Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Abril 2017

ABRIL 2017

Mais uma vez  temos diante de nossos olhos um grande baú! Baú de coisas velhas e coisas novas.  Aí estão preciosos tesouros.  Alguns são muito antigos.  Exalam o perfume da sabedoria. Há outras pérolas mais recentes que foram ali colocadas há pouco tempo.  O presente número de nossa Revista Eletrônica está fortemente marcado pelo espírito da Semana Santa.  De modo especial vamos acompanhar os passos de Jesus e os nossos passos nesta  Semana das Semanas.

Boas festas de Páscoa a todos.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

I. PARA COMEÇO DE CONVERSA

Os passos da Semana Santa

 

Não celebramos a Páscoa apenas no dia da Ressurreição, nem mesmo nos três dias do Tríduo Pascal, mas durante uma semana inteira, uma semana santificada. Vai da celebração dos Ramos ao domingo dos domingos que é a Páscoa. Sete dias da nova criação que são colocados ao lado dos sete dias criação. O mistério da Páscoa do Senhor é a recriação do homem, bem como do universo.  A Ressurreição nos conduz àquilo que a tradição chamou de oitavo dia, Dia do Senhor, o  Dia que rompe o ciclo do tempo aqui e abre para a realidade da eternidade. Os cristãos ortodoxos denominam estes dias de a “Grande Semana”.

Ramos: entre a glória e o abaixamento

A procissão dos Ramos inaugura a Semana Santa lembrando a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, que é seguida da leitura da Paixão. Glória e abaixamento estarão presentes em todos os dias de Grande Semana. O paradoxo é a própria língua do mistério.  A procissão é como o sinal sacramental da Páscoa, que é travessia, caminho, êxodo.  Entra-se na igreja com as palmas, como na sexta-feira se entrará com a cruz e na vigília do sábado com o círio pascal.  A procissão de Ramos fala da coragem da partida, da esperança de uma terra e de uma humanidade nova. A alegria da procissão, dos cantos, das folhagens entra em confronto com o tema do sofrimento do Senhor.

Segunda-feira Santa

João descreve uma cena que se passa em Betânia. Seis dias antes da Páscoa Jesus se encontra em casa de Marta, Maria e Lázaro. Participa de uma refeição com outros convidados. O Mestre, na hora do aperto no coração, está entre amigos. Maria toma uma libra de perfume de nardo e lava os pés de Jesus, enxugando-os com seus cabelos. Judas discorda. Vale a pena prestar atenção na palavra de Jesus: “Deixai-a, ela fez isso em vista da minha sepultura. Pobres sempre os tereis convosco, enquanto a mim nem sempre tereis”.  Há um gasto perfeitamente lícito. O culto ao Senhor não fez com avareza de qualquer sorte.

Terça-feira Santa

Novamente o evangelista João diz que Jesus, à mesa, está profundamente comovido. Alguém há de entregá-lo. Quando um estranho nos faz mal chegamos quase a compreender. O que haveria de trair a  Jesus era um discípulo, estava ali, aquele que comia um pedaço de pão mergulhado no vinho. Judas sai.  Era noite. Hora das trevas. A hora de  Jesus estava chegando. Hora de sua glorificação. Pedro, por sua vez, adianta-se e fala de sua vontade de fidelidade e de dar a vida pelo Mestre.  “O galo não cantará antes que me tenhas negado três vezes”. Poucas horas depois, no pátio do governador, ele haveria de negar o Mestre. Depois da covarde negação, Pedro sai para fora e era noite.  Estava, de fato, se avizinhando a hora das trevas.

Quarta-feira Santa

Judas acerta com os sumo-sacerdotes que trinta moedas de prata   constituíam uma soma para que lhes entregasse Jesus. Jesus de valor infinito é trocado por um punhado de moedas.

Estamos diante do mistério de Judas. Acautelemo-nos em julgá-lo. Quantas vezes nós mesmos negamos a Jesus por covardia, falta de empenho e de generosidade.

