Maria Clara Bingemer (*)
Há alguns dias, o Papa Francisco presenteou a Igreja e toda a humanidade com mais uma de suas adoráveis e inspiradas surpresas. Em audiência concedida ao presidente da Comissão para a Doutrina da Fé, Cardeal Luís Ladaria, o Papa decretou a alteração do parágrafo 2267 do Novo Catecismo da Igreja Católica, que admitia, em alguns casos extremos, a pena de morte.
Assim dizia o texto do Catecismo, de 1992: “A doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor.”
Na verdade, a decisão do Papa significa voltar às fontes, autênticas, genuínas e puras da Escritura. Nela, a lei mosaica já proibia atentar contra a vida humana: “Não matarás”. Recolhendo este mandamento, o evangelho de Mateus transmite a interpretação que dela faz Jesus de Nazaré. Ele diz aos discípulos no Sermão da Montanha: Ouvistes o que foi dito aos antigos: “Não matarás. Aquele que matar terá de responder em juízo”. Eu, porém, digo-vos: “Quem se irritar contra o seu irmão, será réu perante o tribunal” (Mt 5, 21-22).
A partir daí a morte do outro passa a ser para o cristão o interdito maior. E a vida do outro, tão preciosa e inviolável quanto a própria. E assim sendo de tal maneira que qualquer violência contra a vida humana, mesmo em seus estágios mais frágeis, ameaçados, diminuídos e prejudicados, é gesto que atinge o coração do próprio Deus.
Ao longo dos séculos, buscando uma forma criativa de ser fiel à doutrina da qual foi constituída guardiã, a Igreja chegou a flexibilizar a radicalidade dessa lei maior. Admitiu em muitos tempos e espaços que o Estado eliminasse pessoas que haviam cometido delitos graves em nome de um desejado bem comum.
Mas sempre houve vozes que se levantaram contra essa compreensão da lei que crê poder eliminar outra vida sob a alegação de que esta é nociva à sociedade. Nos países onde a pena de morte ainda vigora, sempre houve ativos grupos de cristãos que protestaram contra a mesma, pedindo sua abolição e extinção.
Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco tem sinalizado a profunda discordância que sente em relação à existência da pena capital. Falou explicitamente contra a mesma em 2015, em seu discurso no Congresso dos Estados Unidos, país onde ainda há execuções, sobretudo em alguns estados.
Agora, para não deixar mais dúvidas quanto à incompatibilidade de qualquer conivência da Igreja com tal instituição legal, decide alterar o texto do parágrafo 2267, onde se encontra explicitada a doutrina oficial católica. Afirmou na audiência concedida ao Cardeal Ladaria: “A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa, e se compromete com determinação por sua abolição em todo o mundo.”
O fundamento desta decisão radica na convicção profunda de que a dignidade da pessoa humana não pode ser perdida sequer após ter cometido os mais graves crimes. Por isso, a conduta a ser adotada com alguém que violou a lei e cometeu atos ilícitos e mesmo hediondos, deve visar sua redenção e recuperação, e não sua eliminação do convívio com seus semelhantes. Os sistemas de detenção devem garantir ao mesmo tempo a defesa dos cidadãos e a possibilidade de o réu redimir-se definitivamente.
Tal como transmitiu o cardeal Ladaria, o Papa deseja com esta medida encorajar “a criação de condições que permitam a eliminação da pena de morte onde ainda ela ainda acontece”. Claramente, a mudança no texto do catecismo reflete a “total oposição do Papa Francisco à pena capital”.
O fundo mais profundo dessa alteração doutrinal tão decisiva e fundamental mergulha na identidade do próprio Deus. Não revelam a Escritura e a Tradição eclesial um Deus que se move segundo o mérito de suas criaturas, premiando os bons e punindo (ou eliminando) os maus. A justiça de Deus é restaurativa, dando aos seres humanos não o que merecem, mas aquilo de que necessitam para viverem plenamente sua vocação de filhos de Deus. E essa não se perde nem após cometer pecados e crimes, pois a misericórdia está sempre à espera para devolver a todos sua inocência original.
Não há santo sem passado nem pecador sem futuro, parece nos dizer Francisco com sua decisão. Que o Novo Catecismo da Igreja Católica possa, com essa importante renovação, fazer brilhar cada vez mais para o mundo a identidade de Deus, que é amor sem fim e misericórdia sem limites, e criou o homem e a mulher à Sua imagem e semelhança.
(*) Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.