Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Agosto 2012

I. LEITURA ESPIRITUAL

Quando o Senhor ocupa o espaço todo de uma vida

 

Centralidade da fé e conversão do coração  (II)

 

Continuamos as considerações do número anterior nesta nossa Leitura espiritual. Sempre de novo estamos refletindo sobre a vida no Espírito. Centralidade da experiência da fé, sequela de Cristo e dinâmica da conversão fazem parte do que chamamos de vida espiritual. Ressoam sempre aos nossos ouvidos os últimos capítulos da Regra Não Bulada de Francisco. Sempre o Senhor no centro, esse Senhor qualificado de forma superlativa, sempre o Tudo, o Absoluto, o Belíssimo. Até que ponto, pessoal e comunitariamente, envidamos todos os esforços para que o Senhor ocupe o espaço todo?

 

11. Os discípulos seguem o Mestre. Felizes aqueles que são chamados a acompanhar bem de perto esse que é caminho, verdade e vida. A vida espiritual é dinamismo. Tem seus modestos começos e pode fazer com que nela se embrenham cheguem à mais alta contemplação e conformação com  Cristo. Comporta  esse locomover-se. Não se trata apenas de um deslocamento físico.  Há, sobretudo,  o movimento  interior. Somos peregrinos e forasteiros em quaisquer circunstâncias. O discípulo não está tão preocupado em entender  intelectualmente discursos e ditos do Mestre, mas antes de tudo desejam acolhê-los com disponibilidade, como boa terra e se põem a caminho. Ubaldo Terrinoni (Projeto de pedagogia evangélica, p 59):  “O discípulo deve aprender a entregar-se, lentamente à ação discreta e implacavelmente penetrante da palavra, a fim de deixar-se permear  em todas as fibras do próprio ser; deve aprender a estabelecer um contato contínuo com a palavra, uma assimilação lenta e progressiva, para deixar-se transformar em criatura nova”.  Essa tarefa dura toda a vida.  Nunca estamos quites.

12. O seguimento é expressão de conversão permanente a Jesus  Cristo. Segui-lo ou não é uma decisão que estrutura e caracteriza radicalmente o destino dos indivíduos e das comunidades.  “A admiração pela pessoa de Jesus, seu chamado, seu olhar de amor despertam uma resposta consciente e livre desde o mais íntimo do coração do discípulo, uma adesão a toda a sua pessoa, ao saber que Cristo o chama pelo nome  (cf. Jo  10,3). É um sim que compromete radicalmente a liberdade do discípulo e a se entregar a Jesus, Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6). É uma resposta de amor a quem amou primeiro “até o extremo” (cf. Jo 13,1).  A resposta do discípulo amadurece  neste amor de Jesus: “Eu te seguirei onde quer tu vás” (Lc  9,57)” ( Doc.de Aparecida, n. 136).  O discípulo se centra no Senhor. Sabe-se incondicionalmente amado por ele.  Tem os olhos  fixos nele. Assim sendo  pode aceitar suas exigências  de seguimento  marcadas pelo radicalismo. O discípulo viverá unicamente ligado a ele, renunciando a tudo o que tira o esplendor de tal seguimento. A preferência a Cristo pedirá rompimentos familiares, perda de bens, troca das coisas certinhas pelo risco da fé. Vida espiritual cristã é vida de seguimento.

13. Francisco de Assis fala do seguimento das pegadas de Cristo:  “Atendamos, irmãos todos, ao que diz o Senhor: Amai os vossos inimigos e fazei o bem àqueles que vos odeiam (cf. Mt 5,44) porque nosso Senhor Jesus Cristo cujas pegadas  devemos  (cf.  1Pd 2,21), chamou amigo a seu traidor e ofereceu-se espontaneamente aos que o crucificavam. Amigos nossos, portanto, são todos aqueles que injustamente nos causam  tribulações e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, tribulações e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte, a estes devemos amar muito, porque, a partir  disto que nos causam, temos a vida eterna”  (Regra Não Bulada, 22).  O tema da sequela Christi é  caro a Francisco.  Diz-se mesmo que ele caracteriza a espiritualidade franciscana. Será verdade se colocarmos nesta expressão um conteúdo justo. O tema tomado  de 1Pd 2,21  não alude aos fatos e gestos da vida pública de Jesus  que deveriam ser reproduzidos pelo discípulo. Trata-se, antes de tudo, de um convite a que ele entre, com serenidade e paciência, no mistério da bem-aventurada paixão do Senhor e desta forma poder participar de seu destino doloroso e glorioso. Mais do que uma mística da pobreza, entendida do ponto de visto sociológico,  a “sequela” é mística da Paixão, desembocando,  na esteira do Senhor, na glória. Caminhar nas pegadas do Senhor, é viver conforme todas as exigências do Evangelho, incluindo sofrimento e morte e abrir-se às promessas proclamadas pelo Evangelho.

