Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Abril 2012

ABRIL 2012

Redimensionando, redesenhando, revendo

 

Nos três primeiros  números de nossa Revista Eletrônica  deste ano de 2012 andamos refletindo sobre as fontes da vida espiritual. Queremos continuar esse labor  no próximo número, ocasião em que vamos abordar o tema da oração. Hoje interrompemos a série e propomos esparsas reflexões a respeito do tema da moda: redimensionar, refundar, redesenhar nosso projeto de vida cristã e de vida consagrada.  Vivemos um tempo de  transformações substanciais.

I. LEITURA ESPIRITUAL

Nosso projeto de vida cristã e consagrada

 

1. Dispensamo-nos de fazer  o status quaestionis  do tema. A vida é movimento. O perene evangelho de Jesus, o Filho bendito de Maria e Verbo Eterno feito carne,  o evangelho do Ressuscitado, o projeto da construção de um mundo de Deus, de um reino de justiça, amor, paz, confraternização, continua de pé.  Não precisa de refundação. O fundamento é firme. Esse sopro do Eterno que nos trouxe Jesus que tanto fascinou os corações retos, a começar com Francisco e Clara, continua agindo. Em nossas comunidades paroquiais e nos corredores de nossas casas há pessoas que exalam o perfume do Evangelho e, diante das quais, temos vontade de tirar as sandálias dos pés porque pisamos em terra santa. Há projetos cristãos e de vida consagrada extremamente bem-sucedidos.

2. Apesar de todos os esforços do Concilio do Vaticano II,  das iniciativas da Conferência Episcopal Latino-Americana com seus documentos pastorais, de todos os empenhos em se prestar atenção numa ação da Igreja mais libertadora e libertária, na criação de comunidades de base e de uma infinidade de círculos bíblicos e de grupos de oração, apesar da concretização de novas maneiras de sermos religiosos franciscanos no mundo, tanto em Gaspar quanto em Embariê,  no Convento da Penha ou Largo de São Francisco, apesar de todos os passos dados, por vezes pensamos estar em impasses. Sentimos que alguma coisa precisa ser redesenhada, reescrita, redimensionada.  Problema sério e seríssimo esse de prédios enormes de religiosos e de dioceses que estão ociosos, esperando novas finalidades, novo desenho.  O redesenhamento  é  penoso. É preciso cortar na própria carne. Para fazer um novo desenho, preciso ter uma outra inspiração. Talvez,  esses justos trabalhos de redimensionamento das atividades, urgentíssimos, serão nossos redimensionamentos interior.

3. A história da Igreja nos fala constantemente de renovações, de novas inspirações, de concretizações da ação do Espírito na história.  Somos hoje sensíveis a essa dimensão histórica da fé.  Nossas famílias religiosas, de modo especial os franciscanos,  nascemos num tempo de profundas transformações históricas.  Ao longo dos séculos, assistimos a reformas importantes em nossa Ordem. As mais das vezes elas tinham como finalidade: voltar ao primeiro amor, viver com limpidez a graça do carisma, acentuar a vida de oração, como a reforma alcantarina.  Os beneditinos se reformaram ou se redesenharam nos cistercienses de Bernardo de Claraval.  Esse irrequieto “monge branco” revolucionou a Ordem de Bento.  No seio das clarissas  há as urbanitas e as coletinas.  A impressão que se tem é que tudo, ao longo da história,  está exposto a uma efervescência e, consequentemente, a um redimensionamento.  Aqui e ali  alguns desses “redesenhadores” fracassaram.  Muitos acertaram.  Quase sempre os bem-sucedidos foram aqueles que voltaram à simplicidade, pobreza, singeleza, vigor, energia do Evangelho, que souberam sorver de novo o carisma primeiro.  Não há dúvida.  Não estaremos nós num tempo de busca de renovação, de restauração?  Como fazer?  Será que o Espirito está mesmo apontando nesta linha?  Como?

