Frei Sandro Roberto da Costa, ofm (*)
Desde os inícios da Ordem, os momentos de encontro fraterno mais intensos ocuparam um lugar importante na vida dos irmãos, seja pela necessidade de pensar e organizar juntos os rumos da fraternidade e da missão, seja pelo prazer de se encontrar, conversar, comer, se alegrar juntos. Francisco sempre tomou as decisões mais importantes da fraternidade junto com seus irmãos. Depois de 1209, quando o papa Inocêncio III deu a aprovação oral para a Regra, os irmãos se espalharam por todas as regiões da Itália, e o seu número cresceu rapidamente. Sentiu-se a necessidade de uma reunião mais articulada para avaliar a caminhada e fixar algumas normas mais precisas. Em 1212 Francisco reuniu seus frades nos arredores de Assis, próximo ao mosteiro de São Verecundo. Diz o cronista do mosteiro: “Nos últimos tempos, o bem-aventurado Francisco pobrezinho freqüentes vezes se hospedou no mosteiro de São Verecundo… E nas imediações do mesmo mosteiro, o bem-aventurado Francisco realizou um capítulo dos trezentos primeiros irmãos, e o abade e os monges, generosamente, como puderam, doaram as coisas necessárias. Houve grande abundância de pão de cevada, de sêmola, de trigo, de milho, água potável límpida e vinho de maçã diluído em água para os mais fracos, como atestava o velho senhor André, que esteve presente; e houve grande abundância de favas e legumes” (Legenda da Paixão de São Verecundo, Fontes Franciscanas e Clarianas, 1449).
Entre estes momentos de encontro de todos os frades, destaca-se aquele que aconteceu em Assis, na festa de Pentecostes, no ano de 1217, que passou para a história como o Capítulo das Esteiras. É São Boaventura quem nos dá uma idéia desta grande reunião fraterna: “Também, já multiplicados os irmãos no decorrer do tempo, o solícito pastor começou a convocá-los ao Capítulo geral no eremitério de Santa Maria da Porciúncula, a fim de distribuir a cada um deles a porção da obediência, segundo a medida da distribuição divina na terra da pobreza (cf. Sl 77,54; Gn 41,52). Aí, embora houvesse penúria de todas as coisas necessárias – e uma vez se reunisse uma multidão de mais de cinco mil irmãos -, no entanto, com a ajuda da divina clemência, havia suficiência de alimento, acompanhava uma boa saúde corporal, e fluía a alegria espiritual”. (Legenda Maior IV, 10, 1-2, Fontes Franciscanas e Clarianas 576).
Imaginemos os frades se preparando para a viagem: hábito surrado, numa das mãos uma sacola com o mínimo necessário, na outra um cajado, sandálias aos pés ou descalços, punham-se a caminho. A festa de Pentecostes ocorre geralmente entre o fim do inverno e o início da primavera na Europa. A neve começa a derreter, aparecem os primeiros brotos nas árvores, as beiras das estradas se enfeitam de flores, os pássaros enchem os ares com seus cantos, festejando a vida que renasce. Os frades viajavam a pé, em grupo ou dois a dois, cruzando vales e montanhas, estradas poeirentas, sujeitos a assaltos, às intempéries. Mas viajavam contentes, pois iriam se encontrar com Francisco, aquele que lhes tinha mostrado o caminho do seguimento de Cristo e do seu Evangelho. Muitos frades iriam encontrá-lo pela primeira vez. Ver Francisco, abraça-lo, ouvi-lo, conversar com ele, saciar-se na fonte de sua santidade e sabedoria, poder partilhar com ele as angústias, dúvidas, incertezas e vitórias, valia qualquer sacrifício.
Calos nos pés, faces cansadas, hábitos empoeirados e suados, tudo o que os frades desejavam quando chegavam a Assis para o Capítulo era um leito macio, um banho quente, um prato de sopa. Como acomodar todos esses homens? Onde alojá-los? Como alimenta-los? Os habitantes de Assis não tiveram dúvida. Organizaram-se e, generosamente, ofereceram aos frades o que tinham de melhor. Como abrigo, esteiras. Daí o título de Capítulo das Esteiras. A mesa era frugal, mas farta. O cronista Jordão de Jano, um dos primeiros frades a ser enviado para a missão na Alemanha, nos dá um relato de um desses Capítulos, realizado em 1221: “… no ano do Senhor de 1221, no dia 23 de maio… no santo dia de Pentecostes, o bem-aventurado Francisco celebrou o Capítulo geral em Santa Maria da Porciúncula. A este Capítulo, conforme o costume então existente na Ordem, compareceram tanto os professos quanto os noviços; e os irmãos que compareceram foram calculados em três mil irmãos. A este capítulo esteve presente o senhor Rainério, cardeal diácono, com muitos outros bispos e religiosos. Por ordem dele, um bispo celebrou a missa. E acredita-se que o bem-aventurado Francisco então tenha lido o Evangelho, e outro irmão a epístola. No entanto, como os irmãos não tivessem casas para tantos irmãos, acomodavam-se sob esteiras em campo espaçoso e cercado, comiam e dormiam em vinte e três mesas dispostas de maneira ordenada… Neste Capítulo, o povo da terra servia com espírito de prontidão, fornecendo pão e vinho, alegres por uma reunião de tantos irmãos e pelo regresso do bem-aventurado Francisco. Neste Capítulo, o bem-aventurado Francisco, tendo tomado o tema “Bendito o Senhor meu Deus que adestra minhas mãos para o combate” (cf. Sl 18,35), pregou aos irmãos, ensinando as virtudes e admoestando à paciência e aos exemplos a dar ao mundo. De modo semelhante era feito o sermão ao povo: e tanto o povo quanto o clero ficavam edificados. Quem poderia explicar quanta caridade, paciência, humildade, obediência e alegria fraterna existiam naquele tempo entre os irmãos? De fato, não vi na Ordem um Capítulo como este, tanto pela multidão dos irmãos quanto pela solenidade dos que serviam. E embora fosse tão grande a multidão dos irmãos, no entanto, o povo fornecia tudo tão alegremente que, após sete dias de Capítulo, os irmãos foram obrigados a fechar a porta e a nada receber e a permanecer dois dias a mais para consumirem as coisas oferecidas e recebidas” (Crônica de Jordão de Jano, Fontes Franciscanas e Clarianas, 1270-1271). Uma vez terminado o Capítulo, os irmãos retornavam para suas casas, levando na mente e no coração as palavras e ensinamentos de Francisco, mas também o carinho e o exemplo de generosidade e doação dos habitantes de Assis, que tanto amavam Francisco e seus frades.
(*) Frei Sandro Roberto da Costa, é professor de História da Igreja e de Patrística no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ).
É doutor em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.