Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O modo franciscano de comunicar a partir de acenos da Encíclica Fratelli tutti

14/12/2020

                                                                                                                                 Imagem: Vatican Media

Frei Gustavo Wayand Medella, OFM

Fratelli Tutti, a mais recente Carta Encíclica do Papa Francisco, foi franciscanamente concebida, gerada e apresentada ao mundo pelo Sumo Pontífice. Desde o título, passando pela cerimônia simples e solene de sua assinatura sobre o túmulo do Poverello, às vésperas do Dia do Santo de Assis, e pelo tema apresentado e proposto (fraternidade e amizade social), o documento é um atestado da pertinência e da atualidade da vida e do testemunho de São Francisco como resposta e remédio a muitos questionamentos e doenças do tempo hodierno.

Nesta breve reflexão, alguns acenos do “modo franciscano de comunicar” assumido e proposto pelo Santo Padre a partir de trechos da introdução e do primeiro capítulo da referida Encíclica. Num primeiro momento, uma breve contextualização em torno da expressão que dá o título do documento. Em seguida, o destaque de alguns aspectos do testemunho de São Francisco como iluminadores para uma prática comunicacional conforme aos valores evangélicos e, por fim, uma possível resposta franciscana a alguns desafios da comunicação atual.

Fratelli tutti

O título do documento coincide com o vocativo do qual São Francisco lança mão em sua Sexta Admoestação (ADM 6), que tem como tema “A imitação de Cristo”. Importante ressaltar que as Admoestações têm sua origem na comunicação oral do santo com seus confrades, especialmente a partir da pregação nas assembleias capitulares ou em outros colóquios com os irmãos. O conteúdo é marcado predominantemente por um estilo orientativo e exortativo. O conjunto completo é composto por 28 admoestações que são introduzidas por citações bíblicas ou constituídas em torno de conceitos ou palavras da Sagrada Escritura.

Uma outra admoestação a que o Santo Padre se refere, também no primeiro parágrafo da Encíclica, é a de número 25, continuação da anterior (24), que tem como tema “O verdadeiro amor”:

XXIV – O amor desinteressado e gratuito: “Bem-aventurado o servo que tanto ama seu irmão quando este está doente e não pode satisfazê-lo, como quando está com saúde e pode satisfazê-lo”.

XXV – O amor ao próximo e ao distante / evitar o pecado da detração: Bem-aventurado o servo que tanto ama e respeita seu irmão quando [este] estiver longe dele quando estiver com ele; e não disser por trás dele aquilo que, com caridade, não pode dizer diante dele.

A partir do conceito de proximidade e distância geográfica, o Papa destaca que o verdadeiro amor fraterno conhece fronteiras e deve se dirigir a pessoas próximas e/ou distantes, conhecidas e/ou desconhecidas. De acordo com a inspiração de São Francisco, o Santo Padre ensina que fraternidade é amar o outro de antemão porque ele é ser humano como eu sou, é filho de Deus como eu sou.

Como esforço concreto na busca da construção da fraternidade, o Papa cita a coragem de São Francisco em ir até o Oriente para se encontrar pessoalmente com o Sultão Malik-al-Kamil (800 anos em 2019), num contexto de Cruzadas, de guerra santa e de muita animosidade. Isso porque, para o santo, “a fidelidade ao seu Senhor era proporcional ao amor que nutria por seus irmãos e irmãs” (Cf. FT 3), conforme se constata na instrução apresentada na Regra não Bulada: “Quando fordes entre os sarracenos e outros infiéis, não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus” (RnB 16).

O modo franciscano de comunicar

Ainda no contexto da introdução, quando de certa maneira o Papa conclui a breve explicação para a escolha de São Francisco como inspirador da encíclica, o Papa Francisco apresenta, em um único parágrafo, as características que fundamentam o modo franciscano de comunicar:

[Francisco] Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus; compreendera que “Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus” (1 Jo 4, 16). Assim foi pai fecundo que suscitou o sonho de uma sociedade fraterna, pois “só o homem que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai”. Naquele mundo cheio de torreões de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos. Foi ele que motivou estas páginas (FT 4).

