Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Abril 2011

I. LEITURA ESPIRITUAL

Reflexões descosturadas a respeito da vida espiritual (I)

 

1. “Dá-se o nome de espiritual a quem não vive segundo a carne mas sob a moção do Espirito de Deus, é chamado Filho de Deus e tornou-se conforme a imagem do Filho de Deus. E assim como a capacidade de ver só se encontra em olhos sãos, também a ação do Espírito só se exerce na alma purificada” (São Basílio Magno – Liturgia das Horas I, p. 452). Assim é a nossa vida, nossa vida espiritual.

2. Casados, solteiros, religiosos, sacerdotes temos a alegria de viver a vida nova no Espírito. Essa vida de todos os dias a vivemos à luz do Filho de Deus que nos amou, se entregou por nós e por nós ressuscitou. Somos pessoas que agimos na força do Espírito, que é água, vento, fogo que nos anima por dentro. Corremos, amamos, tomamos remédios, estudamos, sofremos na concretude de todos os dias, fazemos pastoral, nos reunimos para a refeição, cuidamos dos vivos e enterramos os mortos e, em tudo isso, somos invadidos pela Vida. Dizemos que vivemos espiritualmente. A vida espiritual não é um segundo andar da existência, nem depende, em primeiro lugar, de “ginásticas” ascéticas e atletismos interiores. Dizemos então que, sem deixar o mundo, não somos do mundo. Vivemos “espiritualmente”. Por vezes esquecemos disso e, na prática, nos associamos a todos os que correm, lutam, “na carne”. “Nada mais estranho à Bíblia, com efeito, do que estas distinções e oposições entre corpo e espirito, entre corpo e palavra, entre fé e experiência humana. Para nos convencermos disso, basta por exemplo, ler os salmos, esses hinos e preces nos quais os judeus não hesitam em gritar diante de Deus seu sofrimento, sua cólera, sua alegria e seu louvor. Basta prestar atenção no vocabulário dos Evangelhos – particularmente no de João – em que a Palavra de Deus é apresentada como pão, alimento, bebida, em que Jesus é apresentado como caminho, porta. Linguagem eminentemente carnal que indica já que a vida espiritual será também carnal. A vida espiritual não é feita de um somatório de convicções, de teorias, de dogmas que seriam exteriores a nós. Está ligada ao tocar, ouvir, ver, degustar, sentir. Permitirá que se faça uma experiência ao mesmo tempo humana e espiritual” (Régine du Charlat, Comme des vivants revenus de la mort Bayard, Paris 2002, p. 30-31).

3. Parece fundamental fazer uma “experiência” espiritual e viver a espiritualidade no seio de uma comunidade. Nós, franciscanos, queremos vivê-la na fraternidade. Há pessoas que nasceram em famílias cristãs ou católicas e nunca se questionaram a respeito do seu ser cristão. Foram vivendo. Alguns dos que acolheram a fé em suas casas chegaram aos píncaros da santidade. Certos religiosos escondidos no claustro, certos casados no meio do mundo, numa fidelidade a Deus emocionante “vivem ou viveram espiritualmente”. Outros só vieram a “converter-se” mais tarde. Pensamos aqui, por exemplo, em Paulo no caminho de Damasco, Francisco de Assis diante do leproso e Paul Claudel no esplendor da Catedral de Notre Dame de Paris. E nos perguntamos se nossas paróquias e nossas atividades pastorais levam as pessoas ao desejo da conversão, a essa ânsia de fazerem uma experiência espiritual. Fascinados pela vida nova não somos administradores de mesmices e de rotinas. Pode ser que muitos tenhamos perdido o fogo interior.