4. Num primeiro momento  parece fundamental não falar, mas escutar, tentar ouvir os outros, ler os acontecimentos, escutar, escutar, escutar. Precisamos sair da tagarelice, da fala pela fala.  Necessário se faz uma busca de equilíbrio entre  a escuta e a fala.  Nosso projeto de vida pessoal e franciscano só pode surgir  quando houver  entrelaçamento do silêncio e da palavra.  Nada de tolo mutismo, mas empenho de uma fala que brote do silêncio.  O Verbo vem do silêncio.  Giuseppe Betori, arcebispo de Florença, escreveu interessantíssima  Carta Pastoral sobre a Palavra e o Silêncio  (Il Regno – Documenti 11/2011).  O encontro do homem com Deus está na conjunção de duas realidades que existem em tensão: a palavra e o silêncio.  O arcebispo cita Guardini:  “A palavra é uma das formas  fundamentais da vida humana; a outra forma é o silêncio, também um grande mistério (…). As duas fazem uma única coisa.  Só pode falar significantemente aquele que pode também se calar: de outra forma acontecerá um mero tagarelar; cala significantemente aquele de sabe falar, do contrário é um mudo. O homem vive no mistério da escuta e da fala”. Um pensamento de  Jean Guitton: “Há um silêncio que é o elemento primordial sobre o qual a palavra desliza e se movimenta  como um cisne na água. Para ouvir com proveito uma palavra, necessário se faz criar em nós mesmos esse lago imóvel.  Depois de haver  ouvido, será preciso deixar que as ondas concêntricas da palavra se propaguem, se amorteçam e desapareçam no silêncio. A palavra brota do silêncio, e ao silêncio retorna”.  Nessa tentativa de fazermos mapas do redesenhamento será fundamental escutar, fazer silêncio. Escutar a Palavra, escutar as palavras com um ouvido virginal, na convicção que o Senhor ainda tem alguma coisa a nos dizer como Igreja, como Ordem, como Fraternidade. A obra não é nossa. O convite à refundação chega até nos com uma fala que se capta no silêncio: silêncio de nós mesmos, de nossos medos, de nossos interesses, de nossos projetos.  Mais se deveria dizer.  Estamos na conditio sine qua non  de uma reforma da pastoral, da vida das comunidades e da vida consagrada.  Não basta apenas mudar de endereço geográfico e da uma outra finalidade a um prédio. Há um novo que ainda não está desenhado.  Trocando em miúdos: volta ao silêncio que não seja orgulhoso mutismo, escuta do bate-estaca do mundo e das Palavras que são murmuradas ou gritadas pelo Espírito.  Assim, na paciência ativa de mais um certo tempo, esperamos poder saber o que o Senhor quer de nós e onde cortar em nossa própria carne.

5. Para que seja feito um redesenhamento das atividades e das metas espirituais de uma Ordem ou da Pastoral será de importância  fundamental o despojamento pessoal e comunitário. Nossas paróquias se tornam pouco significativas no mundo. Elas se esvaziaram.  Muitas congregações buscam o sentido de suas vidas e da vida de tantos idosos que perambulam pelos corredores das casas carregando o peso da idade. Deus e  a vida foram se encarregando de  fazer com que  fôssemos nos despojando do ter, do poder e do prestígio.  Os novos candidatos à vida religiosa saberão ingressar num universo de instabilidade e precariedade e haverão de viver a alegria desse despencar das coisas supérfluas. Duro esse exercício, mas necessário para que o redimensionamento possa se fazer de acordo com o Espírito, para que nossas Ordens e a Igreja sejam significativas.

6. Nessa tentativa de fechar casas, de abandonar atividades, de redescobrir caminhos novos será  preciso reaprender a sonhar juntos. Muitos progressos foram verificados na vivência fraterna, tanto na vida paroquial quanto em nossas comunidades de vida consagrada.  Como é belo ver a alegria do reencontro depois de missões, de tarefas feitas para fora… A restauração de fraternidades  a dimensões  humanas, o  caixa comum, os sonhos comuns,  comunidades feitas de homens ou mulheres ensopados do Espírito,  de gente disposta partilhar esperanças e projetos, riquezas e recursos na verdade.  Cantando os salmos, descascando batata com a irmã da cozinha, dando banho no doente  estamos juntos, juntos em casa, mas juntos também com  os de fora… Redimensionamos nossa vida pessoal e comunitária quando formos capazes de sonhar juntos, sem impor nossas propostas, que nem sempre são as melhores. Reformamos quando sonhamos juntos.  Na terra da violência se faz ouvir a canção dos irmãos.

7. Reaprendendo a amar  seremos capazes de refundar.  Sim, na cabeça passa essa vontade de reformar. Vontade sincera, que não pode ser abafada pela mesmice da rotina e pela pressa em buscar soluções que não vão até o fundo dos problemas. E o que conta é o bem-querer: esse carinho do pároco pelos que lhes foram confiados, essa atenção  dos assistentes espirituais por seus grupos, essa vontade de  apoiar iniciativas sociais no mundo grande e, ao mesmo  tempo, o desejo de esquentar uma sopinha para o doente e estar perto dele.  Na hora do redesenhamento termina o  tempo  do dou para receber de volta, dos amigos que cuidam dos amigos e  tudo se torna possível quando o coração não tiver medo de amar, de querer efetivamente que o irmão cresça para além de todos os esquemas  meio interesseiros. Quem perde ganha e quem ganha perde.