14. Paulo lembra que nossa vida está escondida com Cristo em Deus( Cl 3,3). Nossa vida é a própria vida de Jesus. A vida do cristão consiste  em ter os mesmos pensamentos e sentimentos de Cristo Jesus, comportar-se como ele se comportou, permanecer no mundo fazendo o bem aos irmãos, viver e morrer como ele viveu e morreu. A vida espiritual consistirá em viver a existência humana como Jesus viveu em perfeita obediência ao  Pai, em extrema fidelidade à terra, quer dizer, num amor sem limites e sem condições.  A vida espiritual não é uma outra vida, não exige o sair do mundo, nem esquecer a carne de homem. Ela é, no entanto, viver a vida humana como uma obra de arte.

15. “Seria necessário insistir hoje que a existência humana de Jesus foi uma existência boa, uma existência vivida em plenitude, em suma, uma existência feliz, na qual o amor tornou-se um canto de comunhão, a esperança uma convicção até o fim, a fé uma adesão dia após dia a seu próprio ser de criatura diante do Criador. O seguimento de Jesus comporta também o olhar o céu, tentar ler os sinais, amar as flores dos campos, sentar-se à mesa alegre dos amigos e dos que sabem acolher, viver com outros uma aventura de amizade na busca de um projeto comum. Não há dúvida que, no horizonte do seguimento de Jesus está a cruz. Esta será vista a partir daquele que nela subiu. Ela não é uma fatalidade inglória. É Jesus, que na cruz,  revela a autêntica glória: quer dizer a humildade de Deus, seu incontido amor por nós, sua capacidade de sofrer por nõs”  (Enzo Bianchi, La vie spirituelle chrétienne, in Vie Consacrée  2000/1, p.47).

16. Nunca esqueceremos que o seguimento do Senhor se vive à luz do mistério pascal. Somente assim pode se realizar.  Podemos nos inspirar em determinadas ações que  Jesus  colocou em sua existência, mas nosso ato de fé  pode encontrar seu fundamento somente  na ressurreição. Uma vida espiritual deve cuidar de não ser apenas uma imitação de situações humanas. Correríamos o risco, no dizer de Enzo Bianchi, de procurar entre os mortos aquele que vive. Hoje temos a ver com Cristo ressuscitado.  O Espírito Santo que esteve presente ao longo da vida de Cristo desde a sua concepção até o último suspiro na cruz é aquele que nos acompanha no conhecimento de Cristo e no seu seguimento, não somente recordando palavras, atos e acontecimentos de Jesus, mas permitindo que vivamos com ele de sorte que Cristo se forme em nós  e viva em nós.

17 Francisco de Assis no seguimento de Cristo vai se apropriar dos aspectos mais despojados e desapropriados. Ele vai ter em seus olhos e em seus coração a atenção voltada para  os traços do Cristo pobre e despojado. Clara de Assis. por sua vez, pedirá que  Inês de Praga mire o espelho e lá veja  Cristo pobre e dilacerado. E  Clara se apaixonará pelo Cristo esposo pobre. Por ai vai sua identificação com Cristo, segui-lo “assimilando-o”.

18. Os que se preocupam em colocar seus pés nos pés do Senhor, em seguir o Senhor, vão operando a conversão. Este é um dos aspectos fundamentais vida espiritual: uma vida de transformação interior que se exprime num estado de conversão. Terminamos estas reflexões com  textos de Michel  Hubaut  descrevendo o que seria a conversão.  Logo que começou a anunciar publicamente a  Boa Nova,  Jesus se declarou o instaurador de um mundo novo e pedia que seus ouvintes que se convertessem:

•  “Converter-se é acolher na fé a iniciativa gratuita, imprevisível de Deus que decidiu, em Jesus, nos visitar pessoalmente para nos salvar,  para nos fazer entrar numa felicidade sem fim. Converter-se é aceitar de ser salvo gratuitamente e colocar sua vida em consonância com este acontecimento.

