Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

“Não te preocupes em voltar logo: estou pronta para esperar-te por toda a eternidade”

18/09/2007

Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM

A publicação das cartas espirituais de Teresa de Calcutá, na ocorrência do 10º aniversário de sua morte, está provocando uma enorme celeuma. A julgar pelas notícias amplamente difusas pelos Mass media, o livro Mother Teresa: Come Be My Light (Madre Teresa: Vem, seja minha luz) – publicado pelo Pe. Brian Kolodiejchuk, Missionário da Caridade e postulador da causa de canonização de Madre Teresa – tornaria públicas revelações inéditas que afetariam a imagem da beata de Calcutá. Estas cartas que, em diversos momentos de sua vida, Madre Teresa escreveu a seus diretores espirituais fazem-nos, de fato, pensar. Elas revelam sua paradoxal experiência de Deus e, portanto, confirmam a singularidade de seu itinerário existencial e espiritual.

Contemporâneos de Madre Teresa, nós seguimos de perto o itinerário da mulher audaciosa que, movida por inspiração divina, deixou tudo para melhor cuidar dos mais pobres entre os pobres. Empanturradas de tantas imagens, nossas cansadas retinas registraram uma em especial: a daquela mulher – rosto marcado por rugas profundas, sorriso largo e pés rachados – que caminha pelas sarjetas de Calcutá cuidando de seus pobres queridos. Acompanhamos ainda de perto tudo o que foi se constituindo em torno dela: a chegada das primeiras companheiras, a expansão do movimento por ela iniciado e, sobretudo, o crescimento vertiginoso de suas atividades de solidariedade e de cuidado para com os mais pobres. Apesar da ampla cobertura que a Media sempre lhe deu, não poderíamos sequer imaginar o que se passava na intimidade do coração daquela mulher serena e incrivelmente terna.

Somente agora, temos notícia da oprimente escuridão que pesava com gravidade sobre ela, a partir de sua nova vida a serviço dos pobres, tornando sobremaneira opaco seu horizonte: “Há tanta contradição em minha alma, um profundo anelo de Deus, tão profundo a ponto de fazer mal, um sofrimento contínuo – e com isso o sentimento de não ser querida por Deus, rejeitada, vazia, sem fé, sem amor, sem zelo… o céu não significa nada para mim, parece-me um lugar vazio”.
Esta longa escuridão da alma parece, desde então, não ter mais deixado Madre Teresa senão por breves intervalos de tempo. E como revelam suas cartas espirituais, com o passar do tempo, colocando-se na trincheira aberta pelos grandes místicos da tradição cristã, dentre os quais se destaca São João da Cruz, Madre Teresa não apenas suportou com resignação estas pesadas trevas. Ela aprendeu a amá-las, considerando-as uma graça especial que lhe fora concedida pelo Pai de se solidarizar mais intimamente com o Cristo sofredor que, na cruz, fez a experiência do mais radical abandono. “Comecei a amar minha escuridão, porque creio agora que ela é uma parte, uma pequeníssima parte, da escuridão e do sofrimento nos quais Jesus viveu sobre a terra”.

Todavia, o que mais chama a atenção é o fato de Madre Teresa ter conseguido esconder esse seu grande sofrimento interior mesmo daquelas pessoas que lhe eram próximas. Mais que esconder, ela como ninguém soube transfigurá-lo naquele seu terno e perene sorriso. Este silêncio de Madre Teresa se converte, portanto, na pérola mais preciosa de sua interminável noite escura. Silêncio este que só foi rompido graças a seus diretores espirituais e ao Cardeal Picachy, que descumpriram a exigência da própria Madre Teresa de destruir todas as suas cartas. “Todo o tempo a sorrir, – escreve Madre Teresa – dizem de mim as irmãs e as pessoas. Pensam que o meu íntimo seja repleto de fé, confiança e amor… se somente soubessem como o meu ser alegre é apenas um manto com o qual cubro vazio e miséria!”

Madre Teresa parece ciente que a vaidade religiosa é a mais perniciosa de todas. Tornar público esse seu tormento interior poderia se tornar uma maneira insidiosa de chamar a atenção sobre si, sobre sua noite escura, julgando-se no rol das almas seletas que vivenciaram, na tradição dos grandes místicos, esta peculiar experiência religiosa. Talvez, Madre Teresa acolhesse este tormento interior como o espinho na carne do qual nos fala São Paulo: “Para que eu não me ensoberbecesse pela grandeza das revelações, foi-me dado um espínho na carne” (2Cor 12,7). Esta longa noite da alma talvez a tenha preservado de se deixar embevecer pela publicidade em torno dela e pelos imensos holofotes que lhe foram projetados no curso de sua vida. Ao receber o prêmio Nobel pela paz, ela escreve: “A dor interior que sinto é tão grande que não experimento nada por toda a publicidade e o falatório das pessoas”.

