Frei Luiz Iakovacz
O Dia da Bíblia é comemorado em todos os países. No Brasil, teve a seguinte caminhada: em 1971, as paróquias de Belo Horizonte (MG) uniram-se e decidiram: durante o mês de setembro, todos incentivariam o estudo bíblico, se possível, com a participação do maior número de famílias. Para tanto, o Serviço de Animação Bíblica (SAB) elaboraria um roteiro simples e acessível. Após esta experiência, o próprio povo insistiu para que se continuasse nos anos seguintes.
Vendo os bons frutos que isso poderia trazer para a Igreja no Brasil, a CNBB, em 1985, instituiu “Setembro, Mês da Bíblia”. Por quê?
Porque no dia 30 celebramos a festa da São Jerônimo (340-421 d.c.), conhecido como um “apaixonado pela Palavra de Deus”. Dotado de extraordinária inteligência e gosto pelo estudo, deixou seu país, no Oriente, e dirigiu-se a Roma onde conheceu o cristianismo e foi batizado. Ordenado presbítero, sentiu-se atraído pela Bíblia, dedicou-se ao estudo do hebraico, aramaico e grego, os idiomas em que foi escrita.
Notando o ardor deste jovem, o Papa Dâmaso o convidou para que traduzisse a Bíblia para o latim, pois as traduções existentes eram “imperfeitas e diversificadas”.
Jerônimo aceitou o pedido e intensificou os estudos, consultando exegetas e visitando os lugares onde Jesus viveu e pregou, a Palestina. Inclusive, por vários anos, ficou recolhido nas grutas de Belém, onde ultimou a tradução.
Escreveu, também, comentários sobre textos difíceis que a própria Bíblia admite existir dentro dela mesma. É preciso, então, que alguém a explique, como fez o diácono Felipe no encontro que teve com o etíope (cf. At 8,26-40).
O conjunto deste imenso trabalho recebeu o nome de “Vulgata”. A Igreja Católica adotou esta tradução como oficial em suas celebrações e estudos. É por isso que celebramos o mês da Bíblia, em setembro.
São Jerônimo nos deixou este lapidar ensinamento: “Ignorar as Escrituras, é ignorar a Cristo”.
A cada ano, nos é proposto o estudo de um livro bíblico. Este ano (2022) é o livro de Josué, com a inspiração: “O Senhor, teu Deus, estará contigo por onde quer que vás” (Js 1,9). A proposta deste Texto-Base é nos aproximar da jornada de Josué pela posse da Terra Prometida. Todo o capítulo 2, com seus 24 versículos trata do estranho e enriquecedor fato da prostituta Raab.
Quando Israel vem do Egito e quer entrar na Palestina, obrigatoriamente, tem que passar pelo rio Jordão, junto ao qual está a cidade de Jericó. Josué, para conquistá-la, envia dois espiões para obterem o maior número de informações.
Os dois empreendem a tarefa e vão hospedar-se num prostíbulo onde encontram a prostituta Raab. Prostíbulo é um lugar estratégico porque ali, normalmente, circulam todos os tipos de mercadores, comerciantes, povo em geral.
A presença destes dois israelitas se espalha e a notícia chega aos ouvidos das autoridades que delegam pessoas para capturá-los. Raab confirma a presença deles, mas que já saíram. Se forem ao seu encalço, logo os acharão.
Na realidade, ela os escondeu no terraço. Em contato com eles, lhes dá muitas informações. A cidade está “apavorada” com a possível invasão porque sabem dos grandes feitos que Javé realizou para libertá-los da escravidão egípcia, e as derrotas impostas aos reis amorreus Seon e Og. Por isso estamos “apavorados e desencorajados”. O mais importante, porém, é sua declaração de fé: “Estou ciente de tudo o que Javé fez”.
Em seguida, pede-lhes que, assim como ela os protegeu e os informou, que o mesmo seja feito com ela e sua família. Ambos fizeram um pacto mútuo. O selo deste pacto é o “cordão vermelho/escarlate”, através do qual “ desceram da janela do terraço que ficava rente ao muro”, pondo-os, assim, em liberdade. Aconselhou-os a ficarem três dias nas montanhas, fora do alcance dos que os procuravam. E o “cordão vermelho permaneceu na janela”.
Ao regressarem a Josué, expuseram-lhe tudo o que aconteceu, inclusive, o compromisso de preservar Raab e sua família. Jericó foi conquistada, o pacto foi observado, Raab e familiares começaram a fazer parte do povo de Israel (cf. Js 6,20-25). Há quem sustente que Raab se tornou uma piedosa prosélita e até que se casou com Josué.
No transcorrer da história de Israel, Raab é apresentada como modelo de fé em Javé. Ela “ouviu e creu”, pois a “fé brota do ouvir” (Rm 10,17). Por três vezes é citada no NT. Mateus inclui seu nome na lista da genealogia de Jesus (cf, Mt 1, 5). O apóstolo Paulo afirma que “pela fé, a prostituta Raab não pereceu com os incrédulos porque acolheu os espiões que vieram reconhecer a região” (Hb 11,31). Por último, a fé é concretizada em obras: “Não foi a prostituta Raab, considerada justa em suas obras quando hospedou os exploradores e os fez regressar por outro caminho”? (Tg 2,25).
Para os hebreus, o “cordão vermelho” os faz lembrar o sangue do cordeiro pascal com o qual untaram os umbrais das casas e, os que nela estavam, foram preservados da morte (cf. Ex 12,21-28). Para os cristãos, recorda-lhes a memória da morte salvadora da cruz. Deste episódio, poderá ter nascido o axioma “fora da Igreja não há salvação” (extra ecclesiam, nulla salus) ou, ainda “Igreja santa e pecadora” (casta meretrix).
Várias lideranças religiosas entraram em conflito com Jesus por causa do rigorismo/ritualismo/legalismo. A estas, deixou este o alerta: “Em verdade, em verdade vos digo: os publicamos e as prostitutas vos precederão no Reino dos Céus” (Mt 21,31). Isto continua valendo no presente de hoje, e no amanhã do futuro!
Frei Luiz Iakovacz, OFM, frade desta Província da Imaculada, é coordenador da Fraternidade Santo Antônio de Santana Galvão de Colatina (ES).