• Conversão e fé participam do mesmo movimento. Converter-se é mudar a direção de sua vida, é ter bastante fé para renunciar a se considerar centro absoluto e autossuficiente. Ter fé para orientar nossa vida, nosso futuro, nossa busca de felicidade em  Jesus que nos chama a segui-lo”.

• Converter-se não é em primeiro lugar passar do vício para a virtude, mas viver a mudança radical:  aceitar de nunca mais  querer construir a vida sozinho, com teimosia, mas acolher em Jesus  a iniciativa de Deus, a gratuidade de seu amor, de seu apelo e de seus dons. No começo de tudo não há mais o eu, o homem, mas o Amor de Deus” (Chemins d’interiorité avec Sains François, p. 24-25).

II. JANELA ABERTA

Pai, decidi voltar e lançar-me em teus braços!

 

Nossa  janela se abre, de alguma forma, para a cena da parábola encantadora do Pai das Misericórdias ou do  Filho Pródigo. Esta é  nossa história e a história da humanidade. Na realidade, nossa vida espiritual é a vida de pessoas de coração contrito que estão sempre em processo de retorno à casa do Pai, esse Pai que tem saudade de nosso abraço. O autor desta bela prece é o franciscano  Michel Hubaut que foi publicada na Revista  Prier, n. 55,  p. 17.

 

Filho pródigo, filho ingrato,
rompi o relacionamento contigo, meu Pai!
Quis fazer minha vida sozinho!
Inventar minha felicidade longe de Ti!
Não havia compreendido a gratuidade de Teu amor
que era minha casa, minha riqueza, minha vida.
Reclamei a minha parte na herança,
imediatamente  e  unicamente para mim.
Apossei-me de teus dons, como se eu tivesse direito,
cego e inconsciente que estava.

Não me impediste de partir.
Nada disseste.
Deixaste que eu me dirigisse para o distante país de minhas fantasias.
lá onde gastei todos os teus bens.
Esta parcela de vida, esta parcela de amor, dilapidei-as egoisticamente, sofregamente, tolamente.
E quando tudo havia gasto
houve terrível fome em meu coração.
O pecado é o país da fome e do enfado,
do desgosto e da privação.
Decepcionado, insatisfeito estive diante do vazio.
Entrei em mim mesmo,
tive sede de outras coisas,
lembrei-me de tua Casa,
resolvi me levantar e voltar…

Tu me percebes de longe:
há muito tempo me espreitas nas encruzilhadas de meus caminhos.
Corres na minha direção.
Tu me  apertas entre teus grande ombros.
Estás mais emocionado do que eu.
Não fazes perguntas a respeito de meu passado.
Tu conheces o que se passa.
Sabes que teu filho está sofrendo,
conheces bem a amarga experiência que fiz.
Mandas que me tragam veste nova e sandálias novas
Colocas um talher a mais na mesa da família.
Dizes:  Comamos, façamos a festa,  meu filho voltou.
Obrigado Pai,  minha Casa, meu Amor, minha Vida,
nunca haverei de me esquecer:
não queres a humilhação de teu filho, mas que viva!

III. CRÔNICA

São Lourenço de Minas Gerais

 

Reminiscências franciscanas

 

1. Nossa Província da Imaculada teve durante muito tempo uma casa no estado de Minas Gerais, no Sul de Minas, na bela e encantadora Estância Hidromineral de São Lourenço, uma das cidades do Circuito das Águas.  De alguma forma, pode-se dizer que São Lourenço foi uma cidade franciscana.  Resta ainda naquelas plagas uma Fraternidade Franciscana Secular que teimosamente continua a existir como que a dizer que ali fora uma terra densamente franciscana. Nós, frades estudantes de Petrópolis, costumávamos ser requisitados para atuar na pastoral nos dias da Semana Santa e ocasionalmente na festa do Padroeiro. Houve tempo também em que, no período do Natal,  alguns ali passávamos férias aproveitando a beleza do Parque das Águas, naquele tempo em que o parque não era propriedade de nenhuma multinacional. Conheci São Lourenço na  década de sessenta. Guardo as melhores e mais caras recordações da cidade e dos frades.