Pacífico (“Não fazia guerra dialética impondo doutrinas”) – O Santo de Assis não tinha preocupação em se apresentar como o “dono da razão” nem de impor o seu ponto de vista à custa da desqualificação daqueles que pensavam diferentes.

Amoroso (“Comunicava o amor de Deus”) – Atribuindo toda boa obra ao Sumo Bem, dedicou sua vida à busca constante de comunicar o amor de Deus em palavras e obras, pelo testemunho e pela ação.

Dialogal (“Aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas”) – A disposição para o diálogo pressupõe enxergar o outro como um dom de Deus que pode e deve ser valorizado em seus valores e opiniões.

Periférico – “Lá [nas áreas miseráveis das periferias excluídas], Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz”) – O santo não tinha ambição em disputar os primeiros lugares, entre os grandes e poderosos, mas sentia-se feliz e em paz entre os últimos. A periferia foi o lugar que escolheu para comunicar a presença de um Deus amoroso e solidário que tomara conta de seu coração e de sua vida.

Livre (“Libertou-se de todo o desejo de poder e domínio sobre os outros”) – Vencendo o desejo de posse e domínio, Francisco tem as mãos e o coração livres para abraçar, acolher e servir, comunicando dessa maneira a verdadeira liberdade dos filhos e filhas de Deus.

Pontifical (“Fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos”) – São Francisco muitas vezes destacou-se como verdadeiro construtor de pontes. Em sua vida dedicou-se à promoção da paz e do diálogo, como fez na intermediação do conflito entre o bispo e o prefeito de Assis e entre o lobo e a Comunidade de Gubbio, apenas citando dois exemplos mais conhecidos.

Desafios à comunicação e possíveis “remédios franciscanos”

Se na Introdução da Encíclica o Papa situa o leitor em relação à influência de São Francisco, na reflexão proposta pelo documento, no Primeiro Capítulo, denominado “As sombras de um mundo fechado”, o Santo Padre se ocupa em descrever uma série de ameaças e desafios que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal. A partir de alguns apontamentos de desafios que podem ser compreendidos a partir da ótica da comunicação, são propostas algumas provocações da espiritualidade franciscana que podem auxiliar na superação de tais obstáculos.

No n.14, o Santo Padre denuncia o esvaziamento de sentido e a manipulação do que ele denomina “grandes” palavras, como democracia, liberdade e justiça. Na motivação desta ação destrutiva, o desejo de dissolver a consciência histórica e esvaziar o pensamento crítico. Aos termos descritos, podem se somar conceitos como o de família, ordem, paz, segurança etc. Como resposta franciscana a tal movimento, pode-se pensar na exortação que São Francisco apresenta na sétima admoestação, que tem como título “Que a boa operação siga a ciência”. O santo de Assis destaca a importância da sintonia entre pregação e testemunho, entre discurso e vida, entre palavra e ação. A proposta franciscana é, portanto, que os valores pronunciados gerem compromisso e conversão na vida de quem os pronuncia.

Exasperar, exacerbar e polarizar são três verbos que o Papa apresenta no n.15. A exemplo do esvaziamento a que se refere o número anterior, a promoção destas três ações tem como objetivo semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante. A resposta a esse perigoso artifício poderia vir da conhecida “Oração de São Francisco” que, embora não seja propriamente de sua autoria, traduz com fidelidade a postura que procurou em vida cultivar. “Onde houver ódio, que eu leve o amor. Onde houver discórdia, que eu leve a união. Onde houver dúvida, que eu leve a fé”.