Judas e Jesus se encontram num face a face no final da caminhada.  Não se trata de um “determinismo”. Judas agiu com liberdade. “A liberdade é um dom, mas o seu reto uso é uma conquista, é fruto da correspondência à graça divina.  Nada é mais arriscado do que acostumar-se com a graça: pode vir a ser irreparável. É possível até acostumar-se com a Eucaristia. A Semana Santa é a mais trágica celebração da liberdade humana em seu mistério mais profundo, no livre e irrevogável não de Judas  e no livre e irrevogável  sim de Cristo à vontade do Pai” (Missal Cotidiano  da Assembleia Cristã, Paulus, p.327).

Quinta-feira Santa – O banquete do amor

Na quinta-feira Santa, celebramos a última ceia, a última refeição de Jesus. A refeição pascal, judaica, familiar e festiva era o memorial da libertação do Egito. Comia-se ritualmente o cordeiro pascal  como naquela noite, outrora, em que Deus havia tirado os hebreus das mãos do faraó.   Jesus faz o memorial de sua morte e de sua ressurreição, a Páscoa nova na qual a salvação é oferecida a todos. O Cordeiro da Páscoa é ele. Esta refeição é o banquete anunciado pelos profetas, as núpcias de Deus com seu povo.

Nesse dia festivo, canta-se o Glória que havíamos deixado de lado desde o começo da Quaresma, acompanhado do alegre tilintar dos sinos  que depois vão se calar até a Vigília Pascal,  quando haver-se-á de cantar a glória do céu e paz na terra aos homens por ele amados.

Nesta quinta-feira somos convidados a refazer o que Jesus pediu aos apóstolos, naquela ocasião: “Cuidai de fazer todos os preparativos necessários  para nossa refeição pascal”. O Cristo, hoje, não pode se fazer presente entre nós a não ser se uma assembleia  o deseja e lhe prepara a vinda.

A quinta-feira é também o dia do lava-pés. Trata-se de um dos gestos mais fortes que revela a pessoa de Jesus.  Somos convidados a  viver a alegria e a partilha. Tal se dará somente na medida em que tivermos gravada dentro de nós a cena do lava-pés.  Trata-se do anúncio da cruz.

A cerimônia termina com uma procissão festiva para fora do templo  com o pão eucarístico que será colocado à mesa no dia seguinte. Na sexta-feira de manhã, a igreja que, na véspera, estava toda enfeitada  como uma sala de núpcias, agora tem quase a frieza de um túmulo!

Sexta-feira Santa – A cruz que dá vida

A grande celebração da Cruz do começo da tarde nos faz ouvir, uma vez mais, a Paixão segundo João. Momento de contemplação densa e de tocante desejo de silêncio. Depois faz-se a oração da comunidade.  Desfilam as grandes intenções. É  Cristo que reza por nossas bocas.

Em seguida uma cruz é introduzida no espaço celebrativo  acompanhada por ceroferários. Aos poucos o celebrante descobre o corpo do Crucificado e realiza-se a veneração do santo lenho do qual pendeu a salvação do mundo. Através de todos os ritos é nosso ser, são nossas lágrimas, nossas alegrias que são transformadas. Comungamos, em seguida, o pão eucarístico consagrado na véspera. Nesse dia não se celebra a Eucaristia. Trata-se de um sinal forte da unidade do acontecimento pascal  celebrado em três dias:  Jesus se dá na última ceia;  acontece o dom  em sua morte na cruz, no dia seguinte, é expressão desse dom e na noite da Ressurreição. Sua vida vitoriosa é dada. Cada vez que nos alimentamos do pão consagrado  comungamos o  Cristo servidor, o Cristo crucificado e o Cristo ressuscitado.

Sábado Santo – O “shabat” de Cristo

No sétimo dia, o Senhor descansou de toda  sua obra, como lemos no livro do  Gênesis. Os Padres da Igreja interpretaram o Sábado Santo  como  o ‘shabat’ de Cristo depois de sua obra de recriação do homem pela Cruz. Como Deus depois da criação havia descansado no sétimo dia, da mesma  forma Jesus chega ao repouso depois da obra da nova criação, da obra da salvação. A ausência de liturgia eucarística daria como que uma forma de sacramento a este vazio. Como se a ausência, o vazio, pertencesse à profundidade da fé. Sabemos que todo relacionamento de amor que não assume a provação do vazio e da ausência vive num voltar-se para um espelho, para a ilusão e a posse. A Igreja, no sábado, faz a vigília na oração.