4. A impressão que se tem é que há homens e mulheres ardorosos, cheios desse fogo que vem de Deus e que são muito diferentes do comum dos mortais. Um autor assim se exprime: ”Há pessoas cuja vida espiritual seria uma prolongada quaresma ou um grande deserto, e outras que estariam vivendo páscoas que se renovam”. Cada caminhada espiritual é uma caminhada. O que não se admite é que religiosos e cristãos tenham deposto as armas, quer dizer, perdido o desejo de Deus. Não se trata apenas de alguém ser batizado, de ter feito a primeira comunhão, de frequentar a Igreja, de ter feito uma profissão de vida consagrada, de ter uma vida “direitinha”. Entra aqui a questão do desejo, de uma cumplicidade entre aquele que é visitado pela Vida e aquele que o visita. “Para abrir o coração dos ouvintes ao dom da vida divina, Jesus baseia-se num profundo desejo de vida que existe em todo ser humano. Parte dessa ânsia, desse anelo de viver. E não o abafa, antes o provoca e aviva. “Se alguém tem sede, venha ter comigo, e eu lhe darei de beber…” (Jo 7,37). Um pormenor digno de nota: Jesus não se dirige à inteligência, ao espírito puro, mas à pessoa viva, ao seu desejo de vida, à sua aspiração de vida mais plena e mais alta. É neste nível inferior que ele se junta ao homem. O evangelho de João faz-nos assistir a este encontro pasmoso: a vida oculta e transcendente de Deus a entrar em relação com a vida carnal e insatisfeita do homem. É assim que ele se dá a conhecer. A conhecer e a desejar. Este pormenor é esclarecedor, e merece atenção. A vida divina revelada e proposta por Jesus ultrapassa sem dúvida todas as possibilidades humanas. É impossível conquistá-la. Só pode ser recebida como dom, e como dom absolutamente gratuito. No entanto, entre a sede de vida existente nas profundezas do ser humano e o dom da vida divina, deve haver uma relação escondida e profunda, uma cumplicidade fundamental. Ou melhor ainda: uma aliança”. (Eloi Leclerc, Le Maître du désir, Vida em Plenitude, Braga pro-manuscripto, p.53). Os que vivem espiritualmente não são seres amorfos, sem ossatura interior. Sentem sempre a proximidade do Senhor em suas vidas.

5. O que nos conduz a Deus? Como se passa, ano após ano, etapa por etapa nossa vida espiritual? Muitos confessam que não tiveram experiências místicas fortes e significativas no início da aventura espiritual. Há, contrariamente, os que, como Paulo, fizeram experiências mais fortes. Esperariam que tais experiências pudessem se repetir, o que quase nunca acontece. Na fidelidade, no cultivo da delicadeza de consciência, na tentativa da oração ininterrupta, na resposta aos apelos da caridade fraterna, analisando os tempos e seus sinais vamos rasgando nossas veredas. Na fidelidade criativa de cada momento, sem descanso, sempre querendo dar um passo adiante, nunca numa monótona repetição de ritos, palavras e gestos que nada nos dizem…

6. Acontece muitas vezes que, no começo da aventura espiritual, as pessoas sejam como que envolvidas numa luz mais brilhante. Pensemos aqui na transfiguração do Tabor. Esse Jesus com o rosto iluminado, as vestes alvas. Parece que ali os apóstolos tenham feito uma experiência do céu na terra. Sim, quem sabe o começo de tudo dependa dessa experiência da presença e da força do Senhor. A presença de Deus para muitos foi uma surpresa de encantamento. Surge numa vida sem fé a sensação da possibilidade de Deus. Trata-se, de alguma forma, de uma experiência sensível que se acolhe e que não se cria. Deus não responde a pressões. As pessoas, em tais condições, são tocadas pelo imprevisto. Necessário, pois, para todos, criar espaços para uma experiência de Deus. Que seria de uma vida consagrada ou a vida do ministério sacerdotal sem experiência de Deus? Nada mais do que a seca repetição de palavras e de gestos sem ressonância interior. Não será por isso que vivemos tanta esterilidade? Será que o tempo da noviciado, os anos de filosofa, o percurso da teologia têm propiciado aos frades ocasião de fazerem experiências de Deus?

7. Todos os que examinam os passos de sua aventura espiritual são unânimes em reconhecer que atravessaram ou atravessam por noites escuras. A experiência da proximidade de Deus mostra-se fugaz. Depois de termos feito um retiro que nos tocou por dentro, sentimos que, por nossas próprias forças, somos incapazes de renovar aquela experiência. Não somos mestres de nossa vida espiritual; não podemos organizá-la segundo nossas conveniências. Na fidelidade à oração, ficamos firmes como soldados em campo de batalha numa noite de chuva e de inverno. Temos consciência de que valeu a pena a oração diária, a fidelidade a uma promessa feita, a um compromisso assumido mesmo na total aridez interior. Admiráveis essas pessoas que nunca abandonaram o empenho espiritual, mesmo nas noites mais densas e quando o chão parecia fugir-lhe dos pés. Até que ponto nossas casas abrigam gente dessa têmpera, gente que fica firme na busca mesmo na aridez e na escuridão, gente que tem sempre a vela acesa esperando a volta do Esposo?