2. A cidade nunca foi grande. Vivia e ainda vive do turismo. Era estância de férias preferida pelos cariocas, menos do que pelos paulistas Estes sempre optaram  por Campos do Jordão, Serra Negra e Lindóia. Naquele tempo, a grande clientela de cariocas era de pessoas de certa idade com algumas posses e também jovens casais que escolhiam o lugar para sua lua de mel. Visitando famílias do Rio de Janeiro, muitas vezes vi fotos de “pombinhos” em lua de mel no Parque da Águas, nos barquinhos do lago, nos bancos do bem cuidado jardim. Passei por lá há pouco tempo.  Continua sendo um  lugar preferido pelos cariocas de certa idade ou de alguns casaizinhos… que passam um tempo por lá… porque não há mais lua de mel… As pessoas se conhecem e se entregam… Mas isso é outro assunto.

3. A viagem para São Lourenço, do Rio, era longa. E não poucas pessoas experimentavam náuseas devido às curvas que o ônibus fazia ao começar a subir a serra em Engenheiro Passos. Em geral saímos do Rio pelas 8h30 da manhã chegávamos lá pelas 2h da tarde… e nos esperava o almoço e começávamos  a beber  as águas… que funcionários da paróquia buscavam nas fontes do parque que, repito, ainda não pertenciam a nenhuma multinacional… Água alcalina, magnesiana, sulfurosa, ferruginosa…

4. Além de ajudar na Paróquia de São Lourenço tive ocasião de estar em duas ou três ocasiões para pregação na Semana Santa em Campanha. Ficava na casa do bispo. Tenho as melhores lembranças de Dom Othon Motta, bispo da diocese que provinha do clero do Rio. Ali, como jovem padre, nos meus primeiros anos de ministério, sentia-me contente  pelo fato de me sentir integrado à Igreja local. Dom Othon nos tratava com carinho e fazia questão de valorizar a presença dos franciscanos em sua diocese. Não me esqueço também da figura amiga de Pe. Fuad, da Catedral de Campanha… Parece que ele passou a vida toda ali. Ele tratava a nós,  frades,  com muito carinho e  especial deferência.

5. A casa dos frades era modesta. No andar inferior, a cozinha e o refeitório;  no piso superior, os quartos sem banheiros individuais… uma sala de estar, uma varanda… À noite, depois de trabalhos pastorais, ficamos em casa e dormíamos com cobertores quentes… devido ao frio da serra. Um dia desses passei duas noites em São Lourenço, na casa das Franciscanas do Egito e  lembrei-me daquelas noites frias…

6. Passo agora a evocar a figura de alguns frades que marcaram a cidade de São Lourenço e deixaram vestígios até hoje.   Não tenho a lista de todos os que passaram por lá, nem tenho condições de escrever sobre a passagem de cada um deles por São Lourenço. Um dos frades mais queridos de nossa Província, que era estimado por onde viesse a passar, foi  Frei Osmar Dirks. Viveu um bom tempo em São Lourenço. Frei Osmar era conhecido como excelente confessor e exímio diretor espiritual.  Tinha o senso do laicato antes da hora. Era o homem da pastoral criativa, de uma teologia da ação pastoral, pessoa de profundidade que tinha uma sensibilidade para o belo. Lamento profundamente ignorar  pormenores de sua trajetória. Ouvi confidências de pessoas que o conheceram em nossa Paróquia de Nossa Senhora da Paz em Ipanema…  Naquele quadro de luxo da zona sul, Frei Osmar foi uma luz fortíssima.  Lembro-me do tom grave e bonito de sua voz. De seus olhos azuis. Falava-me das encenações franciscanas que fazia na Paróquia de São Lourenço. Esse homem marcou gerações nas serras de São Lourenço e no bairro da Garota de Ipanema.  Piedoso, artista, frade, homem espiritual, frade que lia. Ele rivalizava com um frade da Província da Bahia, também alemão, que depois se tornou Bispo em Ilhéus… Frei  Walfredo Teppe.  Não se pode pensar a Igreja de São Lourenço sem a figura de Frei Osmar,  que honrou a Província da Imaculada.