Vigilia pascal – A noite da iluminação

A celebração da Ressurreição de Cristo começa na noite  através de uma grande festa da luz. Os fiéis se reúnem na parte exterior do templo, na escuridão. Nos lugares onde há batismos os catecúmenos ocupam lugar de destaque ao lado dos fiéis. Vão ser “iniciados” e “iluminados”, integrados à comunhão dos discípulos ao receberem os sacramentos, o primeiro deles sendo o batismo.

Acende-se a fogueira. Primitivamente o fogo era aceso com faíscas obtidas pela fricção entre duas pedras. A chama brota da pedra do túmulo. A chama é grande, capaz de devorar e iluminar a noite. Ela é símbolo da vida nova que  a morte não pode apagar.

Perto está o grande círio, marcado com os sinais de Cristo: a cruz, as letras alfa e ômega, os algarismos do ano em curso. No Apocalipse, o Cristo é designado de Alfa e Ômega, o princípio e o fim.  Aos poucos todo o templo é iluminado com dezenas de velas acesas.  Noite de luz! A noite será mais clara que o dia.

São João Crisóstomo: “Vós que buscais a Deus e que amais o Senhor  vinde degustar a beleza e a luz desta festa. Ricos e pobres, vivei na mesma alegria. Fostes diligentes ou preguiçosos? Celebrai este Dia! Vós que  jejuaste e vós que  não jejuastes, hoje alegrai-vos. A mesa do banquete de festa está posta: degustai todos, sem reticência alguma!”

O canto do Exulte enche o templo. Que dos céus desçam os anjos triunfantes, que soem as trombetas. Alegre-se a terra, alegre-se a Mãe Igreja. Que Deus escute o Aleluia cantado por todo o povo.

A  liturgia da Palavra desenvolve os principais temas da Páscoa.  Ela é recriação, libertação, soerguimento dos mortos. O conjunto de leituras, cânticos e responsórios constituem uma catequese da fé pascal. Durante um bom espaço de tempo, sem pressa, são proclamadas as maravilhas que o Senhor foi operando na história: criação, vocação de Abraão,  travessia do Mar Vermelho,  o Deus esposo de Isaías,  caminhada  rumo ao esplendor do Senhor na pena de Baruc, o tema das águas puras e do coração novo e assim se chega ao portal do Novo Testamento.  Uma vigília que já consiste numa festa…

A terceira parte da Vigília é a liturgia batismal, tão consentânea com a festa. Na Igreja antiga era nessa grande noite da Páscoa que se realizava a iniciação aos mistérios cristãos: o batismo, a crismação pelo bispo – nossa confirmação – e o acesso à mesa eucarística. Em nossos dias, mesmo quando não há batizados, há a bênção da água e da aspersão.

No final de tudo  acontece a liturgia eucarística da noite de Páscoa.

Nota:
Texto de apoio:
Initiation  au mystère de Pâques
Revista Panorama (França)  abril de 2004

II. LEITURA ESPIRITUAL

Sacrifício da cruz: Sexta-feira do amor sem limites

 

Felizes aqueles que podem viver intensa e profundamente a liturgia da sexta-feira da paixão e morte do Senhor. Conseguem louvar o  Altíssimo,  ficam pasmos diante de tanta dor e de tanto amor da parte de Jesus e mostram gratidão ao protagonizou tanta dor e tanto amor.   Felizes aqueles que se associam à morte daquele grão de trigo, dos que vivem depois da morte do grão.

Na sexta-feira das dores ressoam aos nossos ouvidos muitas palavras da Escritura.