8. Os espirituais ao descobrirem sua incapacidade de serem donos de sua vida espiritual são levados a uma postura de humildade. “Num determinado momento a graça de Deus lhes tinha mostrado um caminho. Em seguida, perderam o itinerário. Essa falta que descobrem os leva a uma atitude nova. Perdidos em seu caminho espiritual, constatando sua impotência, seu desejo se aguça, sua oração se faz mais frequente, mais insistente”. É como se dissessem ao Senhor: “Tu me fazes falta…”. “A humildade dos místicos não é teatro, pose, algo como se fosse uma cortesia fabricada. Pelo fato de terem encontrado a Deus e porque não conseguem conservar a experiência sensível, eles exprimem um lamento ao constatarem o que são e o que deveriam ser. Quanto mais se aprofundam interiormente, mais aquilo que ele descobrem de Deus provoca neles admiração, mais se sentem longe, muito longe, o que os pode levar até mesmo a um desespero perigoso. Conheceram momentos de luminosidade e se culpabilizam de sempre resistirem a essa claridade. Descobrem-se infiéis ao Pai mesmo tendo dele recebido o dom da fidelidade. Assim, Francisco de Assis que não cessava de lamentar sua falta de generosidade, essa vontade de recomeçar tudo, como se nada tivesse sido feito. Como se manifesta nosso aguçado desejo de Deus no meio-dia de nossas vidas?

9. A sabedoria nos diz que não adianta forçar. Será preciso ter paciência. Na fidelidade, na delicadeza interior, esperar sempre a visita do Senhor. A ação de Deus em nós faz com que sintamos nossas limitações e precariedades, nossas tendências que contrariam sua visita. Quando aceitamos esse “sofrimento”, será dilatado nosso desejo de Deus. Os homens e mulheres espirituais sabem dar tempo ao tempo e esperar a chegada de Deus. Sim, o que pode nos fazer progressivamente caminhar na direção de intensa vida espiritual é o desejo de Deus. Todos os orantes e espirituais falam de um colocar-se numa postura de adoração silenciosa, um estado interior feito de disponibilidade, de acolhida silenciosa, de vontade desarmada. Assim viveram João da Cruz na “noite” e Zaqueu que sobe a uma árvore para ver aquele do qual ouvira tanto falar. Sempre… o desejo.

10. A pessoa humana é um ser visitado, uma casa aberta à hospitalidade em nome da semelhança com Deus. A biografia do homem cresce até que ele possa se identificar com a palavra que Deus pronunciou a seu respeito, com o desígnio de Deus a seu respeito. Palavra que não tem ocaso. Ter o encontro com o Ser no tempo da vida (Teresa de la Croce ) . Terminamos citando novamente Régine du Charlat: “Nosso itinerário não é apenas memória ou lembrança. É também abertura ao imprevisível que está no futuro. Esse itinerário nos faz nascer progressivamente a nós mesmos. Por isso caminhamos. Por isso, percorremos um itinerário. Quando uma palavra, quando a Palavra cai nessa parte de nós mesmos que acaba de nascer, ela cai aí pela primeira vez. Vamos assim de começo em começo, de novidade em novidade. Não nos repetimos. Aparecemos diante daquilo que ainda não somos. Começo é um dos nomes da Ressurreição” (p.49).

ObservaçãoContinuaremos a refletir sobre este tema em nossa próxima edição: a espiritualidade franciscana vivida por uma fé vigilante, seguir o caminho de Cristo, aderir à vontade do Pai, como elementos de espiritualidade.

II. PÁGINAS FRANCISCANAS

Tempestade de vida

 

O coração de quem não tem coração

O autor deste texto é o frade francês Eloi Leclerc. Não estamos propriamente diante de uma página franciscana, mas de uma página de um franciscano. Leclerc certamente ensopado de Francisco, escreve franciscanamente. O texto é tirado de seu livro “O povo de Deus no meio da noite” (Braga). Escreve sobre a crise do exílio da Babilônia e da crise de nossos tempos. Esta é uma profunda leitura espiritual que aconselho para ser usada num retiro espiritual. A tradução tem o sabor do português de Portugal (p. 83-90).