7. Outro frade que merece ser destacado e que viveu nas montanhas do Sul de Minas Gerais foi  Frei Carmelo Surian,  falecido em Agudos, depois de longos anos de recolhimento no Convento das Graças, em Guaratinguetá. Foi dos frades párocos o mais criativo. Por onde passava inventava o novo. Nem sempre era pessoa fácil de se conviver.  Tinha personalidade forte. Passou por muitos lugares e espaços. Deixou traços fortes na Editora Vozes e coloriu franciscanamente  tudo o que foi tocando. Seus escritos, seu zelo pela Ordem Terceira (OFS), seu escritos… Quando escrevo sobre Frei Carmelo penso no seu  livro  “Desiderio desideravi”… Um estudioso, um homem profundo, um incentivador dos leigos. Por onde passava era outro que deixava fortes rastros:  Curitiba, Niterói, São Lourenço, Vozes.  Um homem que teve sempre saúde delicada, dificuldade de audição, foi intrépido em São Lourenço fazendo com que a cidade se tornasse uma capital  franciscana. A cidade comportava uma única paróquia que era confiada aos frades. Assim, havia todo um estilo franciscano de Frei Carmelo animar a comunidade paroquial. Não de Frei Carmelo, mas do frade que ele era. Em minha primeira missa simples, no dia 16 de dezembro de  1964, tive  Frei  Carmelo como presbítero assistente.

8. Em  São Lourenço realizou-se  um famoso Congresso Franciscano Secular que começava a “mexer” com o imobilismo da Ordem Terceira e que está na base de  muitas renovações… de modo especial das assim dita unificação das obediências. Sempre em São Lourenço… Os frades eram expressivos  no sentido de apontarem para o carisma franciscano que viviam.  A Ordem Terceira chegou mesmo a ter uma casa de encontros que continua a existir… o Hotel Eldorado… Temo que São Lourenço já tenha perdido o seu perfume franciscano…

9. Não quero deixar de assinalar a passagem de um  frade que também deixou marcas  na cidade, como deixara antes em Sorocaba. Estou me referindo a Frei Aymoré  Dalmédico, o frade dos cabelos vermelhos… que  tinha uma “queda” para a catequese.  Tanto em São Lourenço como em  Sorocaba, gerações e gerações passaram por suas mãos e pelas catequistas que ele dirigia com  muita garra. Permaneceu longo tempo nas casas para as quais fora transferido e, na simplicidade de sua vida, sabia criar laços e transmitia, a seu modo, a alegria franciscana.

10. Pois bem, todas essas reminiscências vieram  à tona quando,  na qualidade de Assistente Regional da  OFS,  estive em São Lourenço  nos primeiros dias de julho de 2012. Não diria que a visita  pastoral foi frustrante. Nada de pessimismo… Vendo, no entanto, aqueles poucos irmãos, valentes e envelhecidos, vendo  dois ou três que se preparam para a profissão já com sintomas de cansaço da vida,  todo o passado veio ao presente. Veio-me à mente o que significou para a Igreja de Campanha a presença franciscana, tudo aquilo que  tantos frades lá construíram … vivos e mortos… Frei  João Alves Filho, Frei Olivério, Frei Luiz Gonzaga, Frei Filipinho, Frei Gonçalo Orth, Frei Luiz Flávio Adami  Loureiro, Frei Luiz Fernando Mendonça… Frei Filoteo Volmer  e tantos outros… como  Frei André Beckerr, Frei Ivo Theiss… Evidentemente me esqueci de muitos e muitos… que me perdoem… mas esses  borbotões de nomes bastam… Não estamos mais em São Lourenço.  Não tenho nada que criticar decisões tomadas com muito sofrimento pelo governo da Província… Só quero  afirmar com veemência que era uma alegria ir a São Lourenço, onde havia pastoral, onde havia um vigor na fraternidade dos frades, onde leigos franciscanos nos ajudavam a ser mais frades.  Hoje resta apenas um pequeno grupo de irmãos e irmãs da OFS. Deus queira que ele pegue o bastão que receberam de tantos frades dedicadíssimos e cheios de fogo.

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI?

Cuidado da Igreja para com o casamento e a vida familiar

 

Aos poucos a Igreja do Brasil foi organizando o que se convencionou designar de pastoral familiar.  Trabalho ingente e delicado esse de acompanhar as famílias antes do casamento, no momento da recepção do sacramento e também  depois de constituídos os casais. Hoje, devido às separações e recasamentos e a  todas as transformações culturais e religiosas ficou extremamente difícil levar as famílias à santidade. A problemática da sociedade influencia grandemente o caminhar das famílias. Temos diante dos olhos, em versão italiana, um documento do episcopado francês  sob o título no original:  “Les familles, miroir de la societé”.  O texto de que dispomos  apareceu em “Il Regno  – Documenti  1/ 2012). Aqui e ali inspiramo-nos no texto.  Na verdade, trata-se de uma síntese de perguntas feitas a um grande número de pessoas entrevistadas.