8. Os que redesenham e redimensionam  sempre se lembram do primeiro amor. Esse é um dado antropológico. Os que trabalham na refundação se lembram do tempo da fundação. Escutam sempre a  palavra do Apocalipse: a alerta de não deixarmos o primeiro amor, de sermos quentes e não mornos.  Não podemos deixar de pensar em Francisco e certas reflexões que fazia pensando nos primeiros tempos, isto sem saudosismo doentio. Já bem avançado em santidade  ele tinha vontade e de retornar ao começo: “Ardia em um desejo enorme de voltar à humildade do começo e seu amor era tão grande  e alegremente esperançoso que queria reduzir o seu corpo à servidão antiga (…) Não pensava que já tivesse conseguido dominar-se, mas firme e incansável na busca da renovação espiritual estava sempre pensando em começar” (1 Cel  103).

9. Para onde se dirigem nossos anseios mais profundos de religiosos franciscanos?  O que arde dentro de nós?  Onde poderemos ser mais úteis de verdade?  Sempre será sendo frades de verdade que melhor agiremos. O que pode ser deixado de lado? O que precisa ser agarrado?  “Somente uma forte interioridade pode ajudar a perseverar na luta contra a corrente. Para o homem atual, o problema crucial é saber se existe uma resposta absoluta e definitiva às expectativas históricas do homem, ou se, pelo contrário, é possível viver contentando-se com respostas parciais, provisórias em constante tensão. Alguns não conseguem suportar esta situação e desmoronam. Outros refugiam-se no fundamentalismo, que não possa da nostalgia de momentos fortes de sua história.  Outros avançam porque continuam guardar motivações ilusórias; outros ainda porque encontraram a Deus e  vivem a esperança teologal” (Carlo Morali).

Para encerrar

Um pensamento de  Éloi Leclerc

“O coração novo nunca é aquisição  definitiva. É uma realidade sempre nascente e sempre ameaçada.  O peso dos velhos hábitos, a pressão do grupo, não estão mortos.  Irresistivelmente, o homem procura reconstruir o seu paraíso perdido, voltar às antigas fronteiras, em cujo interior se sentia tão bem protegido. E até quem entrou na órbita espiritual da Presença pode ainda olhar para trás”  ( O Povo de Deus no meio da noite, p. 91).

Para onde sopram os ventos?

Frei Almir Ribeiro Guimarães

II. JANELA ABERTA

Ladainha de intercessão

 

A  primeira semana de abril é  a semana do ano mais importante da vida da Igreja. As cerimônias que vivemos são tocantes. Para ajudar nossa interiorização  apresento esta belíssimaLadainha de Intercessão que tem como o tema a noite e o dia, as trevas e a luz, preces próprias para a Sexta-feira Santa.

• Por toda a Igreja que te espera  como Esposo na noite deste mundo,  Senhor Jesus, pela  noite da paixão que tu sofreste por ela, nós te pedimos.

• Pelo teu povo, o Israel segundo a carne, que ouve a palavra na noite, aguardando a aurora do teu Reino, nós te pedimos.

• Pelas nações pagãs que buscam na noite,  às apalpadelas, nós te pedimos.

• Por todos os povos sobre os quais se abateram as ideologias totalitárias e a opressão da mentira, nós te pedimos.

• Pelos nossos irmãos que são perseguidos por causa de teu Nome e que se escondem à noite para rezar, por aqueles que são arrancados de suas casas durante a noite, pelos seus  perseguidores cegos pelo ódio e que não sabem o que fazem, nós te pedimos.

• Por todos aqueles que nos amam e que não sabemos amar, por nossos inimigos e por aqueles que nos querem mal, nós te pedimos.

• Pelos doentes, pelos que se acham nos hospitais e que passam a noite sofrendo, pelos que agonizam e morrem nesta noite, esses que não verão outro dia, nós te pedimos.

• Pelos angustiados que não conseguem dormir e cuja noite é interminável, pelos que são tentados a se suicidar subjugados pelo poder do Príncipe das Trevas, nós te pedimos.

