Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM
Observando algumas atitudes que têm caracterizado a relação das nossas comunidades de fé com a Eucaristia, entre perplexos e desapontados, constatamos o retorno de atitudes esclerosadas, filhas de um passado que acreditávamos enfim superado: a insistência em conceber a participação do ministro ordenado na celebração da Eucaristia em termos de um poder autônomo e auto-suficiente, meio mágico até, de consagrar o pão e o vinho; a tendência a considerar as palavras da consagração em si mesmas e, portanto, desvinculadas de seu natural contexto: a oração eucarística e, por extensão, a inteira celebração eucarística; a presença real entendida, numa perspectiva objetivista (coisificada), como presença física, somática; a importância exagerada que se tem dado à adoração em detrimento da celebração eucarística. Nestes casos, ao se julgar conferir grande importância à Eucaristia, acaba-se ofuscando seu sentido mais originário.
Apesar de não ter elaborado um tratado sistemático e exaustivo acerca do Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, Francisco revela possuir uma concepção deveras rica e integral deste mistério cristão. Sua peculiaridade, de resto, reside propriamente no ter abraçado com tamanha intensidade o evangelho e os mistérios de Jesus Cristo de modo a sorvê-los até sua última gota. Talvez seja esta a razão pela qual, Francisco atinja o âmago de tais mistérios com uma invejável profundidade e evidência. Não deixa de suscitar admiração o fato que Francisco, no tocante ao Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, tenha alcançado experimentá-lo na sua mais genuína radicalidade, não obstante toda aquela situação de degrado que caracterizava tanto a devoção quanto as querelas teológicas de seu tempo.
Para evitar abusos e especulações ligados à prática da simonia através da multiplicação indevida de Missas, como era costume em muitos mosteiros e paróquias de então, e para dar maior visibilidade e eficácia sacramental à comunhão eucarística, Francisco recomenda insistentemente que os frades, em suas fraternidades, concelebrem a eucaristia. Na Carta enviada a toda a Ordem, ele escreve: “Por isso, admoesto e exorto no Senhor a que, nos lugares onde moram os irmãos, seja celebrada apenas uma missa por dia, segundo a forma da santa Igreja. Se, porém, houver muitos sacerdotes no lugar, por amor da caridade, contente-se um em ouvir a celebração do outro sacerdote; porque o Senhor Jesus Cristo sacia os presentes e ausentes que são dignos dele. Ele, embora pareça estar em muitos lugares, permanece, contudo, indivisível e não conhece qualquer tipo de detrimento, mas, em todo lugar, como lhe agrada, opera em unidade com o Senhor Deus Pai e com o Espírito Santo Paráclito pelos séculos dos séculos. Amém (cf. Ap 1,6)” (Ord 30-33).
Embora não concordasse plenamente com as reivindicações dos movimentos heréticos da época, Francisco parece ter aprendido algo com os Cátaros. É o que ele deixa transparecer ao assumir como própria uma de suas principais reivindicações: que os sacerdotes celebrem de maneira digna o sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor. Na Carta enviada a toda a Ordem, ele escreve: “Rogo também no Senhor a todos os meus irmãos sacerdotes – os que são, os que serão e os que desejam ser sacerdotes do Altíssimo – que, todas as vezes que quiserem celebrar a missa, puros e de maneira pura, ofereçam com reverência o verdadeiro sacrifício do santíssimo corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo com santa e pura intenção, não em vista de alguma coisa terrena nem por temor ou amor a qualquer pessoa, como que agradando aos homens (cf. Ef 6,6; Cl 3,22). Mas toda a vossa vontade – à medida que a graça [vos] ajudar – esteja dirigida a Deus, desejando assim agradar unicamente ao mesmo Senhor altíssimo, porque aí só ele opera como lhe apraz; pois – como ele mesmo diz: Fazei isto em memória de mim (Lc 22,19); 1Cor 11,24) –, se alguém o fizer de modo diferente, torna-se Judas traidor e réu do corpo e do sangue do Senhor (cf. 1Cor 11,27). […] Considerai a vossa dignidade, irmãos (cf. 1Cor 1,26) sacerdotes, e sede santos, porque ele é santo (cf. Lv 19,2). E assim como o Senhor Deus vos honrou acima de todos por causa deste ministério, de igual modo também vós amai-o, reverenciai-o e honrai-o acima de todos. Grande miséria e fraqueza digna de comiseração, quando o tendes assim presente e vos preocupeis com qualquer outra coisa em todo o mundo” (Ord 14-16. 23-25).