1. Sempre de novo precisamos dizer em alto e  bom som  que o casal cristão, quando enceta a vida conjugal,  é constituído por discípulos de Jesus que já fizeram uma certa caminhada no conhecimento do Senhor (ou deveriam ter feito e não simplesmente receber o sacramento por receber). Esses dois, com sua história e trajetória pessoais, unem-se no Senhor e se dão o sacramento do matrimônio.  A compreensão clara do que significa “unir-se no Senhor” é fundamental para que o casal cristão cresça humana e santamente. Para que o casamento e família  tenham uma dimensão cristã necessário se faz a iniciação cristã dos jovens. A Igreja precisa de casais profundamente cristãos. Com eles, começa a pastoral familiar e, eu diria, o  Reino de Deus.

2. Isto implica na lenta instauração de uma outra cultura da celebração do matrimônio. Sem tirar nada do aspecto profundamente festivo e alegre  do casamento e de sua celebração no seio da Igreja, os aspectos fundamentais precisam transparecer: leituras  proclamadas e explicadas, entendidas, a qualidade do amor conjugal cristão marcado pela liberdade, fidelidade e fecundidade, o pacto amoroso de aliança que se insere na Aliança do Senhor com a Igreja, o alegre sim, a presença de testemunhas que dão prova de viverem um casamento cristão,  os cânticos revestidos de beleza mas que não deixem de exaltar o mistério vivido por esses dois cristãos.

3. O  documento da Conferência dos Bispos da França recorda que a Igreja  precisa reafirmar o ideal evangélico do  matrimônio e da família. “Antes de tudo é pedido à  Igreja reafirmar  fortemente o ideal de amor indissolúvel e vivido na fidelidade. A Igreja é hoje a única instituição que promove este ideal, a única a dar valor enquanto tal ao casal homem/mulher, a única a responder a uma sede de absoluto que está presente nos jovens enamorados.  Os homens políticos não acreditam mais neste ideal. Talvez, por motivos eleitorais, não se aventuram a abordar o tema. Há muitos  que querem poder viver o ideal cristão do casamento”.

4. Parece fundamental um empenho no sentido de que casais e famílias voltem a se deixar impregnar pelo Evangelho. Temos que sair de uma atmosfera de legalismo, de apenas fazer as coisas porque devem ser feitas, de praticar uma religião meio “asséptica”.  Tudo, na vida cristã, precisa ter fortes marcas do Evangelho, da Boa Nova que é o Ressuscitado no meio dos homens.  Sem pieguice precisamos, efetivamente, de famílias que tenham como ponto de honra viver no Evangelho.

5. Os cuidados pastorais da Igreja haverão de acompanhar os que receberam o sacramento do matrimônio. Não se concebe um casal cristão que  nunca venha a receber orientações e cuidados pastorais. Não se trata apenas de reuniões ditas de casais com algumas orações e leituras, mas se deve pensar em grupos sólidos que se reúnam regularmente, que cresçam com fiéis leigos casados, que se ajudem mutuamente, que possam constituir um palanque de evangelização das famílias.  Os Movimentos Familiares podem ser de valia se não caírem na tentação do isolamento e fechamento. A família cresce na Igreja de todos. Três grandes eixos:  a construção e constituição do casal, a educação dos filhos e  a ação na sociedade.  Precisamos  deixar de uma vez para sempre o familismo, essa mentalidade de  famílias fechadas e satisfeitas com seu pequeno mundo.

6. Numa linha preventiva, a Igreja espera que os jovens possam refletir e aprofundar o tema do amor, do casamento, dos engajamentos. Há todo um cuidado pastoral a ser inventado para tocar os jovens que buscam os grupos ou que são “catecúmeno dos sacramento da confirmação”.

7. Estamos presenciando uma situação concreta de fragilidade do vínculo conjugal que se concretiza em separações e recasamentos. Parece importante que a Pastoral Familiar venha a instaurar um atendimento a casais que estão com intenção de se separar. Momentos duros, de perplexidade, de hesitação.  A Igreja não pode estar longe daqueles que se uniram no Senhor e que, por diferentes circunstâncias, estão pensando em separação. Para ninguém o fim do casamento é bom.  As riquezas do outro podem ainda vir à tona. Há mistérios que ainda não foram revelados e os filhos precisam da beleza da perseverança dos pais. Quem se ocupa hoje desses que vivem crises?  Fala-se de construir uma “pastoral da separação”. Tem esta alguma viabilidade?

