Homilia do Trânsito de São Francisco, no Convento São Francisco, São Paulo – SP, 4/10/2017
Nessa noite santa em que recordamos aquele dia 3 de outubro de 1226, temos duas possibilidades de celebração: a primeira delas é fazermos a memória dos últimos momentos da vida de São Francisco como uma recordação tranquilizante, como um mero acontecimento do passado, deixando-o quase que como em um asilo de paz, de certa forma protegido por um filtro de inofensividade. Trata-se apenas da recordação de um fato acontecido há mais de oito séculos, que em nada toca a nossa vida concreta, servindo apenas para uma rápida e passageira emoção e, de certa forma, como um tranquilizante de nossas consciências.
No entanto, há uma outra forma de memória, que é uma recordação mais desafiadora e até mesmo desconfortante. Trata-se da recordação do passado da qual surgem novas e desafiadoras perspectivas para o presente e para o futuro. Essa segunda maneira de fazermos memória desse trânsito de São Francisco, em que procuramos tirar lições para a nossa atualidade, talvez esteja mais próxima daquilo que ele mesmo nos pediu e advertiu, quando na sua sexta admoestação lembrava que seria “uma grande vergonha para nós, servos de Deus, terem os santos praticado obras dignas de serem exaltadas e nós querermos receber honra e glória somente por contar e pregar o que eles fizeram”. (Adm 6).
Assim, creio que celebrar esse trânsito de São Francisco no mais genuíno espírito de nosso carisma é mais que simplesmente lembrar e destacar os seus últimos momentos e a sua passagem para a vida eterna, mas é comprometer-se em tentar descobrir e vivenciar a mesma proposta que ele abraçou com tanta radicalidade e a maneira como ele foi construindo a sua vida até chegar ao encontro da sua morte.
Pois bem, diante disso, penso que celebrarmos hoje a morte de São Francisco, a quem ele acolheu como sendo irmã, é celebrar e entender, antes de tudo, a sua própria vida. A maneira como ele viveu determinou a maneira como ele morreu.
Conforme nos narram as Fontes Franciscanas, não vemos em Francisco um desespero, uma angústia ou medo apavorante diante do crepúsculo da sua vida. Sua serenidade, a maneira como celebra e abraça a morte, fazendo daquele momento uma solene e alegre liturgia, é fruto de uma vida de busca de conformidade com o Senhor. A maneira como ele viveu, procurando identificar a sua vida àquele a quem Ele tanto amou, lhe conferiu a capacidade de partir alegre e calmamente aos braços do Pai. Desse modo, Francisco nos ensina que a nossa morte é preparada também pela maneira como vivemos. Nossa morte vai ser fruto da maneira como nos relacionamos com Deus, com as coisas, com o nosso corpo, com as pessoas e com toda a criação, pois vida e morte são faces da mesma realidade.
Assim, a celebração o trânsito de São Francisco torna-se também um apelo profético para a nossa sociedade excludente e geradora de uma morte, que nada tem de irmã e nem tampouco é querida e desejada por Deus. Trata-se daquela morte gerada pela negação das condições de dignidade para os mais pobres.
Daquela morte que é fruto do desvio de verbas públicas e do enriquecimento ilícito de tantos. Trata-se daquela morte prematura dos jovens negros e periféricos de nossas grandes cidades. Trata-se daquela morte incitada pelo preconceito, pela exclusão e pelo ódio àquilo que é diferente. Uma morte gerada pela não aceitação das nossas diversidades de credo, gênero, sexo, raça, cor e condição social. Trata-se daquela morte gerada pela violência doméstica. Daquela morte gerada pelo nosso modo de vida consumista e acumulativo. Daquela morte gerada pela indústria bélica, pelo tráfico de drogas, pela exploração sexual e pelo trabalho escravo. Trata-se daquela morte gerada pelo desemprego, que assola mais de 13 milhões de brasileiros. Trata-se, infelizmente, daquela morte incitada e justificada, inclusive, em nome da fé e de Deus. Daquela morte incitada por pessoas que trazendo a bíblia debaixo do braço fazem da palavra de Deus uma arma para julgar, condenar e desqualificar quem pensa, sente, ama, se relaciona e reza diferente.
Diante dessas tantas mortes, queremos, como Franciscanos, dizer que a morte é bem-vinda e é irmã somente quando ela é construída por uma vida de justiça e dignidade. Diante dessas tantas culturas e situações de morte, temos o dever de apresentar ao mundo a figura de Francisco de Assis, que celebrou a sua morte porque foi um grande promotor da vida. Ao olharmos a maneira como ele relacionou-se com as pessoas, com a natureza, com os mais pobres, com as minorias, com os indefesos e frágeis, iremos entender exatamente porque ele pôde acolher a morte de maneira tão leve e feliz.
Francisco nos ensina que só pode morrer bem quem vive bem. Só pode morrer tranquilo e pacificamente quem soube fazer da sua vida também uma promoção da paz. Só pode acolher a morte como irmã quem se fez irmão de toda a criatura. Em um mundo marcado por preconceitos, xenofobia, ódios e divisões, Francisco nos ensina que para acolher a morte como irmã é necessário, antes de tudo, ser irmão de toda a criatura.
Portanto, celebrar a morte alegre e feliz de Francisco significa fazer memória de uma vida de penitência e conversão. De uma vida que não cedeu aos apelos da apropriação, do poder, do domínio, do acúmulo, da corrupção, da mentira, da exclusão, do legalismo, da falsa moralidade e da sedução das coisas mundanas.
Que nessa noite façamos da celebração da morte desse grandioso sol de Assis também um apelo à nossa própria conversão e uma releitura crítica da nossa própria vida. Que aprendamos com São Francisco que a vida e a morte são uma opção, uma escolha de um caminho. Que assim como ele optou em viver a sua vida dentro do caminho das bem-aventuranças e, consequentemente, encontrou-se com a morte com alegria e desprendimento, que nós também possamos viver a nossa vida de acordo com a proposta de Jesus, fazendo opções realmente evangélicas e em favor dos últimos, de modo que ao chegarmos ao termo de nossa existência também possamos acolher a morte não como inimiga, mas como irmã e como porta de acesso à vida.
Que como São Francisco, possamos um dia dizer: louvado sejas meus Senhor pela nossa irmã, a morte corporal. Paz e bem!
Frei Diego Atalino de Melo