Ao manifestar sua particular devoção ao sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, Francisco não reduz este sacramento única e exclusivamente ao momento da consagração. Nem se deixa sucumbir face às tendências em voga naquele tempo de valorizar mais a “comunhão ocular” do que propriamente a “comunhão sacramental”, salientando sobremaneira o rito da elevação da hóstia e do cálice com vinho, após a consagração. Naqueles idos, valorizava-se tanto a contemplação das espécies consagradas em detrimento da comunhão propriamente dita que o Concílio Lateranense IV chegou a prescrever que todo cristão deveria comungar ao menos uma vez no ano, por ocasião da festa da Páscoa da Ressurreição. Francisco, ao contrário, insiste na manducação do Corpo e do Sangue do Senhor como expressão de sua autêntica recepção e da plena participação do sacramento do Altar.
A íntima relação entre comunhão no Corpo e no Sangue de Jesus Cristo a produção de dignos frutos de penitência constitui nota característica da concepção e devoção eucarísticas de Francisco. Neste sentido, ele não perde uma ocasião sequer para trazer-nos à memória a estreita relação entre a participação ao sacramento do Altar e a conversão evangélica. E o fundamento último desta preocupação é a estreita relação entre Sacramento e Palavra tão salientada pelo poverello de Assis. Na Carta enviada a toda a Ordem, ele afirma: “E, porque quem provém de Deus ouve as palavras de Deus (cf. Jo 8,47), devemos nós, por conseguinte, que mais especialmente fomos encarregados dos ofícios divinos, não só ouvir e fazer o que o Senhor diz, mas também, para compenetrar-nos da grandeza do nosso Criador e da nossa submissão a ele, guardar os vasos e demais objetos do ofício, os quais contêm suas santas palavras. Por isso, admoesto e conforto todos os meus irmãos em Cristo a que, onde encontrarem as palavras divinas escritas, da maneira como puderem, as venerem e, no que lhes compete, se elas não estiverem bem colocadas ou se em algum lugar estiverem dispersas sem a devida honra, recolham-nas e guardem-nas, honrando o Senhor nas palavras que ele falou (1Rs 2,4). Pois muitas coisas são santificadas pelas palavras de Deus (cf. 1Tm 4,5), e é em virtude das palavras de Cristo que se realiza o sacramento do altar” (Ord 34-37).
A eficácia das palavras de Cristo é recuperada mediante a peculiar virtude do Espírito Santo. Por esta razão é que o encontro com Cristo, que se dá mediante a busca sincera de seguir seus passos, só é possível na medida em que nos deixamos conduzir por este mesmo Espírito que foi derramado em nossos corações e que habita no seio da comunidade de fé e no coração da história e do cosmos. Neste sentido, a participação plena no sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor só se dá naquele horizonte maior propiciado e mantido pelo Espírito do Senhor. Este horizonte maior é caracterizado pela singular experiência de contemporaneidade entre Cristo e nós. Esta contemporaneidade é que cria uma situação de peculiar empatia entre nós e Cristo, experiência esta que se encontra na raiz de toda e qualquer autêntica experiência de encontro e de comunhão. Francisco se mostra particularmente sensível a esta legítima e intrínseca dimensão pneumatológica da eucaristia.
Nada melhor, para conclusão destas fragmentárias reflexões, do que deixar o próprio Francisco falar. Quiçá nos deixemos contagiar pela profundidade de suas palavras que revelam a singularidade de sua experiência. Aqui fala o místico que, como ninguém, experimenta a estreiteza e o limite das palavras quando se trata de exprimir experiências profundas. Daí a abundância dos superlativos e o contínuo jogo de palavras que caracterizam sobremaneira a linguagem e o estilo do poverello de Assis:
“Pasme o homem todo, estremeça o mundo inteiro, e exulte o céu, quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote, está o Cristo, o Filho de Deus vivo (Jo 11, 27)! Ó admirável grandeza e estupenda dignidade! Ó sublime humildade! Ó humilde sublimidade: o Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, tanto se humilha a ponto de esconder-se, pela nossa salvação, sob a módica forma de pão! Vede, irmãos, a humildade de Deus e derramai diante dele os vossos corações (Sl 61,9); humilhai-vos também vós, para serdes exaltados (cf. 1Pd 5,6; Tg 4,10) por ele. Portanto, nada de vós retenhais para vós, a fim de que totalmente vos receba aquele que totalmente se vos oferece” (Ord 26-29).