8. O texto da Conferência Episcopal  Francesa baseado em pesquisa feita sobre a família  ao qual já fizemos alusão acima,  constata que os entrevistados afirmam que a Igreja pode e deve fazer seu discurso a respeito do amor  somente na medida  em que souber se fazer próxima dos que sofrem. Pedem os entrevistados que a Igreja crie espaços onde as pessoas possam depor seus fardos. A vida em geral pode ser muito dura, mormente para os casados e as famílias  e  muitas dificuldades vão se acumulando.

9. O isolamento de muitas famílias faz com que muitos não saibam a quem recorrer nos momentos em que se acham perdidos.  Nesses momentos as pessoas, normalmente falando não se dirigem à Igreja. Ora, deseja-se que nestas horas a Igreja se faça presente na sociedade  junto com os que sofrem, não somente de sofrimento material. Uma das novas formas de pobreza que chama atenção dos cristãos é a falta  de relacionamentos. Muitos sentem-se mais ou menos excluídos da comunidade eclesial, de modo especial os que vivem situações conjugais irregulares. E essa dor de relacionamentos precários está presente também no seio de casais que estão perto de nós.

10. Em que sentido a Igreja deverá se fazer presente na precariedade dos relacionamentos?  Há necessidade de que marido e mulher visitem seu interior, sejam pessoas maduras, não estejam juntos por uma mera “obrigação”  ou “fatalidade”. Precisam, ao longo do tempo, cavar uma dimensão de interioridade humana e cristã. Devem cultivar a cortesia, o respeito, a atenção, a capacidade de auscultar o outro. Devem poder trocar ideias sobre os grandes temas do mundo e da família: fragilidade do vínculo, uniões homossexuais, educação dos filhos, acolhimento dos mais “sofridos” das famílias. Quando casais de boa vontade se reúnem com outros casais e possível que os relacionamentos se solidifiquem. Essa restauração dos relacionamentos deve poder levar ao casal e a família experimentarem sede de espiritualidade.

11. Papel importante da família é o da educação para a liberdade, ou seja, colocar condições que seus filhos saibam o que estão querendo e fazendo. O mundo se pluralizou. Ninguém recebe um envelope com a senha para o sucesso da vida.  Não há papéis pré-determinados. Estamos num tempo de grito pela liberdade.  No caso do casamento e da família não se trata de fazer escolhas  frágeis e precárias. Saber escolher bem. Os que se casam escolhem as pessoas, fazem juntos um ramalhete de convicções para a construção do casamento. Escolhem o número de filhos e o jeito como haverão de conciliar trabalho e presença afetiva e efetiva na vida dos filhos. Sempre escolhendo. Os rapazes e moças haverão de saber escolher seus amigos de verdade aos quais abrem o coração. Não poderão se deixar levar pelos caprichos, impulsos, modismos, mentalidade consumística,  desejo de poder, evasões do álcool e da droga.  Escolher se tornou alguma coisa vertiginosa.

12. Citamos novamente o documento do Serviço da Família da conferencia francesa: “A liberdade de escolha numa sociedade pluralista e mercantil, tem algo de vertiginoso em nossos dias.  Ela só é verdadeira quando as pessoas dispõem de condições de discernimento.  A questão da contribuição que se deve prestar às famílias passa  pela educação para a liberdade.  A fragilidade das famílias é  espelho que reflete a dificuldade que tem a sociedade de gerir a nova liberdade conquistada.”  Cabe à Igreja e nela às famílias realizar o sonho de uma harmoniosa vida de família que implica, antes de tudo,  na escolha bem feita e que os jovens não podem fazer sozinhos.  “Alimentar esta escolha exige que a Igreja adapte sua pastoral familiar às novas necessidades. Houve tempos em que bastava recordar o ideal do matrimônio e o caminho a ser seguido estava de antemão traçado. Diante da pluralidade de escolhas de nossos dias, o ideal será lembrado e  explicado, mas necessário descobrir e traçar caminhos novos, acompanhar os caminhos caóticos, oferecer espaços de discernimento para todas as idades. Sempre uma particular atenção para os que, em razão da pobreza material ou relacional pensam não haver nenhuma escolha e nenhuma liberdade”.