“Ei-lo, meu servo será bem-sucedido: sua ascensão será ao mais alto grau. Assim como muitos ficaram pasmados ao vê-lo – tão desfigurado ele estava, que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano (…). Não tinha beleza nem atrativo para o olharmos, não tinha aparência que nos agradasse. Era desprezado como o último dos mortais, homem coberto de dores, cheio de sofrimentos; passando por ele tapávamos o rosto, tão desprezível era, não fazíamos caso dele. (…). Foi maltratado e submeteu-se; não abriu a boca;  como cordeiro levado ao matadouro, como ovelha diante dos que a tosquiam, ele não abriu a boca” (Isaías 52,13-14;3-53,3,7).

Deus amou tanto o mundo que lhe deu seu Filho único para que todo o que nele creia tenha a vida eterna” (João 3,26).

“Não há maior amor do que dar a vida pelos amigos” (João 15,3).

“O Pai me enviou para que não se perca nenhum daqueles que me confiou” (João 6,39).

“Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu. Mas na consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (Hebreus 5, 8-9).

A hora da entrega

Para além da torrente do Cedron, aquele jardim cheio de oliveiras!  Getsêmani: dor e solidão. Os três apóstolos deixam-no só. Não vigiam com ele. Ele aconselha veementemente que vigiem e orem… E chegam aqueles que deviam prendê-lo. Jesus avança: “A quem procurais?”  Pois este sou eu.  Esse “sou eu” lembra a sarça ardente quando Deus se revela como aquele que é  “eu sou”.  Começa o jogo de entrega.  Judas entrega Jesus ao sumo sacerdote, depois a Pilatos, em seguida a Herodes e de volta a Pilatos.  Pilatos o entrega à morte e ele se entrega a Deus, entrega de amor para que surjam as sementes de um mundo a ser construído por todos os que morrem com ele e com ressuscitam.  Nós, carregamos em vasos frágeis essas sementes para que o mundo se renove…

O tema da hora

No momento em que os noivos de Caná  não tinham mais vinho e que pediam milagres,  Jesus afirmara que sua hora, a hora da manifestação, ainda não tinha chegado. Naquele momento, agora no momento da prisão, chegara a hora. Hora do poder das trevas, mas também hora  da exaltação, de atrair tudo a si, hora do dom, hora de contemplar do alto da cruz os confins da terra, através dos tempos.  A hora das horas.

O tema da solidão

Verdade que, ao pé da cruz, estava a Mãe do condenado e algumas mulheres. Mas aquele momento era de intensíssima solidão. Em Getsêmani os apóstolos dormiam, ao pé da cruz se dispensaram. Sozinho, falsamente acusado, mas sem defesa.  Judas o traira e Pedro o negara.  Um homem de solidão. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

“Durante o julgamento a Sabedoria se cala e a Palavra nada diz. Seus inimigos o desprezam e o pregam na cruz. Imediatamente as forças da  natureza são sacudidas, foge o dia e noite avança. Vestem-no de trajes ridículos e ele é crucificado entre dois ladrões. Aqueles aos quais ele havia dado na véspera seu corpo em alimento o observam de longe. Pedro, o primeiro dos apóstolos é o primeiro a fugir. André foge também. O próprio João que havia reclinado a cabeça em seu peito não é capaz de impedir que o soldado abra o seu lado com a lança. Os doze se vão. Foram incapazes de dizer uma palavra em seu favor, ele que lhes dava a vida.  Lázaro  a quem havia restituído a vida  não se faz presente, o cego não chorou a morte daquele que lhe havia restituído a vida. O coxo que tinha podido andar com o gesto de Jesus não correu atrás dele.  Somente um bandido com ele crucificado, ali ao seu lado,  o confessa e o designa de rei para escândalo  dos judeus. Ó ladrão,  flor precoce da árvore da cruz, primeiro fruto do madeiro do Gólgota” (Santo Efrem).

O tema do lado aberto

Não convinha que os corpos ficassem expostos nas cruzes porque no dia seguinte ocorria a grande solenidade. Os soldados quebraram as pernas dos  ladrões. Como Jesus estivesse morto tocaram seu lado com a lança. O peito aberto, o lado aberto, o coração exposto. Os mistérios do coração. Água e sangue, fonte dos sacramentos, ninho dos aflitos e desesperados, abrigo para os caminhantes, momento do nascimento da Igreja que é gerada pela água e sangue do Crucificado e do Ressuscitado.