No entanto, como já tivemos ocasião de assinalar, Madre Teresa abraça este seu longo tormento interior como caminho privilegiado de solidariedade a Jesus, que assumiu a dor e o sofrimento provocados pelo abandono como expressão de seu amor solidário para conosco. Ela consuma, desse modo, seu discipulado, tornando-se discípula fiel daquele que morreu crucificado, clamando: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Mt 27,46). Compreende-se assim a peculiar mística vivida por Madre Teresa e suas companheiras: compartilhar o grito “Tenho sede” de Jesus sobre a cruz. “Se a pena e o sofrimento, minha escuridão e separação de ti te dá uma gota de consolo, meu Jesus, faz de mim aquilo que queres… Imprime em minha alma e na vida o sofrimento do teu coração… Quero saciar a tua sede com cada gota individual de sangue que podes encontrar em mim. Não te preocupes em voltar logo: estou pronta para esperar-te por toda a eternidade”.

Este silêncio de Madre Teresa faz pensar. Ninguém jamais duvidou da extrema solidariedade que ela logrou para com os mais pobres entre os pobres. O que não imaginávamos é que ela também tivesse vivido uma inusitada solidariedade com tantos que experimentam de maneira angustiante e dolorosa o silêncio de Deus. São, de fato, cada vez mais numerosos os que hoje em dia não fazem do próprio ateísmo uma bandeira de reivindicação ou um motivo de alarde. Vivem na pele a angústia existencial da perda do sentido e, a seu modo, atravessam a noite escura do espírito.

Existe de fato o ateísmo de protesto que se caracteriza pela recusa de Deus. Mas também existe o ateísmo de quem se sente – ao menos assim lhe parece – recusado por Deus. Este é precisamente o ateísmo dos místicos que, como Madre Teresa, atravessam longas noites do espírito, sentindo-se rejeitados por Deus. Não seria também esta a experiência de Jesus que, na cruz, sente-se a-teu, vale dizer, sem Deus? E que vive este extremo abandono como uma experiência singularmente solidária e, portanto, redentora? Escreve Madre Teresa: “Dizem que a pena eterna que sofrem as almas no inferno é a perda de Deus… Em minha alma eu experimento precisamente esta terrível pena da condenação, de Deus que não me quer, de Deus que não é Deus, de Deus que na realidade não existe. Jesus, peço-te, perdoa a minha blasfêmia”.

Mas, ao mesmo tempo, Madre Teresa manifesta uma consciência ímpar: sua participação na obra redentora de Cristo que assume o abandono da cruz como experiência de solidariedade com todos os pecadores e distantes de Deus “Quero viver neste mundo tão distante de Deus e que virou as costas à luz de Jesus, para ajudar as pessoas, tomando sobre mim algo do seu sofrimento”. Toda mística verdadeira pressupõe esta dilacerante experiência do ateísmo, vivido como distância de Deus. Não existe outra maneira de se cultivar a presença de Deus do que se exercitar no desejo de tal proximidade por entre os escombros angustiantes de sua distância e ausência.

Os místicos vivem, portanto, numa proximidade inusitada com aqueles que sofrem na pele a angústia do abandono de Deus. Ambos experimentam de maneira singular a vertigem de lançar-se no fundo. É quanto exprime Madre Teresa, em uma de suas cartas a seu pai espiritual: “Estive a ponto de dizer Não… Sinto-me como se algo um dia ou outro devesse despedaçar-se em mim. […] Ora por mim, para que eu não recuse Deus nesta hora. Não o quero, mas temo poder fazê-lo”.

A partir do conteúdo de suas cartas espirituais, Madre Teresa se nos afigura como uma mulher excepcional. Ela transfigurou sua sede de Deus numa incansável busca de solidariedade com Seus filhos e filhas preferidos, os pobres mais pobres. Nela, portanto, não se percebe nenhum ranço de separação, e muito menos de contraposição, entre pobreza material e pobreza espiritual. Ela nos recorda que somente um despojamento interior vivido na mais profunda radicalidade é capaz de propiciar uma solidariedade efetiva para com os pobres e desvalidos deste mundo. E nos ensina ainda que é no cuidado solidário para com os mais pobres que se aguça a sede de Deus e que se intensifica o desejo Dele.

E assim fazendo, ela se nos revela como uma mulher profundamente solidária com os homens e as mulheres de seu tempo. Encontramo-nos, na verdade, divididos entres aqueles que vivem a angústia da crise de sentido e aqueles que se sentem anestesiados pelo “excesso de crença”. Talvez o maior legado de Madre Teresa consista no testemunho de uma intrínseca reciprocidade entre desejo de Deus e solidariedade efetiva para com suas criaturas mais frágeis. Diante deste testemunho de singular experiência humana e espiritual, cabe-nos, afinal, a pergunta: por que insistir em reduzir os santos e santas a meros dispensadores de benefícios e graças, ou a personagens que estão aí apenas para nos dar bom exemplo?

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