 

Nada poderia simbolizar melhor a extensão da ruína dum “coração contrito”, que a planície a que o profeta Ezequiel se viu transportado pelo poder de Javé (Ez 37, 1ss). O profeta pôde palmilhar esta planície em todos os sentidos. Nenhum ser vivo. Apenas encontrou esqueletos desconjuntados. A perder de vista, sobre a terra, somente ossadas ressequidas. Espetáculo de desolação, mas também campo aberto à irrupção do Espírito. Toda resistência cessou, toda rigidez desapareceu. O limite também. O homem confunde-se de novo com a terra mãe. Tornou-se a ser “filho do homem” : um mortal. Agora pode acreditar, como Abraão, no Deus que dá vida aos mortos.

Nada deterá o Espirito desde agora. Este pode soprar dos quatro ventos, em toda a sua plenitude. A força de renovação pode desencadear-se: “Filho do homem, diz ao Espírito: Assim fala o Senhor Javé: Vem Espírito, vem dos quatro ventos! Sopra sobre estes mortos, para que revivam!” (Ez 37,9). O profete repete a todos os ecos o que lhe disseram. E o furacão de vida cai sobre as ossadas. Ouve-se então por toda a planície o grande remexer de ossos, que se entrechocam, cada um à procura de sua articulação. E eis que os mortos se levantam! Vivos, estão vivos! Grande e imenso exército! (Ez 37,10).

Quando o espírito humano se vê a contas com experiências destas, necessita de tempo para lhe encontrar o sentido profundo. “Estas ossadas, disse Javé, são todo o povo de Israel…” (Ez 37,11). Vou abrir os vossos túmulos (Ez 37,12), meter em vós o meu Espírito, para vos restituir à vida…”(Ez 37,14). Pouco a pouco faz-se luz no espírito do profeta. A visão descobre a sua verdadeira dimensão profética. Ezequiel compreende que se trata de linguagem simbólica, que exprime a renovação profunda do coração do homem. Penetra no sentido interior da visão. E pode ouvir Javé dizer-lhe: “Dar-vos-ei um coração novo, introduzirei em vós um espírito novo; arrancarei do vosso peito o coração de pedra; dentro de vós, meterei o meu Espírito…” (Ez 36, 26-27; cf. versos 11 . 19).

Que caminho percorrido! Ainda há pouco Ezequiel dizia aos companheiros de exílio, em nome de Javé: “Preparai um coração novo e um espírito novo” (Ez 18,31). Era fácil dizê-lo. Mas como realizá-lo? O que é um coração novo e um espírito novo? E agora é o próprio Javé a tomar a iniciativa de renovar a sua criatura. Trata-se de uma metamorfose maravilhosa. O coração de pedra que todos possuímos e a que estamos tão habituados que nem lhe percebemos a dureza, Deus o retirará, substituindo-o por um coração de carne. Que tal será o novo coração: coração de carne! Quanto ao Espírito novo, será o próprio Espírito de Deus no coração da sua criatura: “dentro de vós meterei o meu Espírito”.

O mais surpreendente, o mais maravilhoso nesta renovação do homem é que o Espírito de Javé se encontre estreitamente associado ao coração de carne. Um não existirá sem o outro: um é dado com o outro. A mais importante experiência espiritual, a mais despojada, é aquela que restitui ao homem a sua verdadeira profundeza carnal. A participação do homem no Espirito de Deus está ligada a este aprofundamento que o leva a reencontrar, no mais íntimo de si mesmo as fontes vivas da ternura e da comunhão. Abrir-se ao Espírito patético de Javé é, portanto, nascer também para uma humanidade plena e profunda. Quando o homem se deixa prender pelo Espírito, este não descansa enquanto não o penetra e o atinge até nos seus fundamentos mais obscuros; e ali ele renova o Eden da antiga ternura esquecida”.