 

III. RESGATE HISTÓRICO

A Vigília Pascal na Basílica de São João do Latrão

 

Em tempos idos, é claro.  Eis uma página histórica. Apoiados em Robert Amiet, Introduction au Mystère Pascal, (La Maison  Dieu, 217, 1999/1, p. 143-156), apresentamos os ritos da noite santa, noite dos sacramentos da iniciação  cristã  na rutilante basílica romana.

Sabbato sancto in nocte sancta. Statio ada Lateranensis.  É com este título que se abre, nos antigos livros chamados “sacramentários”, a  maravilhosa liturgia da Vigília Pascal. Desenrolava-se no quadro suntuoso da Basílica de São João do Latrão, a catedral de Roma e no maravilhoso batistério de Constantino. Era o momento mais sublime da liturgia de todo o ano. Ao evocar hoje esses esplendores do passado continuamos a vibrar intensamente e nos sentimos próximos, em imensa comunhão com os novos cristãos que, naquela mesma noite, a noite mais santa do ano, a noite aniversário da ressurreição do Senhor, participavam dos três sacramentos  que haveriam de os agregar  para sempre à pessoa humano-divina do Cristo Salvador e tornando-os divinae consortes naturae, acolhendo-os fraternalmente na Santa Igreja e na luz do Espírito Santo.

Pode-se muito bem imaginar  a basílica completamente iluminada  com incontável número de candelabros, Uma multidão enorme se acotovelava na nave, desejosa de reviver esses momentos privilegiados de suas vidas.  Os “eleitos” reagrupados juntos viviam a doce e ardente expectativa desses  momentos supremos  em que iriam tornar-se,  em toda a verdade,   filhos de seu  Criador, irmãos de Cristo, seu salvador e templos do  Espírito Santo, seu santificador.

No momento preciso organizava-se solene procissão, para descer ao batistério, iluminado como se fosse dia. Com o canto do Sicut  cervus desiderant ad fontes aquarum (Sl 41), os “eleitos” avançavam lentamente, seguidos dos diáconos e presbíteros  que iriam batiza-los.  O próprio Papa  fechava o cortejo, precedido de dois acólitos levando candelabros majestosos, staturam hominis habentes.  Tratava-se de espetáculo feérico e inaudito.

No centro do batistério estava a piscina octogonal. Do meio da água erguia-se  um grande candelabro de porfírio  terminando por uma cuba de ouro, cheia de bálsamo, onde ardia uma mecha de amianto  espargindo, ao mesmo tempo,  luz e perfume.  Nas partes laterais da piscina estavam duas estátuas  de prata, Cristo e São João Batista, tendo entre ambos um cordeiro de ouro  com o dístico: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Sob o cordeiro um jato de água se derramava sobre a piscina.  Também jorravam água sete cabeças de cervos.

Aproximando-se da piscina, o pontífice elevava a voz para proclamar a belíssima fórmula de bênção  sobre as águas,  comportando  uma epíclese  pedindo a descida do Espírito Santo. Terminada esta longa oração, o Papa batizava alguns dos “eleitos”, confiando aos presbíteros e diáconos os outros batizados. O Pontífice, então, se retirava para um oratório adjacente para administrar o  sacramento da confirmação.  Cada “eleito”  entrava na piscina onde uma tríplice profissão de fé trinitária  correspondia a uma tríplice imersão, configurando-o para sempre ao Cristo morto e ressuscitado. Saindo da piscina, o “neófito”, que dizer, a  “nova planta” no jardim da Igreja, recebia incontinenti  uma unção no alto da cabeça  com o óleo perfumado do santo crisma, unção que nada mais era do que a materialização do epíclese, referida acima.  O que tinha sido batizado era revestido de uma veste branca, a alva e era apresentado ao  Papa que o marcava, desta vez, na fronte, no alto da testa, com uma nova  unção  do santo crisma, a confirmação, e associando de maneira definitiva  o novo cristão “à raça escolhida, sacerdócio real, nação santa e ao povo adquirido” de que fala São  Pedro  (1Pe 2,9).

