Frei Volney J. Berkenbrock
Diálogo inter-religioso como missão da Igreja
A relação da Igreja Católica com as outras religiões mudou decisivamente com o Concílio Vaticano II. Ali, no documento Nostra Aetate se afirma que a Igreja “exorta por isso seus filhos a que, com prudência e amor, através do diálogo e da colaboração com os seguidores de outras religiões, testemunhando sempre a fé e vida cristãs, reconheçam, mantenham e desenvolvam os bens espirituais e morais, como também os valores sócio-culturais que entre ele se encontram” (NA, 2). Com esta afirmação, o diálogo inter-religioso passou a fazer parte da missão da Igreja Católica e não mais a ser um elemento a ser praticado à margem da Igreja, como algo meio clandestino. Infelizmente, da decisão do Concílio não se seguiu muita prática e para boa parte dos cristãos católicos, o contato de fiéis com membros de outras tradições religiosas ainda é visto com desconfiança. O Papa João Paulo II, numa inspiração sem precedentes no ano de 1986, irá convidar lideranças de diversas religiões para um encontro de oração pela paz em Assis, cidade do santo do diálogo, do irmão universal. Este encontro foi um marco para o catolicismo no que diz respeito ao diálogo inter-religioso. A partir dele foram feitos outros, a cada ano, no mundo inteiro, para ecoar o que se costumou chamar de “espírito de Assis”. O Papa Francisco repetiu este gesto em 2016, trinta anos após o evento protagonizado por João Paulo II. Mas no que tange ao diálogo inter-religioso, o Papa Francisco elevou a temática a uma importância muito maior que a de um encontro de oração. Esta importância dada por Francisco ao tema está dentro do proposta de seu pontificado.
Igreja em saída
Desde sua eleição para a função de bispo de Roma e Sumo Pontífice da Igreja Católica, Francisco tem insistido na expressão “Igreja em saída”. Esta sua proposta tem sido acolhida e entendida de maneiras diferentes dentro do catolicismo: há os que entendem ser um convite à ação missionária, de a Igreja reforçar sua atuação de anúncio, de pregação e propagação da fé. Há os que entendem que o apelo do Papa Francisco por uma “Igreja em saída” deve ser entendido como um convite para a Igreja sair de suas posições fixas, de ser mais maleável, de ser mais compreensiva, de ser menos estrutura e mais vivência, de ser menos direito canônico e mais Evangelho, enfim, de que se trata de um apelo por mudanças na Igreja como estrutura eclesial. Há os que entendem ser a proposta do Papa por uma “Igreja em saída” um pedido para que a Igreja não fique presa ao seu mundo, para que a Igreja vá ao encontro das sociedades, de suas esperanças e problemas, para que a Igreja tenha coragem de agir não somente em âmbito eclesial, mas também no âmbito das questões humanitárias, econômicas, sociais e de diversidade religiosa. Estas interpretações não são necessariamente contraditórias. O que fica claro a todos é a proposta do Papa por mais iniciativa e dinamicidade.
A humanidade como foco
O próprio Papa tem tomado muitas iniciativas que impulsionam as compreensões de “Igreja em saída” tanto na linha de ser uma Igreja mais maleável e compreensiva, como de uma Igreja que vá ao encontro do outro, de sua realidade e seus desafios. E um destes desafios assumidos pelo Papa Francisco tem sido o de colocar a humanidade no foco de suas ações e não tanto a Igreja. A ação da Igreja deve ser entendida como uma ação em favor da humanidade, humana e humanizadora. Isto desde pequenos gestos em Roma, como a criação de lavanderias para que os moradores de rua possam lavar suas roupas, como sua intervenção em questões que afetam milhões de pessoas, como as econômicas e a dos refugiados. E nessa busca de colocar a humanidade em foco de sua ação, o Papa Francisco entende que é necessário dialogar com as tradições religiosas. E ele tem tomado a iniciativa de ir ao encontro de fiéis de outras tradições. É impressionante o número de viagens que o Papa Francisco tem feito a países onde a maioria da população segue outra tradição que não a cristã.