• Pelas prostitutas cujo corpo é comprado na obscuridade  da noite, pelos que são presa do vício e da droga  nas trevas, nós te pedimos.

• Pelos ladrões, assassinos e criminosos  que agem mal com a cumplicidade da noite, nós te pedimos.

• Pelos que estão em prisão, pelos que são torturados e degradados no segredo da noite, pelos condenados à morte que esperam a noite de sua execução, nós te pedimos.

• Pelos pobres, sem abrigo que erram solitários durante a noite, na indiferença de todos, nós te pedimos.

• Pelos que, durante a noite, tentam buscar-te sem conseguir, pelos  idosos que sofrem e vão se apagando na noite de sua solidão, nós te pedimos.

• Pelas crianças na noite do seio de suas mães, pelas que não verão a luz do dia devido ao egoísmo dos homens, nós te pedimos.

• Pelos cegos cuja noite não tem fim, pelos doentes mentais na noite de sua loucura, nós te pedimos.

• Pelos que trabalham e se cansam à noite, pelos que viajam na insegurança da noite, nós te pedimos.

• Pelos homens e mulheres que se amam, pelos lares que descansam em paz, pelas mulheres que dão à luz nesta noite, nós te pedimos.

• Por nossos irmãos falecidos que ainda não entraram na Luz da tua Glória, nós te pedimos.

• E por nós, pecadores, que, à noite avançamos na direção da Luz do teu dia sem ocaso,  nós te pedimos.

Senhor, escuta a nossa prece!

III. CRÔNICA

Roupas lavadas, passadas e guardadas

 

Tinas, tanques, bicas, bacias, máquinas de lavar, de enxaguar e de centrifugar: são lugares onde mulheres, e hoje também homens, lavam  roupas. Hoje, eles lavam. Antigamente isso era tarefa de mulheres.  Ainda hoje, em certos lugares, em morros de favelas, no interior do país, elas chegam às dezenas com trouxas de  roupas equilibradas na cabeça, bacias e baldes e lavam, esfregam, enxaguam camisas e saias, lençóis e toalhas, fronhas e colchas. Lavavam com sabão em barra, enxaguavam, torciam e levavam para suas casas para pendurarem nos varais. E, nos varais, os lençóis se abraçavam com as toalhas, calças se enroscavam nas blusas.

Lá em casa, e em muitas casas, segunda-feira era dia de lavar roupa. A mãe separava as peças.  Havias as calças de garoto, o macacão do pai sujo de graxa, as meias de lã usadas nos frios invernos de Petrópolis.  A mãe lavava num tanque com sabão em barra meio azulado ou amarelo.  As roupas brancas ficavam no coradouro para perderem o encardido.  As peças mais finas eram lavadas com sabão de coco. Muitas vezes, as roupas brancas eram passadas numa água azulada com anil. Na venda do Bingen dos Vogel, a gente comprava um boneca de anil.

O mais bonito era ver toda a roupa pendurada nos varais. Camisas azuis de manga comprida, camisola de criança, de flanela e cheia de desenhos bonitos. Com a ventania, os lençóis serviam de espantalho para os passarinhos que vinham bicar as goiabas e  ameixas. Aquele roupa toda pendurada nas cordas com pregadores, como dizia o poeta, davam a impressão de um estranho festival; pareciam bandeiras de um feriado nacional.

Quando ameaçava a chuva, a mãe e nós todos corríamos para recolher a roupa em varais que existiam debaixo de telheiros no fundo das casa, onde elas acabavam de secar. Triste quando chovia na segunda, na terça… e sempre… porque as roupas não secavam e durante a noite os cachorros puxavam os lençóis e levavam pela lama a dentro…

À noitinha, à hora das ave-marias, a mãe recolhia tudo. Que perfume delicado vinha das pilhas de roupas dobradas e colocada  sobre  as camas.  As peças brancas estavam brancas de verdade. Por causa do tal do anil e do sol. Será que ainda existem essas “bonecas” de anil?  Qualquer hora vou me informar.

À noite, a mãe passava a pilha de roupas. Não existia ferro elétrico. Era um ferro com brasas… Meu Deus!!! Enquanto eu e minha irmã fazíamos os deveres da escola, a mãe passava roupa, o pai fazia a escrita da capela, e todos ouvíamos a novela da Rádio Nacional.  Era  “O Direito de Nascer”, novela das 8h, cheia de emoções. Paulo Gracindo e Yara Salles eram os principais radio-atores.  Depois vinha o “Reporter Esso” com Heron Domingues…

Terminada a tarefa de passar, a mãe guardava tudo no armário e nos baús… com naftalina ou saquinhos  de pós perfumados… extraídos de cascas de árvores….