Terminadas as cerimônias do batismo e da confirmação, o longo cortejo dos felizes “neófitos”, todos vestidos de branco, subia então batistério rumo à basílica ao canto triunfante da ladainha de todos os santos  e esses  “neófitos”, respirando alegria, se reuniam em torno  Papa  formando esplêndida coroa de  brilhante brancura. O canto do Gloria in excelsis Deo que não se ouvia há muitas semanas, soava com força e frescor renovados e, pela primeira vez em suas vidas, as jovens plantas, literalmente tomadas de alegria, eram convidados a subir à “sala do alto”, sala da ceia  para aí serem admitidas ao banquete  fraterno do pão e do vinho da eucaristia juntamente com a  grande comunidade  dos fiéis.   Desnecessário dizer que toda essa vivência ficava para sempre gravada no coração de  todos.

 

IV. CRÔNICA

Maria, a quem andas procurando?

 

Mulher, por que choras?  (Jo  20,15)

 

O nome daquela mulher, era Maria,  nome comum a tantas mulheres.  A  mãe do Senhor também se chamava Maria, Maria de Nazaré. A mulher que chorava diante do sepulcro era Maria, Maria de Magdala, Maria Madalena.

Tinha se levantado muito cedo e levava perfumes ao túmulo daquele homem que havia transformado sua vida.
E ninguém perto  do túmulo e o túmulo vazio.
Agora, sozinha, corria de um lado para o outro feito doida, porque o corpo de seu Amado havia desaparecido.

“Maria, por que procuras entre os mortos, aquele que vive, aquele que é o Vivo?
Ele passou por entre nós, no meio de nós, veio viver nossa aventura humana.
Morou em  Nazaré, sentou-se à mesa com uns e outros, aqui e ali.
Comeu tâmaras e damascos, foi a festas de casamento, rezou no templo, andou de barca no Mar da Galileia, tocou o coração dos pequenos, marcou para sempre muitas vidas.

Tu sabes  tudo isso, porque ele  tocou profundamente teu coração.
Mas, escuta, por que procuras entre os mortos aquele que vive?
Ele não pertence ao mundo da morte.
O Pai  o arrancou das trevas.
Tu o encontrarás no rosto dos mais desvalidos da terra,
na palavra que, no seio da Igreja ele continua  proclamando.
Haverás de encontra-lo  como pão branco
e vinho rubro e generoso sobre a toalha branca.

Mas por que choras, Maria?
Teu Mestre vive nos convoca para seu seguimento.
Quem quiser ser seu discípulo que  renuncie a si mesmo e o siga.

“Sim, vi o túmulo  vazio,
o sepulcro abandonado,
os anjos cor de sol,
dobrado ao chão o lençol!”

Maria, ele ressuscitou!
Por que choras, Maria?

V. RETALHOS

Mistérios do silêncio

 

Ah! esses silêncios todos, silêncios misteriosos e cheios de ternura, silêncios angustiantes e sufocantes.  Quantos e quão belos!  Quantos  e quão terríveis!  Quantos silêncios absolutamente necessários. Há o silêncio do Sábado  Santo e tantos outros.

 

“Que está acontecendo hoje? Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão. Grande silêncio porque o rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o  Deus  feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou  na mansão dos mortos” (De uma antiga homilia do grande Sábado Santo).

Não dá mais para viver na superficialidade das coisas. Chegou a hora de reencontrar o caminho do interior, do silêncio eloquente. Andar lentamente, caminhar, olhos abertos, deixar a beleza tomar conta de nós: beleza de um salmo recitado lentamente, beleza de uma música que vai ao fundo, beleza de horas de silêncio. Não suportamos mais gritos e berros, baterias e atabaques, zoada descontrolada e barulheira ensurdecedora.  Barulho de nosso ego, desse mundo “ruidoso” que inventamos. Temos saudade de ouvir o suave deslizar do regato sobre as pedras do ribeiro, de ouvir a brisa que baloiça as roseiras e beija as azaleias cor de maravilha ou champanhe. Está na hora de ouvir um certo murmúrio dentro nós. Seria o farfalhar do Espírito?