Assim, desde sua eleição, Francisco já visitou (em 2014) a Turquia (maioria muçulmana), a Albânia (também de maioria muçulmana); a Coreia do Sul (maior religião é a budista, com ¼ da população); a Jordânia (maioria muçulmana); Israel (de maioria judaica) e a Palestina (de maioria muçulmana). Nesta viagem à Terra Santa, Francisco se encontrou com dois grã-rabinos judaicos e com o grã-mufti muçulmano na esplanada das mesquitas em Jerusalém. Em 2015 visitou a Bósnia e Herzegovina (maior parte muçulmana); o Sri Lanka (de maioria budista). No Sri Lanka se encontrou inclusive com representantes das quatro grandes tradições religiosas do país: Budismo, Hinduísmo, Islã e Cristianismo. No ano de 2016, além de ter participado do encontro em Assis, na jornada mundial pela paz, onde se encontrou com representantes de diversos grupos cristãos, mas também representantes do Judaísmo, Islã e Tendai, o Papa Francisco foi ao Azerbaijão, de maioria muçulmana, onde manteve um encontro com estes fiéis na mesquita da capital Baku. No ano de 2017, Francisco foi a Myanmar (maioria budista), Bangladesh (maioria muçulmana) e Egito (também de maioria muçulmana). Nesta viagem ao Egito, o Papa Francisco realizou um pronunciamento que pode ser considerado o seu programa para o diálogo inter-religioso. E, finalmente, no ano de 2019, Francisco já viajou aos Emirados Árabes Unidos, de maioria muçulmana e ao Marrocos, país de quase totalidade muçulmana. No Marrocos foi emblemática a apresentação musical feita com a presença do Papa Francisco e representantes de diversas tradições religiosas, onde foi apresentada uma peça com uma cantora judia, uma cristã e um cantor muçulmano. Esta lista de viagens é apenas uma pequena amostra tanto da centralidade que o tema do diálogo inter-religioso tem em seu pontificado, como também a forma como tem feito Francisco: ir ao encontro, visitar e dialogar no espaço de tradições religiosas diversas da sua. Nestes encontros, o foco dos pronunciamentos e das preocupações do Papa não tem sido a diferença religiosa, mas a busca do engajamento e ação em conjunto em prol da humanidade e dos problemas que a assolam. Assim, disse o Papa no encontro com os muçulmanos no Egito:
Desde a antiguidade, a cultura surgida nas margens do Nilo foi sinônimo de civilização: no Egito, levantou-se alta a luz do conhecimento, fazendo germinar um patrimônio cultural inestimável, feito de sabedoria e talento, de conquistas matemáticas e astronômicas, de formas admiráveis de arquitetura e arte figurativa. A busca do saber e o valor da instrução foram opções fecundas de desenvolvimento empreendidas pelos antigos habitantes desta terra. E constituem opções necessárias também para o futuro, opções de paz e em prol da paz, porque não haverá paz sem uma educação adequada das gerações jovens. Nem haverá uma educação adequada para os jovens de hoje, se a formação que lhes for dada não corresponder bem à natureza do homem, ser aberto e relacional.
E convidou todos a unir-se pela sabedoria, não para se impor, mas para a superação da violência ao se colocar o ser humano no centro:
A sabedoria procura o outro, superando a tentação da rigidez e fechamento; aberta e em movimento, humilde e ao mesmo tempo indagadora, sabe valorizar o passado e pô-lo em diálogo com o presente, sem renunciar a uma hermenêutica adequada. Esta sabedoria prepara um futuro em que se visa fazer prevalecer, não a própria parte, mas o outro como parte integrante de si mesmo; aquela não se cansa de individuar, no presente, ocasiões de encontro e partilha; do passado, aprende que do mal brota unicamente mal, e da violência só violência, numa espiral que acaba por nos fazer prisioneiros. Esta sabedoria, rejeitando a avidez de prevaricação, coloca no centro a dignidade do homem, precioso aos olhos de Deus, e uma ética que seja digna do homem, rejeitando o medo do outro e o temor de conhecer mediante os meios de que o dotou o Criador.
Nestes encontros todos, o Papa Francisco demonstrou o que entende por “Igreja em saída”, onde não é ela que está no centro, mas a humanidade e seu bem estar.
