Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Está em curso uma terceira guerra mundial “em pedaços”, afirma reiteradamente o Papa Francisco, explicando, na Carta Encíclica Fratelli Tutti – sobre a amizade social: há uma luta de interesses em que todos se colocam contra todos. Nesta luta, vencer se torna sinônimo de destruir, inviabilizando o levantar a cabeça para reconhecer o vizinho, ou ficar ao lado de quem está caído à beira da estrada. E, assim, pela força do ódio, que vai tomando o lugar do amor, da gratidão e do bem, instaura-se uma insana batalha, onde se busca destruir, inescrupulosamente, até mesmo a reputação alheia. Equivocadamente, pensa-se que essa destruição pode significar uma “escada” para a autopromoção. Esse tipo de pensamento não é novidade e acompanha o ser humano em todos os tempos. Talvez, o que vem mudando sejam os instrumentos para atacar a moral do semelhante, especialmente em razão das facilidades oferecidas pelo campo tecnológico. Mas, ao se reconhecer que a busca pela destruição do próximo é problema histórico, constata-se: a humanidade é permanentemente chamada a protagonizar a fraternidade.
Para os cristãos, protagonizar a fraternidade é possível quando se reconhece a centralidade de Cristo Jesus, Mestre e Senhor, na vida e na história. Nessa centralidade reside o desafio de se respeitar diferenças, tornando-as sempre uma riqueza. Isto significa jamais seguir o caminho da destruição. Assim, quando se considera a sociedade contemporânea, a fé cristã, por sua força de correção, pode indicar caminhos e dinâmicas no processo de iluminação da cidadania e na organização política. Mas é preciso absoluto respeito aos princípios que permitam reconhecer a distinção entre o campo da política e a vivência da fé. Quando não há clareza sobre as fronteiras de cada campo, corre-se o risco de um desvirtuamento da fé, impedindo-a de ser o luzeiro que orienta direções, promove reconciliações e até a relativização de escolhas, especialmente daqueles que se apresentam como “donos da verdade”.
A fé não pode ser reduzida a instrumento para embates no campo político, pois a sua vivência autêntica dissipa a busca pela destruição do outro, reconfigurando discursos e escolhas. A fé cristã tem propriedades específicas com dinâmicas experienciais fortes, capazes de alertar sobre o perigo de semear o ódio, de convencer a respeito da honestidade, que faz parte da vocação de toda pessoa para promover a bondade, o bem comum e uma ordem social justa. Cristãos autênticos não buscam destruir. (Re)constroem com a força da verdade, com a primazia do bem e do respeito moral. O ódio é perigoso e estará sempre na contramão da verdadeira fraternidade ensinada por Jesus. Fraternidade é, pois, o grande investimento a ser feito para efetivar o bem, com a correção de rumos e com a reabilitação da verdade. Sem esse investimento, prevalece um “vale tudo” ensandecido, com ataques a pessoas, instituições, povos e nações. Perde-se a razoabilidade mínima, gera-se descrédito, pois disseminam-se afirmações e informações distantes da verdade, obscurecendo mentes e corações, para se alcançar propósitos a qualquer preço.
O ódio cega, traz justificativas para atitudes inconsequentes, até mesmo quando reputações e vidas estão em jogo. No caminho do ódio, torna-se perdedor não somente adversários e a sociedade, mas, também, aquele que investe na destruição, em nome de um êxito ilusório. O Papa Francisco adverte a respeito do comum mecanismo político contemporâneo de exasperar, exacerbar e polarizar. Um método para negar ao outro o direito de existir e pensar de modo diferente. A partir desse mecanismo, recorre-se à estratégia de ridicularizar e de insinuar suspeitas a respeito de condutas, buscando impor um tipo de repressão àqueles com quem se diverge. Um recurso fundamentado no ódio, que manipula e acirra a revolta. Um grave equívoco, pois a verdade sempre prevalece. O bem sempre vence o mal.
Quem se deixa inocular pelo veneno do ódio age em clara oposição à autenticidade da fé cristã. E pode-se correr o sério risco de não se perceber agente do desamor, quando, dentre outros aspectos, deixa-se escravizar pelo mundo obscuro do mercado, da idolatria do dinheiro e, até mesmo, de uma baixa autoestima. Ilusoriamente, tenta-se reagir, buscar reconhecimento, pisando nos outros, com mecanismos de desmoralização. Quem procura construir a própria reputação a partir desses mecanismos não será reconhecido por sua relevância, ou verá, a seu tempo, a própria imagem desmoronar, esvaindo-se feito um castelo na areia. Por isso mesmo, há tanto descrédito em relação à autoridade política, pois muitos que ocupam as instâncias do poder não priorizam a missão de edificar e promover a cidadania. Ao invés disso, atuam a partir dos mecanismos de desmoralização, buscando simplesmente destruir pessoas com perspectivas divergentes.
O horizonte cristão investe no protagonismo da fraternidade – inegociável recurso para um qualificado serviço à sociedade, à promoção da vida como dom de Deus a cada pessoa, sem exceção. Todos, indistintamente, merecem respeito. Oportuno é sempre se recordar de um princípio proclamado pelo apóstolo Paulo: a plenitude da lei é o amor. O amor que vence todo tipo de ódio. Na tarefa de impulsionar o bem comum, os cristãos, ao lado de dos homens e mulheres de boa vontade, por vocação e missão, devem sempre, e cada vez mais, protagonizar a fraternidade.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo é Arcebispo de Belo Horizonte (MG) e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)