Nós esperamos que nossas vestes sejam lavadas no sangue do Cordeiro e que elas sejam impregnadas do perfume das boas obras que praticamos… Esperamos entrar na sala do banquete com veste nupcial… que não precisará nem de anil, nem de coradouro.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI?

Passando a limpo a vida conjugal

 

O  casal está sempre em estado de construção. De quando em vez é bom que marido e mulher examinem sua vida a dois.  Há o casal, a vida familiar com os filhos, a vivência da espiritualidade conjugal e a vida do casal no mundo.  Nesta nossa página da família queremos fazer algumas interrogações a respeito  da vida conjugal, ou seja, da vida do casal. 

 

Tudo passa inexoravelmente. O Eclesiastes já dizia que há um tempo para nascer e um tempo para morrer. Um dia o tempo do casal termina. Os casais mais idosos se preparam para a viuvez. Os novos têm a vida diante dos olhos. Marido e mulher são companheiros de uma viagem, peregrinos de um mesmo destino. Eles manifestam a Deus sua gratidão por tudo aquilo que foi acontecendo ao longo da caminhada: o encontro dos dois, a decisão do casamento, os filhos que chegaram, a coragem de terem superado tantas dificuldades, as cruzes que juntos  acolheram e carregaram, as tantas alegrias vividas.

O texto que segue é uma exame  da vida conjugal. Os dois conversam sobre sua vida.

Fomos e somos responsáveis um pelo outro, com dez, vinte, trinta cinquenta anos de casamento.  Responsáveis em parte, porque cada um é um mistério e no sacrário de sua consciência, assume sua história. Caminhamos a dois. Precisamos responder a certas perguntas fundamentais em prol do fortalecimento de nossa vida a dois.

• Nesses últimos tempos temos ouvido, percebido, auscultado as necessidades e anseios mais profundos do outro?

• Cada um é cada um. Como, no entanto, nossas vidas estão efetivamente se entrelaçando nesses últimos tempos?  Ou vivemos vidas paralelas?

• Será que podemos enumerar aquilo que “devemos” um ao outro, o que fomos recebendo um do outro, ou dando um ao outro?

• Respeitamos uma certa autonomia do outro?  Que significa, na verdade,  respeitar a autonomia?

• Conseguimos chegar a um equilíbrio entre vida profissional, conjugal, social, religiosa? Há equilíbrio ou desequilíbrio?

• Que parte de nosso projeto conjugal e familiar já realizamos?  Que acertos estão convidados a fazer, ou que reajustes precisam ser  buscados?

• Somos um casal aberto aos outros?  Somos dos outros? Acolhemos o que dos outros nos chega?  Enriquecemo-nos com eles? Sabemos acolher os pais dos namorados e namoradas de nossos filhos?

• Nossas expressões de afetividade e nossos encontros sexuais são satisfatórios?

• Será que ainda temos feridas que não foram cicatrizadas e mágoas que não foram perdoadas?

Somos um casal cristão.  Somos convidados a trilhar o caminho da santidade na vida a dois e familiar.  A espiritualidade conjugal deveria nos ajudar.

• Como anda nossa vida de oração nesse momento de nossa história? Buscamos a Deus juntos?

• Amadurecemos na fé? Somos capazes de carregar juntos a cruz que nos é pedida?

• Temos tido uma efetiva vida de oração conjugal?

• Temos vivido adequada e seriamente os tempos litúrgicos?

• Há sintomas que de que estamos no caminho da santidade?

• Podemos dizer que somos um  casal maduro no sentido mais amplo do termo?

• Podemos dizer que a missa dominical seja um acontecimento espiritual em nossa vida?

Para concluir esse balanço apenas três perguntas relativas à vida dos pais com os filhos:

• O que estamos fazendo de nossos filhos? Estamos satisfeitos com os resultados alcançados em nosso empenho educativo?

• São pessoas que pensam apenas no seu sucesso humano, amoroso, profissional, hedonista, individual? Ou fizemos deles  pessoas abertas a outras pessoas?

• Será que conseguimos  fazer de nossos filhos  gente com sede e fome de Deus, com traços de Jesus, sequiosos de seguir o Mestre?

