Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Remontar às raízes para rejuvenescer

30/09/2013

Grappa

Bassano del Grappa não tem esse nome por causa da bebida, mas sim porque esta cidade está localizada na base do Monte Grappa, na região do Vêneto, ao Norte da Itália.

Leonardo Boff (*)

Por mais distante que andemos pelo nosso planeta  ou até fora dele como os astronautas, sempre carregamos junto a força das raízes. De tempos em tempos, elas se avivam e suscitam em nós um desejo incontido de voltar a elas. Não estão fora de nós. São a nossa  inconsciente base de sustentação e alimentação vital. Por isso, sempre as carregamos conosco.

E   rejuvenecemos cada vez que regressamos a elas. Nos dias 9 e 10 de setembro do corrente ano, vivi rara experiência ao visitar a casa de meu avô no norte da Itália. Sentimentos profundos, vindos da noite do inconsciente pessoal e coletivo, irromperam em mim. Senti-me religado àquela origem: a velha casa, os quartos enegrecidos, as portas que rangem ao abrir-se, as camas duras e largas (vários dormiam juntos), o fogão a lenha, os armários cheios de antigas tijelas e vasos, a mesa grande para todos caberem com seus longos bancos de cada lado. Era a paisagem interior. Da varanda se descortinava a paisagem exterior. Ela dá para um longo vale com casinhas distribuídas no meio dos campos verdes e, ao longe, o famoso monte Grappa de quase dois mil metros de altura no qual se travaram sangrentas batalhas na primeira Guerra Mundial entre o exército italiano e o  austro-húngaro.

Era casa do avô paterno no Vale de Seren del Grappa, perto de Feltre e de Belluno na região do Triveneto italiano. Na verdade é um pequeno conglomerado de casas, coladas umas às outras, chamado de Col dei Bof (Colina dos Bof). Fica no alto, à meia-altura da grande montanha. Estava até há pouco totalmente abandonada, como tantas outras casas da montanha. Até que a “Fundação di Seren” formada por gente de Bolzano, Feltre e Belluno, com alguma posse e forte sentido de resgate ecológico da região, a assumisse a transformasse num centro de encontro e de cultura. À noite é iluminada. Parece suspensa no ar com o escuro da montanha por trás.

A população do vale era pobre, a agricultura de subsistência mal alimentava a família, pois os solos montanheses tinham pouca fertilidade. Muitos passaram fome. Alguns conheceram a “pellagra” (extrema fome, pois só comiam polenta e água, até quase definharem).

Neste contexto boa parte da população de pouco mais de duas mil pessoas emigrou, alguns para o Rio Grande do Sul por volta de 1880. Os antepassados, no século XV, vieram da Alemanha (Alsácia e Lorena, hoje França), especialmente os dois antepassados Rech e Boff (escrevia-se Boeuf). Eram especialistas em desmatar as árvores centenárias daqueles vales e montanhas e faziam delas carvão, vendido em toda a região do Vêneto (Bolzano e Veneza).

Ao chegar ao local, esperava-me um punhado de parentes antigos. Haviam enfeitado a casa com espigas de milho, flores e frutas da época. Um coreto cantava as canções em dialeto vêneto que conhecíamos de casa. De repente, colocado diante da velha casa – um borgo amplo e imponente – senti que aquelas paredes estavam impregnadas do espírito do “poro nonno Boff”. Sim, ele estava lá. Os mortos são apenas invisíveis, mas nunca ausentes. Vi sua figura sempre séria, mas de cultivada elegância, com seu lenço ao pescoço, montado num cavalo bem encilhado, nos visitando na vila vizinha. Ele sempre me punha sentado sobre seus joelhos e me fazia gracejos no estilo hilariante dos italianos. E no fim, escondido de meu pai, me dava algum dinheiro, coisa que eu mais esperava.

Fui dirigir a palavra aos presentes. A voz se afogou na garganta. Deixei que as lágrimas da lembrança e da saudade rolassem dos olhos e pela barba. Sentia, por uma percepção transracional, que ele estava lá. Eu imaginava sua coragem: abandonou tudo, a casa, a terra dos antepassados, a paisagem querida para enfrentar o desconhecido e construir a “Mérica” como diziam (“Merica, Merica,Merica, che cosa sarà questa Merica? Un massolin di fior”: “América, América, América, que coisa será esta América? Um ramalhete de flor”). Visitei cada canto e até  folhei velhos livros que lá ficaram.

À noite  falei para a população. Hoje são apenas duas mil pessoas. A Igreja estava cheia. Contei histórias heróicas dos avós, como primeiramente desbravaram o Rio Grande e depois, os filhos (meus pais) desbravaram a região que hoje é Concórdia no Oeste de Santa Catarina. Como rezavam o rosário aos domingos, cantavam a ladainha de Nossa Senhora em latim e como meu pai, mestre escola, ensinava aos mais velhos o português, pois em casa só falavam o dialeto vêneto.

Vim da pedra-lascada, percorri todas as fases da evolução cultural e hoje, disse, estou aqui com vocês, encontrando as raízes antigas e sempre novas. No fim cantei o que cantávamos na colônia italiana:”sia dottore o avvocato, tutto deve a suo papa. Ma bambini, lo sapete che il vostro nonno avanti sempre va”: “Seja doutor ou advogado, tudo deves a teu pai. Mas, meninos, sabei que o vosso avô sempre vai à frente ”.

No tramontar da vida, tive uma experiência de rejuvenescimento junto às raízes.

(*) Leonardo Boff, teólogo, é autor de “A Águia e a Galinha”, da Editora Vozes.

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