece como único refúgio. Cordas nos são estiradas. Nesse momento é que o Amor nos espera para atrair-nos definitivamente a si, Forçoso agarrar a corda quando lançada. Outra estrada está interditada. O Amor apostou que esta é uma passagem obrigatória. Só nos resta lançarmo-nos em seus braços. A velhice é tempo, o último, para ceder às seduções do amor de Deus. Talvez o Senhor tenha permitido que nos tenhamos enganado pelos caminhos ao longo de toda a vida; ele não deseja absolutamente que nos percamos. Espera de nós, como aquele dois discípulos de Emaús: “Fica conosco, Senhor porque o dia já declina”. Estaremos juntos para além do ocaso e da noite. Para sempre.

Julho

Sinais da velhice são essas amnésias e toda sorte de achaques. Pior fica difícil se tornar. Dias atrás (30 de junho) lendo os feitos dos primeiros mártires romanos senti um certo arrepio. Penso, no entanto, que sentir passo a passo o declínio das forças físicas e das faculdades do espírito não seja menos doloroso, talvez mais glorioso, porque menos glorioso. Assistir dia a dia a seu próprio “desfazimento” é humanamente aviltante. Vê-se privado pouco a pouco de sua dignidade e aos poucos ser reduzido a uma vida quase somente animal senão vegetativa que não pode mais ser recuperada é um verdadeiro martírio. Nesse momento é que o abandono e a confiança no amor de Deus se tornam necessidade incontornável. A velhice é a passagem da segurança fundada nas próprias forças à segurança firme fundada na fé e do amor de Deus. Neste estágio da existência damo-nos conda de que o tempo se nos escapa desastrosamente. As sombras vão se tornando densa. Brevemente será noite. É a última hora para viver só de Deus. “Meu Deus, meu amor. Tu todo meu e eu todo teu” (Imitação de Cristo, livro III, c.5,23). Sente-se que não há nada de amar em nós. Necessita-se deixar-seduzir pelo amor de Deus e verter para ele nosso pobre amor, ou seja do amor que nos demos a nós mesmos e aos outros que não foi Deus. De tal modo que o progressivo esvaziamento do orgulho das pessoas que se acreditam inteligentes faz com que a alma se encha “do amor daquele que nos amou e deu a vida por nós” (Ef 5,2). Numa palavra também o “desfazimento” físico e mental desemboca no amor de Jesus e em Jesus. Talvez por pouquíssimos minutos, mas o suficiente para atingir aquela unidade pela qual jesus rezou em sua última tarde na terra.

Agosto

Chega um momento em que estamos fora de uso. Da mesma maneira como um motor ou uma ferramenta gastos pelo tempo de uso. Vem o pensamento de que podemos ser substituídos por algum outro. Pensávamos que fossemos tão necessário, tão competente como nem um outro ou bem poucos. Somente no amor ninguém pode nos substituir. Amar é a única atividade de tal forma pessoal que alguém é único e insubstituível. Necessário que seja um amor devidamente centrado: em Jesus. Um amor que não seja como este é um amor sempre intercambiável. Como um motor ou uma ferramenta gasta pelo tempo ou impropriamente usada e que não serve para a finalidade para a qual fora criada.


Um frade menor envelhecido de verdade, Publicado na revista italiana “Vita Minorum”

Uma prece ( ou um ardente desejo)

Basta…

… que um rosto desconhecido mal e mal me veja na rua
que um olhar desconhecido busque meus olhos
que uma boca desconhecida esboce um sorriso
que uma voz desconhecida se revista de timbre amigo,
que uma mão desconhecida aperte fortemente a minha
que um sol desconhecido dardeje sobre meus dentes
que uma onda desconhecida ouse bater em minhas praias
que uma carne desconhecida que recolha em suas redes

esqueço minha solidão e suas portas muradas
esqueço que meu destino não tem identidade
e que nada mais sou do que um rebento cheio de vida
ou um casulo rasgando pelo bater das asas
as divisórias de meu coração
cantando meu coração mergulha da morte para a vida.

J.M. Sourgens

Nesta edição

CADERNOS DE FORMAÇÃO

Fevereiro de 2021

Com alegria colocamos na tela de seu computador ou de seu celular a edição de fevereiro de 2021 dos Cadernos de Formação, um punhado de textos para formação do cristão e para reflexão a respeito do ser humano que somos. Boa leitura!

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com