Ao n. 25, quando comenta sobre o medo gerado pelas guerras, atentados e perseguições, o Papa faz um alerta: “O que é verdade quando convém a uma pessoa poderosa, o deixa de ser quando já não a beneficia”. Ele chama atenção para o perigo de uma “verdade de conveniência”, manipulada de acordo com os interesses de quem pode mais. Recusar-se a ouvir a voz dos pequenos e marginalizados configura-se num gesto de violência e anulação do outro. A esta perigosa tentação, a humildade vivida por São Francisco e descrita por Frei Tomás de Celano pode ser iluminadora: “[Francisco] aprendera por revelação o sentido de muitas coisas; discutindo-as diante dos outros, antepunha [às suas] as opiniões dos outros. Acreditava que o parecer dos companheiros era mais seguro e que o modo de ver alheio era melhor que o próprio” (2Cel 140,12).

Um ilusório cisma instalado entre indivíduo e comunidade é denunciado pelo Pontífice ao n.31. Ele nasce de um distanciamento entre “a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada” e gera uma cultura do confronto, baseada na lógica do “quem pode mais, chora menos”. São Francisco, por sua vez, reconhece que não existe esta contraposição e que o caminho da realização humana passa pela estrada do encontro fraterno. Em seu Testamento, ele mesmo associa a dádiva dos irmãos que vêm ao seu encontro com a revelação divina da forma de vida que ele e a fraternidade nascente deveriam abraçar. “E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do Santo Evangelho” (Test 14).

Ao abordar o tema “A ilusão da Comunicação”, a encíclica faz uma crítica aos riscos que podem se potencializar num contexto de comunicação digital, dentre eles um possível perigo de substituição das relações mediadas pelas máquinas ao relacionamento direto e presencial entre as pessoas quando, segundo o documento, “faltam gestos físicos, expressões de rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor e a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43). Diante deste possível distanciamento, o gesto do abraço e do beijo ao leproso posto em prática por São Francisco aparece como paradigma de uma atitude determinada de abrir-se à acolhida e à proximidade, construindo uma comunicação completa e transformadora.

Ainda dentro da mesma temática, outro aspecto preocupante é a contradição que aparece entre um crescente fechamento e a diminuição da distância, quando a proximidade passa a ser motivada por um espírito de mera curiosidade e descompromisso com outro. Neste contexto, a intimidade, agora passível de total exposição, passa a se tornar uma espécie de espetáculo. “Na comunicação digital, quer-se mostrar tudo, e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que esquadrinham, desnudam e divulgam, muitas vezes anonimamente” (FT 42). Este comportamento produz também, com frequência, uma atitude de descarte e exclusão: “Dilui-se o respeito pelo outro e, assim, ao mesmo tempo que o apago, ignoro e mantenho afastado, posso despudoradamente invadir até ao mais recôndito da sua vida” (Idem).

Nesta mesma direção, aparece o risco de uma “agressividade despudorada” que, de acordo com o Papa “encontra um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis” (FT 44). Diante de tais perigos, mais uma vez se pode recorrer à Adm 25, citada já no início desta reflexão: “O amor ao próximo e ao distante”. A pergunta de base que cada um poderia fazer a si mesmo é: “Como eu agiria com esta pessoa (a quem ofendo, desprezo e excluo) se ela estivesse aqui, face a face, diante de mim?”. Caridade, respeito e empatia devem ser sempre a regra para toda e qualquer relação, seja ela on-line ou off-line (presencial).

Finalizando

Com a simplicidade e lucidez que lhe são próprias, o Papa Francisco adianta, logo nas primeiras linhas de sua reflexão, que a Encíclica Fratelli Tutti, é apresentada “como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” (FT 6). A reflexão aqui apresentada, por sua vez deseja, de modo muito modesto, despertar o interesse em torno deste rico documento que o Santo Padre oferece à humanidade. O olhar escolhido foi o da comunicação. Muitas outras perspectivas podem ser adotadas. Mais importante é construir um processo que leve à sociedade da reflexão à ação, da tomada de consciência à conversão.

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