Sabe-se bem que, com lutas de interesses, as ambições, apreensões e a vontade de triunfar e dominar, a vida pode endurecer o coração do homem e nele acumular agressividade e ressentimento. As primeiras forças de admiração e comunhão depressa são sufocadas. E a pior dureza não é a dos sentimentos. É a dureza seca, fria e metálica da inteligência: a dureza de uma razão medíocre e abstrata que, em nome da verdade, ignora todo o sentimento. O coração de quem não tem coração, eis a dureza da pedra!

Deus conhece essa pedra que o homem pode trazer consigo. Pedra sobre a qual estão sepultadas as camadas profundas da alma. É preciso que o rochedo se quebre para que jorre de novo a água viva. Só o “coração contrito” que pelo Espirito se deixou despojar de sua suficiência e desejo de poder pode reencontrar as fontes ocultas. E é o Espírito que lhe possibilita descobri-las. O Espirito de Javé tem necessidade, para nascer em nós, de todas as fibras de nosso coração. A parte de nós mesmos que julgávamos extinta para sempre, Ele chama novamente à vida. Com ela renascemos; somos novas criaturas, restituídas à comunhão com todos os seres vivos.

Reconciliar em si a pureza e a ternura, a inocência e o fervor não é a menor novidade do “coração de carne”. “Pureza e ternura, por que estais separadas?”, perguntava François Mauriac. O ser puro – ou o que se deseja tal – é muitas vezes altivo e duro, como se o homem não pudesse escolher senão a pureza que o torna de gelo ou o amor que o devora, aviltando-o. Ora, a própria Palavra divina promete aos exilados um coração de carne e uma pureza comparável à transparência das fontes: “Lançarei sobre vós uma água pura e sereis purificados” (Ez 36,25). Purificados, mas não desencarnados. No coração de carne, criado pelo sopro de Javé, tudo existe, tudo se reencontra, límpido e luminoso. Tudo, até o Eros.

Esta água pura, que penetra até o coração e o liberta de suas cargas e de suas manchas, nada tem a ver com a água as purificações legais. É a irmã daquela água “humilde, preciosa e casta”, cantada por Francisco de Assis. É uma realidade intima e original, Inseparável do sopro do Espírito, tem os germes da vida.

Água e Espírito! Não é o binário primitivo que, nos inícios do Gênesis é prelúdio de toda a criação? (Gn 1,1). Quando se unem o Espírito e a água, está para nascer um mundo novo. A noite do exílio torna-se a dos grandes começos. Noite de natividade.

III. ORAÇÕES

Pedindo o dom do discernimento

 

Mês após mês, queremos oferecer aos nossos estimados
leitores eletrônicos preces, orações para o dia-a-dia da vida.

 

PEDINDO O DOM DO DISCERNIMENTO

No caminhar de minha vida, Senhor, vou me encontrando
com tuas Palavras, com o som nem sempre nítido
de teus desejos.
Muitas vezes estou diante de teu Silêncio, Senhor.
Viver é um desafio, caminhar cristãmente no mundo
agressivo, mentiroso, aparente, falso é tarefa árdua.
Meu interior está cheio de interrogações.
Que queres de mim? Quais os projetos que tens para a minha vida e para a vida daqueles que caminham a meu lado?
Que queres que eu e meus irmãos venhamos a realizar?
Como desejas que eu anuncie a Boa Nova que crepita
em meu coração?
Como discernir a tua Vontade?
Tu és realmente um Deus discreto!
Não me mostras, de uma vez para sempre, o caminho a seguir.
Queres que eu descubra a senda a cada dia,
em cada esquina ou encruzilhada da caminhada
espiritual que vou tecendo com outros na história.
A vida é feita de dilacerações, tensões,
de sim e de não, de claro e de escuro.
Há vidas que estão diante de mim e esperam decisões.
Revelo-lhes a verdade, ou espero
que a descubram por si mesmos?
Entrego-lhes boa parte de meus bens
ou ajudo-os a ser gente?
Rompo meus compromissos para estar mais na oração
ou transformo minha vida num ininterrupto serviço aos outros?
Sinto o peso da terra, da carne, das solicitações,
de todas as insinuações que me faz ser habitante das coisas de baixo e me tiram o desejo de olhar para o alto.
Vislumbro horizontes belos de despojamento total,
de renúncia que liberta, de serviço e de entrega,
mas não tenho coragem de assumi-los.
Que o teu Espírito me dê o dom do discernimento:
entre os bens, escolher o melhor,
entre os males optar pelo menor,
sempre ter a tua luz para sabiamente discernir.
Que a Igreja de Jesus seja banhada pela luz do Espirito
Para mudar o que precisa ser mudado
e conservar sabiamente aquilo que vem do passado de teu amor
e nos encaminha para o futuro de todas as belezas.
Com Samuel repito a mais não poder:
“Fala. Senhor, que teu servo escuta!”