Frei Almir Ribeiro Guimarães

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

Encontro com o leproso

 

Somos seres mergulhados no mistério da vida,  Somos cristãos. Queremos ser cristãos.  Procuramos, ao longo das páginas desta rubrica, compreender como Francisco da cidade de Assis foi descobrindo seu caminho de viver. Quem sabe  sua caminhada possa projetar luz em nossa estrada!  Particularmente, em sua trajetória, foi importante  o encontro que ele teve com o leproso e sua dedicação a esses irmãos “cristãos” como ele costumava designá-los.

 

1. O encontro com o leproso é  um dos episódios mais delicados e sensíveis na vida de Francisco do ponto de vista de sua biografia. Seu valor vai para além do fato de ser tema para pintores da vida do santo. O encontro com o leproso foi decisivo no discernimento de sua vocação e coloriu com tintas próprias e fortes sua espiritualidade. Francisco já havia se encontrado com os pobres. Agora estava diante de  uma categoria toda especial de pobres, que eram esses seres em decomposição, vivendo da misericórdia dos outros, nas periferias e nos campos. Francisco, na esteira da Sagrada Escritura, compreenderá que Jesus foi um leproso, segundo os textos de Isaías.

2. O famoso episódio do beijo do leproso é relatado por quatro das mais antigas fontes hagiográficas. Na Legenda dos Três Companheiros , 11,  lemos o episódio não tão diferente dos outros relatos. Francisco indo de cavalo pelas cercanias de Assis se deu conta que um leproso vinha ao seu encontro. O jovem experimentava uma natural repugnância por esses seres em decomposição. Fazendo grande violência a si mesmo, desceu do cavalo, deu-lhe uma moeda e beijou-lhe a mão. Tendo recebido o ósculo da paz da parte do leproso voltou a montar o cavalo e prosseguiu seu caminho. Francisco vencera-se a si mesmo. O doce tornara-se amargo e o amargo, doce.   Tal vem expresso nas primeiras linhas do  Testamento do santo:  “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecado, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo; e, depois, demorei só um pouco e saí do mundo” (Test 1-3).  O encontro com estes seres tão pobres fez com que Francisco deixasse a mentalidade do mundo e começasse sua transformação em discípulo sério de Cristo. Foi o começo de sua conversão.

3. O filho de Pietro Bernardone parece desprezar-se a si mesmo. Começava a existir o homem espiritual. Os leprosos não constituem apenas uma primeira etapa de sua caminhada vocacional. O serviço dos leprosos constituiu uma prática constante em sua vida.  Vale meditar neste trecho, também da Legenda dos Três Companheiros, 11: “Poucos dias depois, levando consigo muito dinheiro, dirigiu-se ao leprosário e, reunindo todos os leprosos, deu a cada um uma esmola, beijando-lhe a mão. Ao se afastar, o que lhe parecia amargo, mudara-se em doçura. Tanto assim que, como ele contou, no passado, a vista dos leprosos lhe era repugnante de tal forma que, não querendo vê-los, nem mesmo se aproximava de suas habitações e, se por acaso alguma vez lhe acontecesse de passar perto de suas casas ou de vê-los, virava o rosto e tapava o nariz, muito embora, movido por piedade, lhes mandasse esmola por intermédio de outra pessoa. Depois desses fatos, no entanto, por graça de Deus,  de tal maneira tornou-se familiar e amigo dos leprosos, que,  como ele mesmo afirma no Testamento, gostava de ficar entre eles e humildemente os servia”.

4. “Cuidando  dos rejeitados do mundo Francisco começava a ascender à genuína nobreza que buscava, que seria descoberta não nas armas, ou em títulos e batalhas, glórias ou duelos. A honra não estava na companhia dos mais fortes, dos mais atraentes, dos mais bem vestidos ou mais garantidos na sociedade, mas entre os mais fracos, os mais desfigurados, os  que estavam marginalizados, dependentes, desprezados (…). Ao dedicar-se ao cuidado dos leprosos, ele tinha ido para além do intelectual e chegara à experiência. No inimaginável sofrimento deles viu a agonia final do Cristo crucificado – o Cristo abandonado e rejeitado, solitário na morte, aparentemente impotente contra a triunfante maldade do mundo”  (Francisco de Assis. O Santo Relutante, Donald  Spoto,  Objetiva, Rio de Janeiro, p.104).

Para continuar a reflexão

1 Celano 17
Três Companheiros 11

Para refletir

1. O que mais impressiona no  tema dos leprosos em Francisco?
2. Quais seriam os leprosos de hoje?
3. Podemos imaginar um franciscano que, de fato, passe a viver concretamente com a ralé da sociedade? Como?