NB.:  Nossa intenção não foi a de esgotar ao assunto.  Muitos outros campos precisam ser assumidos pela Igreja e pela sua  Pastoral Familiar que está sempre começando e sendo questionada pela pluralidade de escolhas de nossos tempos.

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

Os Carceri

 

Francisco é, para muitos de nós, mais de que uma lembrança do passado. É alguém cujo espírito palpita junto com nossos corações desejosos de viver a vida segundo o Evangelho. Nesta rubrica de nosso Tirando do Baú… vamos  dar a voz a Julien Green que escreveu uma inteligente biografia do santo (São Francisco de Assis, Livr. Francisco Alves, Rio, 1988). O texto descreve o eremitério dos  Carceri. Esta descrição  permite ao autor e a nós abordar e refletir sobre essa tensão que precisa existir na alma franciscana:  contemplação e ação.

 

“Um pouco mais tarde, no verão,  Francisco recebeu ainda uma doação de seus amigos beneditinos. Eles lhe ofereceram os  Carceri (as prisões), essas cavernas, onde nos primeiros tempos de sua conversão Francisco tinha vindo procurar a solidão, protegido por seu misterioso amigo. Eram covas de grande verdor escondidas  nos bosques, nos flancos onde o silêncio só era perturbado pelo barulho de uma torrente. Bernardo e Silvestre foram os primeiros contemplativos franciscanos a se refugiar nessas prisões a partir dos quais a alma se evadia. Depois os irmãos construíram ali um pequeno eremitério.

Desde o começo houve duas correntes distintas de espiritualidade  franciscana: vida ativa e vida contemplativa. A vida ativa se situava entre as obras de apostolado, a pregação, é claro, a caridade sob todas as suas formas: trazer de volta uma população propensa frequentemente a  voltar ao paganismo e socorrer os infelizes.

A vida contemplativa é quase impossível de se resumir em algumas frases. Que se pense nas inúmeras obras que tratam desse assunto. Sem risco de perder-se em explicações confusas, pode-se pelo menos propor isto: a contemplação pede que o ser se deixe a si mesmo para dar lugar a Deus e ser para Ele. Tanto quanto possamos nos dar conta disso, não se trata somente de abandonar um gênero de vida que cria obstáculo à vida interior, mas na solidão e no silêncio, separar-se das preocupações do mundo, afastar a lembrança daquilo que o século XVII chamaria de “divertissement” sob todas as suas formas, tudo o que os olhos podem ver, os ouvidos escutar, tudo o que os sentidos podem experimentar. Isso não passa de um começo: obter o silêncio interior absoluto, fazer calar o tumulto de nossos pensamentos, expulsar  todas as nossas ideias, sobretudo aquelas que formamos de Deus que são quase invariavelmente falsas. Nessa nudez do espírito, a alma fiel terá as melhores oportunidades de ir em direção Àquele que a criou. Para tanto haverá de se  partir da humanidade de Cristo para se elevar até o mistério da Trindade…

Das alturas do Subásio,  por escapadelas ao meio dos pinheiros e faias, contemplar toda a planície e, mais alto ainda, acima da floresta escura o monte exibe seu crâneo tonsurado. Compreendemos melhor o que procuravam homens como Silvestre e Bernardo em suas cavernas onde os barulhos do mundo não chegavam: “Olhem lá meus cavaleiros da Távola Redonda”, dizia  Francisco,  “os irmãos que se escondem nos lugares desertos para se entregar com mais fervor à meditação… Sua santidade era conhecida  de Deus, mas frequentemente ignorada pelos irmãos e homens.  E quando suas almas forem apresentadas pelos  Anjos ao Senhor, o Senhor lhes revelará a recompensa de suas penas, a multidão de almas salvas por suas preces. E ele lhes dirá: ‘Meus filhos, vejam as almas salvas pelas preces de vocês; já que vocês foram fiéis nas pequenas coisas. Eu vos confiarei as grandes’”.  É a linguagem dos grandes místicos. Quanto ao próprio Francisco, ele mesmo mergulhava  à noite naquele abismo da procura de Deus e, de dia, participava da vida de sua comunidade, mas tinha as graças particulares e  indispensáveis para pratica um e outro modos de vida”.