Diálogo como caminhar juntos e não como gesto diplomático
Outro elemento importante a se destacar é a compreensão que o Papa Francisco tem de diálogo inter-religioso. Não se trata de fazer encontros de caráter diplomático, onde cada qual saúda respeitosamente a outra parte e a isto nada mais se segue. Francisco entende que o diálogo inter-religioso é um esforço por caminhar juntos, por construir algo juntos. No encontro no Egito, destacou sua compreensão de diálogo inter-religioso:
Precisamente no campo do diálogo, sobretudo inter-religioso, sempre somos chamados a caminhar juntos, na convicção de que o futuro de todos depende também do encontro entre as religiões e as culturas. Oferece-nos um exemplo concreto e encorajador, neste sentido, o trabalho do Comitê Misto para o Diálogo entre o Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e o Comitê de Al-Azhar para o Diálogo. Há três diretrizes fundamentais que, se forem bem conjugadas, podem ajudar o diálogo: o dever da identidade, a coragem da alteridade e a sinceridade das intenções. O dever da identidade, porque não se pode construir um verdadeiro diálogo sobre a ambiguidade nem sobre o sacrifício do bem para agradar ao outro; a coragem da alteridade, porque quem é cultural ou religiosamente diferente de mim, não deve ser visto e tratado como um inimigo, mas recebido como um companheiro de viagem, na genuína convicção de que o bem de cada um reside no bem de todos; a sinceridade das intenções, porque o diálogo, enquanto expressão autêntica do humano, não é uma estratégia para se conseguir segundos fins, mas um caminho de verdade, que merece ser pacientemente empreendido para transformar a competição em colaboração.
E Francisco apresenta o caminho do diálogo não como uma opção possível, mas como o caminho único para se avançar como civilização humana:
Educar para a abertura respeitosa e o diálogo sincero com o outro, reconhecendo os seus direitos e liberdades fundamentais, especialmente a religiosa, constitui o melhor caminho para construir juntos o futuro, para ser construtores de civilização. Porque a única alternativa à civilização do encontro é a incivilidade do conflito; não há outra. E, para contrastar verdadeiramente a barbárie de quem sopra sobre o ódio e incita à violência, é preciso acompanhar e fazer amadurecer gerações que, à lógica incendiária do mal, respondam com o crescimento paciente do bem: jovens que, como árvores bem plantadas, estejam enraizadas no terreno da história e, crescendo para o Alto e junto dos outros, transformem dia-a-dia o ar poluído do ódio no oxigênio da fraternidade.
Todos são chamados a este caminho. Nele todos são irmãos e irmãs. E, assim recorda o Papa Francisco, este caminho de encontro já foi apontado por outro Francisco, o de Assis, quando foi ao encontro do sultão, justamente no Egito:
Para este desafio tão urgente e apaixonante de civilização, somos chamados, cristãos, muçulmanos e todos os crentes, a prestar a nossa contribuição: «Vivemos sob o sol de um único Deus misericordioso. (…) Assim, no verdadeiro sentido, podemos chamar-nos, uns aos outros, irmãos e irmãs (…), dado que, sem Deus, a vida do homem seria semelhante ao firmamento sem o sol». Que se levante o sol duma renovada fraternidade em nome de Deus e surja desta terra, beijada pelo sol, o alvorecer duma civilização da paz e do encontro. Interceda por isto mesmo São Francisco de Assis, que, há oito séculos, veio ao Egito e encontrou o Sultão Malik Al Kamil.
Para o Papa Francisco, a responsabilidade do diálogo inter-religioso aponta para uma nova forma de convivência mundial, para o que ele chama de “civilização da paz e do encontro”. Aqui claro que o Papa Francisco não entende o diálogo inter-religioso como um evento, como algo que se pode fazer de vez em quando, para se mostrar alguma civilidade na convivência. Não, o diálogo inter-religioso para o Papa Francisco é um verdadeiro programa, e com a responsabilidade de engendrar outro tipo de civilização. Na sua trajetória pessoal, o diálogo inter-religioso não é algo que surge quando de sua eleição para o papado. Antes de sua eleição, ainda como arcebispo de Buenos Aires, era já muito conhecido seu esforço pelo diálogo, do qual surgiu a obra “Sobre o céu e a terra”, na qual o Cardeal Bergoglio dialoga com o rabino Abraham Skorka.