MARIA DE TODOS OS DIAS

É meio dia, Mãe!
Venho ao teu encontro.
Nem sempre sei rezar,
mas estou aqui, para te olhar.

Tu és a Mãe dos que andam de pés de descalços,
dessas crianças abandonadas!
Nossa Senhora de nossas andanças,
nossa Mãe da Esperança,
estás presente em nosso dia-a-dia,
nas tarefas monótonas
que precisam ser feitas a cada dia
essas mil coisas que nos esperam
e que parecem sem sentido.

Tu estás presente nos momentos de sofrimento,
quando a noite é longa e a ausência pesa;
quando o coração fica também pesado
cheio de esperas, de cuidados e de dúvidas a respeito do futuro;
quando o medo toma conta de nós.
Tu, Maria aos pés de nossas cruzes.
Estás aí, perto de nós.
E teu “sim” se torna o nosso sim,
nosso dia a dia ganha sentido
e encontra sua fonte no teu Filho ressuscitado!

“Rozenn” (pseudônimo)
Revista Prier, maio de 2000.

RESSURREIÇÃO

Senhor Jesus, eu te bendigo,
porque do rochedo ressuscitaste,
porque na manhã da Páscoa
o túmulo se esvaziou e a pedra foi rolada,
os lençóis foram dobrados, dois anjos revelaram:
Ele não está mais aqui.
Não procurai entre os mortos aquele que é o Vivo.
Ele ressuscitou.
Vivendo na carne ele ressurgiu.
A carne, a mesma e, ao mesmo tempo, outra tão diferente.
Que Maria nela não toque, simplesmente creia.
Tu, porém, Tomé, o incrédulo, toca a fenda do coração,
seus pés e suas mãos,
coloca ali tua mão e crê também.

Carne viva do Ressuscitado,
ó morte, onde está tua vitória?
Das potências da morte ela triunfou,
tendo vencido para sempre as sequelas do pecado.
Nada pode fazer parar o Ressuscitado
distância alguma o separa mais.
Ele aparece, ensina, come, bebe e promete.
Desaparece e volta e por fim vai e num determinado
momento não volta mais.
Sua carne é ressuscitada.
Aleluia, ele ressurgiu!

Frei Godefroy Guillerm, OFM
Prier, abril de 1992, p. 16.

“MULHER, QUEM PROCURAS?”

Mulher, tu choras? Quem procuras? Tu possuis aquele que buscas e tu o ignoras? Tu o tens e choras?
Tu o procuras fora, mas ele está dentro de ti.
Estás de pé, diante do sepulcro, mas ele está dentro de ti.
Porque ficas fora do sepulcro, debulhada em lágrimas, por quê?
Onde eu estou? Estou em ti. É aí que eu descanso, mas vivo, eternamente vivo.
Meu jardim está em ti. Acertaste me chamando de jardineiro.
Como segundo Adão, eu também vigio um paraíso.
Minha incumbência: trabalhar, cultivar nesse jardim, tua alma e colheitas de desejos.
Como? Tu me tens, me possuis em ti e tu o ignoras?
Por isso é que me procuras fora. Estou aqui. Apresento-me a ti para te levar ao teu interior.. É lá que haverás de me encontrar.
Maria, eu te conheço pelo teu nome;
que tu aprendas a me reconhecer pela fé.
Não me toques, porque ainda não subi ao Pai.
Tu ainda não crês que eu sou igual, coeterno e consubstancial ao Pai?
Quando isto creres, ter-me-ás tocado!
Dize-me uma coisa o que existe de mais próximo para alguém do que o próprio coração?
Os que me encontram, é lá, no seu coração que me acham.
É ali minha residência!

Texto atribuído a São Bernardo

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI

Essa gente sem juízo!!!