“Tenta reencontrar o caminho do interior, até o centro do coração, ali onde o homem é despertado para si, desperta para Deus” ( Henri Le  Saux).

Lá está no canto da sala a senhora dos cabelos brancos, olhos azuis, na penumbra, quieta, profundamente quieta, pensando na vida toda que viveu, agradecendo a presença do Senhor no mistério daquele silêncio de fim de tarde. Uma suave presença. Uma mulher habitada. Ela encontrou o caminho do seu interior.

Elas deslizam pelos corredores do mosteiro. Agora ouviram o sino chamando para a oração. las, essas contemplativas, levantaram às 5 horas da madrugada. Agora, cedinho ainda, caminham pelos corredores do mosteiro na manhã fria. Entram na capela, prostram-se diante do Santíssimo. Balbuciam meia dúzia de jaculatórias que partem de seu coração virginal. O máximo de ruído que se escuta é o crepitar da vela acesa para queimar durante a recitação de Laudes. As portas dos corações das religiosas estão abertas para acolher aquele que  chega e fala no silêncio. E cantam o hino, e cantam os salmos, prorrompem os aleluias e tudo cadenciado com momentos de silêncio.  Fala a letra do salmo, mas fala também o asterisco da pausa.  Lá fora, na rua que passa em frente ao mosteiro, começam a circular coletivos e pedestres e os sons se acentuam. Dentro há ainda atmosfera de silêncio. Há, antes de tudo, o silêncio do esvaziamento. A religiosa que deixa a capela, depois das Laudes e da Missa é pessoa vestida de silêncio, grávida do Deus  que fala no silêncio.

“Conquista a paz interior e milhares à tua volta serão salvos (São Serafim de Sarov).

O encontro do homem com Deus conjuga duas realidades que são vistas em forma de tensão na experiência humana:   palavra e silêncio.  Romano Guardini:  “A palavra é uma das formas  fundamentais da vida humana.  A outra forma é o silêncio, que é um grande mistério. As duas realidades constituem uma só.  Falar significativamente só consegue aquele que também se cala. De outra forma o que acontece é um tagarelar. Calar significativamente só consegue aquele que sabe falar. Do contrário não passaria de um mudo.  Nesses dois mistérios vive o homem, ou seja, no calar e no falar. A essência do homem se assenta na união dos dois mistérios”.

Jean Guitton: “Há um silêncio que é o elemento primordial sobre o qual a palavra desliza e se move como um cisne na água. Para ouvir a palavra convém criar dentro de nós um lago sereno. Depois de ter ouvido, deixar que ondas concêntricas da palavra se propaguem, se atenuem e morram em silêncio. A palavra vem do silêncio e ao silêncio retorna”.

Não se chega à verdade por um acúmulo de noções, palavras, mas através do empenho de discernimento.  Nos escritos de  um Padre lemos: “Se amas a verdade, sê amante do silêncio.  Este fará com que resplandeças em  Deus  como o sol e te afastará  das ilusões da ignorância”  (Isaque de Nínive).

Uma voz feminina, Simone Weil:  “As criaturas falam  com sons.  A palavra de Deus é silêncio. A secreta  palavra do amor de Deus não pode ser outra coisa senão silêncio. Cristo é o silêncio de Deus. Não há árvore semelhante à árvore da cruz;  não há harmonia semelhante ao silêncio de Deus  (…). Quando o silêncio de Deus  penetra nossa alma faz-se um caminho  que vai até o silêncio que há em nós. Somente nesse momento temos em Deus nosso tesouro”.

Silêncio? “Solidão sonora”:  “Precisamos reaprender a ter gosto por nossa solidão sonora  da qual falava  São João da Cruz.  Não se há de fugir dela, mas buscá-la como lugar de colóquio essencial, da intimidade consigo mesmo e com Deus paradoxalmente ausente.  Abandonemos de uma vez  a ideia de solidão como abismo de morte. Necessário aprender novamente a estar para enraizar nossos relacionamentos, afetos e obras não  na emotividade superficial, na ânsia do protagonismo ou no afã do reconhecimento, mas na libertação  profunda e discreta do amor verdadeiro” ( Simon Pedro Arnold, OSB).