Buscar aliados para um projeto maior: o bem da humanidade
Francisco, ao ir ao encontro, sobretudo do Islã, tem claro que a construção de um projeto pelo bem da humanidade passa também por um projeto de alianças. O projeto de paz, tão necessário à humanidade em múltiplos aspectos, não é resultado de uma única mão.
No Egito, não surgiu apenas o sol da sabedoria; também a luz policromática das religiões iluminou esta terra: aqui, ao longo dos séculos, as diferenças de religião constituíram «uma forma de enriquecimento recíproco ao serviço da única comunidade nacional». Encontraram-se crenças diferentes e misturaram-se várias culturas, sem se confundirem mas reconhecendo a importância de se aliarem para o bem comum. Alianças deste gênero são ainda mais urgentes hoje. Ao falar disto, gostaria de usar como símbolo o «Monte da Aliança» que se ergue nesta terra. Antes de mais nada, o Sinai lembra-nos que uma autêntica aliança sobre a terra não pode prescindir do Céu, que a humanidade não pode pretender encontrar-se em paz excluindo Deus do horizonte, nem pode subir ao monte para se apoderar de Deus (cf. Ex 19, 12).
Entre os grandes desafios que as religiões devem se colocar hoje, o Papa Francisco destaca o combate à violência, violência esta feita muitas vezes em nome da religião:
Juntos, a partir deste lugar de encontro entre Céu e terra, de alianças entre as nações e entre os crentes, reiteramos um «não» forte e claro a toda a forma de violência, vingança e ódio cometida em nome da religião ou em nome de Deus. Juntos, afirmamos a incompatibilidade entre violência e fé, entre crer e odiar. Juntos, declaramos a sacralidade de cada vida humana contra qualquer forma de violência física, social, educativa ou psicológica. A fé que não nasce dum coração sincero e dum amor autêntico a Deus Misericordioso é uma forma de adesão convencional ou social que não liberta o homem, mas esmaga-o. Digamos juntos: quanto mais se cresce na fé em Deus, tanto mais se cresce no amor do próximo.
E aponta claramente que a garantia da paz não irá se dar pelo armamento:
Com efeito, de pouco ou nada serve levantar a voz e correr ao rearmamento para se proteger: hoje há necessidade de construtores de paz, não de armas; hoje há necessidade de construtores de paz, não de provocadores de conflitos; de bombeiros e não de incendiários; de pregadores de reconciliação e não de arautos de destruição.
Mas a construção da paz não é algo em si mesmo. Ela só será possível se houver engajamento em outras situações de violência, como a pobreza:
Para evitar os conflitos e construir a paz é fundamental trabalhar por remover as situações de pobreza e exploração, onde mais facilmente criam raízes os extremismos, e bloquear os fluxos de dinheiro e de armas para quem fomenta a violência. Indo ainda mais à raiz, é necessário deter a proliferação de armas que, se forem produzidas e comercializadas, mais cedo ou mais tarde acabarão também por ser usadas. Só tornando transparentes as turvas manobras que alimentam o câncer da guerra é que será possível impedir as suas causas reais. A este compromisso urgente e gravoso, estão obrigados os líderes das nações, das instituições e da informação, responsáveis de civilização como nós, convocados por Deus, pela história e pelo futuro a iniciar, cada qual no seu próprio campo, processos de paz, não se esquivando a estabelecer bases sólidas de aliança entre os povos e os Estados.
Poder-se-ia continuar citando o projeto de diálogo inter-religioso do Papa Francisco em muitos outros aspetos. Os aqui citados deixam, entretanto, já claro o suficiente o caminho por ele apontado.
Quem não está contra nós…
Não é de se estranhar, pois, que os posicionamentos do Papa Francisco têm encontrado resistências em grupos que apostam no confronto, na violência e no armamento como solução para um mundo mais humano. E não se trata apenas de um posicionamento político. Trata-se especialmente de um projeto econômico que quer impor um modelo civilizatório de dominação. Mesmo dentro do próprio catolicismo há quem não queira assumir o desafio do diálogo para a promoção de uma nova civilização. Papa Francisco chegou a afirmar que “é melhor ser ateu que um católico hipócrita”.