 

1. Há famílias e famílias. Há famílias com gente ajuizada e famílias com gente sem juízo algum. Essa gente sem prudência não pode reclamar das consequências de seus atos, seus gestos, suas decisões mal elaboradas e tomadas. Há imprudências tão graves que desgraçam a história de uns e de outros.

2. Aquela moça, jovem ainda, vive com um homem casado e pai de família. O homem vive com ela e vive com a mulher e os filhos. Ele não se separa para casar com a moça. A moça sabe disso. Não creio que ela ame o homem. Mas para ela a situação é cômoda: presentes, companhia, dinheiro. Aos poucos, a moça resolve aproveitar da situação. Ele, deslumbrado com a moça que quase podia ser sua filha, entra numa fria. Não sabe como explicar em casa a diminuição das receitas e essas horas mortas em seu calendário para as quais ele não tem explicação convincente. Os familiares sabem de coisas turvas, mas fingem que não sabem e assim as coisas vão continuando por um tempo… mas até quando? O homem não rompe com a situação com medo de escândalo e chantagem.

3. Esse rapaz mostra-se revoltado com a vida, com a mãe, com o pai… com a mãe porque deixou o pai e arranjou um namorado, revoltado com o pai porque é homem fraco de caráter… e o rapaz trabalha de qualquer jeito… ganha apenas o suficiente para sobreviver… Seus fins de semana e outros dias são marcados por drogas, noitadas, mulheres, corpo tatuado e bíceps sarado… mas o corpo vai ficando mole depois de tantas heroínas e não sei que mais… rapaz sem alento, sem vontade de mudar e de viver uma outra vida, alguém jogado à beira do caminho, um eterno boy com mais de trinta anos… Não era para esse homem acordar?

4. Há esse homem respeitado, alto funcionário de uma empresa estatal, de terno e gravata e pasta de couro. Não vive bem o casamento. Não sabe por onde pegar os fios e amarrá-los. A mulher tem seus programas com as amigas, excursiona nesses grupos, deixa a comida pronta para ele. Muitas vezes, ele fica no bar, no bar da tarde ou no bar da noite… não bebe muito… fica ali olhando a banda passar sem coragem de rever sua condição de marido e de pai, fraco, todo confuso de cabeça. Seria tão bom não ter deixado as coisas chegarem onde chegaram…

5. Aquele casal era um casal normal. Missa de domingo, nem sempre. Fiéis um ao outro. Mas uma casa feita da filosofia do vencer no dinheiro, na profissão, no consumismo. Carro bonito, jantares… Os filhos fazem estudos em escolas particulares e a intenção dos pais é que sejam vitoriosos, que ganhem bem, que tenham prestígio.. e esses pais, imprudentemente, sem juízo, esquecem de mostrar aos filhos a beleza do sermão da montanha, do fazer sem querer retribuição, de um mundo marcado pela alegria do serviço… e não apenas pelo proveito…

Muitos desses que desfilaram diante de nossos olhos, são pessoas sem sabedoria, sem juízo. Felizes os casais que fazem um projeto de vida, que crescem e amadurecem humana e cristãmente. Felizes os que podem participar de sérios e sólidos grupos de casados. Isso nos falta.

V. PASTORAL

Em torno da realidade da paróquia (I)

 

1. Queremos fazer algumas reflexões a respeito da paróquia em nossos dias e, talvez de modo particular, da paróquia das cidades médias e grandes. Pensamos aqui na realidade paroquial mais ampla e, de modo particular nas paróquias dos frades franciscanos. Não se pretende fazer um tratado sobre a teologia e todas as luzes e sombras que incidem sobre esta realidade chamada paróquia.

2. Antes de tudo, importante a figura do pároco e daqueles que o ajudam na tarefa de alimentar a vida do povo de Deus. Esses homens chamados sacerdotes ordenados serão sempre pessoas que se revestirão do caráter de pastores, de pessoas escolhidas para estar junto de outras pessoas na qualidade de irmãos, de companheiros, mas sobretudo de pastores. Eles se mostrarão coesos e unidos. Ninguém age por iniciativa própria. Quando são franciscanos os fiéis cristãos poderão e deverão dizer: “Vejam como eles se estimam!”

