Uma reflexão a partir de Mt 18,15-20
Frei Jacir de Freitas Faria [1]
A cada ano, celebramos, entre as aspas, no mês de setembro, a independência do Brasil. Ela foi precedida pela célebre frase: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, diga ao povo que fico!”, proclamada por Dom Pedro I, nos idos de 22 de janeiro de 1822. Essa sua decisão culminou no grito de Independência, às margens do Ipiranga, no dia 7 de setembro do mesmo ano. O Brasil estava liberto de Portugal. Ledo engano. A dependência continua, somente um acordo entre dominador e dominado foi rompido.
Que relação tem isso com o evangelho de Mt 18,15-20, no qual Jesus fala de pecado, de perdão, de correção, de pecador público, de ligar a terra com o céu, de um estar de acordo e, por fim, de formar igreja/comunidade com Ele? Deixo outra inquietação: em que essa fala de Jesus tem a ver com o Deuteronômio? Livro que a Igreja nos propõe como reflexão nesse mês de setembro, considerado o mês da Bíblia, por ser nele celebrada, no dia 30, a memória de São Jerônimo, o patrono dos biblistas.
Comecemos por essa última indagação. O Dt é um livro de leis, por isso é pouco conhecido. Lei é coisa chata. Quem já leu o Código Penal Brasileiro ou o Código de Direito Canônico da Igreja? Poucos. Bom, eu só queria registrar aqui uma ideia sobre esse livro. Como o Dt está na Bíblia, na sua redação final, muitas leis proféticas de amor e cuidado com o pobre, o órfão e a viúva perderam sua importância por causa de leis terríveis, e até a de um Deus vingativo, que os sacerdotes do judaísmo e reis, muitos séculos antes de Jesus, colocaram no livro.
O nosso desafio é ler o Dt na perspectiva profética, sem esses acréscimos. Jesus fez isso, como nos mostra o evangelho de Mt 18,15-20. Vou explicar melhor. Há uma lei em Dt 19,21, chamada de Lei do Talião, que diz: “Vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”. O pano de fundo dessa lei, inspirada em códigos antigos, como o de Hamurabi, era que se teu irmão fizesse uma coisa com você, você deveria fazer o mesmo com ele, pagar na mesma moeda, sem piedade, sem perdão.
Jesus, sabendo disso, e querendo resgatar os ensinamentos dos profetas, propôs o perdão, a reconciliação e o entendimento a partir da linguagem do amor. Jesus sabia que a coisa mais difícil para o ser humano é perdoar. Não fomos feitos para o perdão. “O homem é lobo do homem”, afirmou o dramaturgo romano Plauto, morto no ano 184 a.C. E é nessa perspectiva que a afirmativa “o perdão não existe” ganha corpo. Entre os traficantes, quem erra, quem delata alguém, morre como queima de arquivo. Um juiz não perdoa, ele declara culpado e não culpado, pune com uma sentença, e basta.
Perdão é uma criação das religiões. É um aprendizado que somente humanos podem atingir. O perdão só é possível em pessoas que amam ou que foram amadas por meio de sacrifícios, assim como o amor de mãe e filho.
Muitas vezes, já me perguntei o porquê da penitência que muitos padres ainda impõem aos fiéis depois de uma confissão. Trata-se de castigo pelo pecado? Não, não pode ser! A penitência é simplesmente para nos lembrar que devemos perdoar sempre. Para Jesus, quem consegue perdoar liga a terra com o céu, eternizando-se, pois nós seremos aquilo que fomos em vida. E Jesus ainda disse que o que ligamos na terra está ligado. Isto quer dizer que, na liberdade sagrada que recebemos, somos capazes de criar vínculos, relacionamentos. Como isso é bonito, maravilhoso! Só nós, os humanos, somos capazes disso. Coisas não criam laços afetivos. Temos a responsabilidade de criar laços, desatando os nós da depressão, do sofrimento, que estão em nós e nos outros. Para que isso aconteça, só existe um remédio: o perdão, seguido da penitência do amor. O perdão nos torna infinitos como Deus. Quem perdoa não perde, mas ganha o amor, uma nova relação na finitude do ser humano que sonha ser perfeito, semelhante a Deus.
Com o perdão, Deus, o Pai Eterno, em Jesus, faz sua morada definitiva no meio de nós. Nem é preciso construir outra morada vultosa para ele, como outrora, o templo de Jerusalém, lugar de doutores e sacerdotes que desvirtuaram o verdadeiro sentido da lei que cuida dos pobres. Infelizmente, isso ficou evidente na notícia que causou muita tristeza no Brasil. A denúncia contra o Padre Robson sobre o desvio de dinheiro, que era destinado para a construção de um templo para o Pai Eterno. “Pequeninos” que enviaram rios de dinheiro, em nome da fé, para a obra em Trindade (GO) estão escandalizados! Deus não quer e não precisa de um sino de seis milhões para anunciar a sua presença. Isso é uma afronta aos pobres. É hora de a Igreja pedir perdão. É hora de seus líderes retomarem o caminho da profecia do Dt. Voltar às origens. Ensinar e criar laços de vida e não da morte de Deus.
Bom, para terminar, preciso retornar ao começo. Dom Pedro I, com o seu sim, ficou no Brasil para formar comunidade com os que estavam no país gigante pela própria natureza. Quisera sim, que se transformasse, em dias atuais, em perdão, em relações justas e fraternas entre nós brasileiros, em todos os seus níveis: religioso, cultural, econômico, político etc. E que a penitência imposta fosse o fim do racismo, das desigualdades sociais, da corrupção política e de tantos outros sofrimentos que assolam o nosso país. Amém!
[1] Doutor em Teologia Bíblica pela Faje (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA-BH). É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de treze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).