Frei Almir Guimarães
Já estamos no segundo semestre de 2020. Quando nos abraçávamos e arregalávamos olhos para ver os fogos no romper do novo Ano Novo nunca podíamos ter imaginado o que haveria de acontecer neste ano que não aconteceu. Esse confinamento, esse tempo completamente atípico. E, por incrível que pareça, há até os que estão se acostumando. Somos animais que se acostumam… Uma amiga minha me dizia: “Estou em casa. Tenho tarefas que realizo sem sair de casa e a contento. Home office. E curto minha família. Tomara que dure mais tempo”. Não precisamos partilhar de seu parecer. Mas está aí.
Duas janelas. A janela da sala e a janela da telinha da televisão. Vemos o sol nascer e sumir. A chuva cair e vento a baloiçar as árvores. As azaleias chegando junto com o manacá da serra. Pelas duas janelas. Ruas desertas, aeronaves estacionadas, mascarados nas ruas fora do tempo do carnaval, parques transformados em hospitais de campanha, milhões de contaminados, partidas de futebol sem público. Tudo vimos e continuamos a ver pela janela de casa ou pela janela da televisão.
Por vezes, nem sabemos em que mês estamos e que dia da semana nos é dado viver. Todos os dias as mesmas coisas: remédio que presta e remédio que não presta, falta de leitos nos hospitais e ambulatórios, pessoas de fibra nos hospitais tentando salvar vidas. Dia e noite. Incansavelmente.
No meio de tudo ainda nuvens de gafanhotos, vendavais em Santa Catarina, mulheres sendo espancadas em casa por seus companheiros, aviões e helicópteros caindo na água e na terra, espertalhões fazendo falcatruas com a compra superfaturada de medicamentos para a pandemia, ministro que sai e ministro que chega, ministro que chega mas não chega e se demite ou é demitido antes da posse. Pela janela da televisão na telinha do celular… ah… esses celulares que fazem tortos nossos pescoços.
Propaganda. Produtos com desconto, sem taxa de entrega. Sapatos, roupas, máscaras sofisticadas de grife, cursos e mais cursos on-line, perfumes e moças bonitas com olhos verdes e deslumbrante frescor que se oferecem para encontros mais sofisticados. “Todo mundo está comprando uma determinada marca de carro. Você não perderá esta oportunidade”. Na telinha.
E a dor das mortes de parte de famílias e de famílias inteiras, sepultamentos… milhares de mortos. Lágrimas, desespero. Num sepultamento, desesperada a filha da senhora que havia morrido se lança no asfalto…
Missas on-line, igrejas abrindo com gel, máscaras, tudo meio rápido. “Fazei isso para celebrar a minha memória”. Idosos poupados, fora do circuito das missas. Poupados.
Precisamos coragem. Muitos aproveitaram ou aproveitam este tempo de “reclusão” para alguns acertos existenciais.
♦ Nossa fé se reveste de toda nudez: sem ritos, sem cantos, sem presença perto de presença. Uma fé nua, despojada, uma presença do Senhor na noite. Fé seca. Sem expressões quentes. Sem alarido. Silêncio de Deus. Creio. Obrigado pelo sol e pela vida. Eis aqui a serva do Senhor. Mas ele está perto. Ele que viveu a aventura humana e não fugiu. Fé pura. Não sei quantas vezes pensei nesta frase de Bonhoeffer: “Deus não nos salva da cruz, mas na cruz”.
♦ Esse tempo de retiro, queira ou não, nos leva a pensar, refletir. A não ser que nos tenhamos dopado com tantos vídeos… e vídeos… e fake news. Queremos ser nós mesmos. Verdadeiramente nós. Deixar cair o que tem menos importância. Um busca de uma libertação. Grandes pessoas, grandes firmas, jovens e menos jovens tiveram seus projetos interrompidos de maneira violenta. Tantos sonhos. Queremos viver, viver…
♦ Somos frágeis. Ninguém escapa. Experiência de impotência. “Derruba os poderosos de seus trono”. Numa pobreza total quem sabe compreendemos que “Ele de condição divina se tornou pobre…pobre até a morte”. Deus vive em Jesus uma terrível impotência. Coragem de assumir o negativo da vida.
♦ Com tantas mortes e sepultamentos que vemos pelas janelas vamos estar mais carinhosamente perto de vidas que necessitam de apoio, remédio, aperto de mão, sorriso, sopa quente, direitos respeitados, óleo em feridas expostas que custam a cicatrizar. “Eu estive doente e tu me visitaste”.
As vezes dá vontade de fechar as janelas e puxar as cortinas!
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM, estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral Familiar. Atualmente reside no Convento do Sagrado Coração de Jesus de Petrópolis (RJ).