3. Espera-se que esses pastores, além de terem feito estudos de teologia e de pastora,l que os tenham capacitados a estar na liderança de uma porção do Povo de Deus, e tenham uma profunda vida espiritual. Isso se traduzirá num carinho todo especial por Cristo, pelo Evangelho, rezando a oração da Igreja, na participação regular de retiros e de momentos de oração e que possam se considerar, de fato, pessoas que continuam a obra de Jesus. São eles o braço estendido do ressuscitado em nosso meio. Sem dúvida alguma, o pároco e os sacerdotes que o ajudam terão um apreço altíssimo pela celebração da Eucaristia como pede a Mãe Igreja. Cuidarão sempre com respeito e veneração pela presença do Cristo em nossos tabernáculos.

4. Não é aqui o lugar de dissertar sobre todas as luzes e sobras da comunidade paroquial em nossos dias. Não estamos mais no tempo da cristandade. O mundo se secularizou. As pessoas perderam o “hábito” e a convicção de que a missa dominical é de importância capital. Mesmo assim, no atual quadro de transformação das paróquias, a missa do sábado e do domingo é, ainda um dos poucos momentos em que as pessoas se fazem presentes no espaço da paróquia. Por isso, todo o cuidado e todo zelo. Importante que nesses momentos os fiéis façam uma experiência de oração, experimentem um desejo de conversão e sejam, dentro do possível, do pouco possível, instruídos em sua fé. Homilia cuidada, serviço de som de boa qualidade, um boletim paroquial bem feito e com textos formativos que os fiéis lerão em casa. Hoje, a palavra de ordem é evangelizar de todos os meios e modos.

5. Apesar de todas as resistências e dificuldades os que frequentam a paróquia e/ou as comunidades, de modo particular os responsáveis por serviços e pastorais, serão insistentemente convidados a participar de encontros de formação, de experiência de Deus e de convivência fraterna. A paróquia, apesar de todos os pesares, precisa ser um espaço de expressão do amor fraterno e de encontro. Parece importante que haja esse tipo de encontro gratuito. Uma paróquia não pode funcionar apenas com “cursos” em vista da recepção de sacramentos. Ela não é uma organização burocrática que satisfaz a exigências.

6. Normal que numa diocese movimentos de espiritualidade, de casais sejam acolhidos. Estes serão sempre benvindos na medida em que forem dirigidos por leigos maduros que não venham dividir, mas somar. Uma paróquia não pode viver apenas de movimentos. Ela é expressão mais simples da Igreja local que se faz presente na diocese. Muitos de nós, ontem e outros hoje ainda, fizemos a experiência do encontro com o Senhor e o evangelho junto com casados, solteiros, idosos, crianças, letrados e pessoas sem estudo na “comunidade paroquial”.

7. Na medida do possível, e quem sabe do impossível, a paróquia precisa oferecer dois serviços: retiros espirituais e grupos de base que queiram fazer a experiência da oração e da vida fraterna. Fica bem clara a palavra “experiência”. Párocos habilidosos e leigos esclarecidos podem, aos poucos, mesmo nas médias e grandes cidades, criar uma teia de grupos que não se distanciam da paróquia, mas que fazem experiências suculentas de fé, de amor fraterno e de vontade de tornar o Amor amado em tamanho mais humano. As comunidades eclesiais, num certo momento, formam viçosas expressões de fraternidade e de ação no mundo.

8. Todos precisamos fazer um esforço sério para banir de nossas paróquias a “sacramentalização”. Os padres não são funcionários do sagrado. Estamos sempre diante do desafio de acolher os que chegam e de levá-los com firmeza e carinho às fontes da fé. Hoje se fala com toda razão de um trabalho na linha de recuperar as riquezas da iniciação cristã dos tempos primitivos da vida da Igreja. O “Documento de Aparecida” quer discípulos missionários. Estamos conseguindo avanços?

9. Nunca se pode esquecer que a ação pastoral não é, em primeiro lugar, um conjunto de estratégias, mas uma auscultar e acompanhar a ação de Cristo ressuscitado na vida das pessoas. Nunca uma pastoral sem alma poderá ser realizada pela Igreja de Cristo. Somos instrumento da ação daquele que continua fazendo discípulos e levando-os à sua intimidade.

(Continua)