Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O evangelho sobre o qual vamos refletir hoje é de Jo 14,1-12. Jesus diz que na casa do Pai há muitas moradas e somente com Ele é que podemos percorrer o caminho que nos leva ao encontro do Pai. O contexto dessa passagem é a preparação para a morte de Jesus. A comunidade joanina, após apresentar os vários sinais da presença de Jesus, na morada terrestre como enviado do Pai, traz à tona as relações dos discípulos com Jesus e entre eles, tendo em vista a volta de Jesus para a morada celeste.
A nossa vida é um eterno parto. Partimos do ventre de nossas mães para uma nova morada. O choro inicial se mistura à dor que nos espera do outro lado da vida uterina. A vida é um eterno partir até o dia em que alguém vai chorar pela nossa partida definitiva. Entre um parto e outro, sofremos, curamos feridas que se abrem constantemente, amamos, odiamos etc. Viver não é para qualquer um! Uma coisa é certa: nenhum de nós escapa da morte!
Gosto muito de ler esse texto de João em velório, um momento dolorido nas vidas dos que permanecem vivos. Para o morto, as portas do caminho terrestre se fecham para sempre. Perguntas pairam no ar: Jesus virá nos buscar depois da morte? Iremos para o céu? Como Jesus pode ser o caminho que leva ao Pai? Como está sendo o nosso caminho de fé? Como estamos vivendo no pós-pandemia? Mudamos o nosso caminhar?
Jesus sabia que o seu fim estava próximo. Os discípulos tomaram consciência disso e se entristeceram, pois o Reino de Deus ainda não tinha acontecido. Jesus anima os discípulos: “Tendes fé em Deus, tendes fé em mim também” (14,1). E acrescenta que na casa do seu Pai há muitas moradas. Lá eles estariam, um dia, com Ele. Como seria essa morada? Um lugar físico, material, um espaço que nos espera? As tradições judaica, apócrifa e rabínica falam de sete céus. A morada de Deus estaria no terceiro céu (Sl 115,16). Daí as expressões “Reino dos Céus”. Como é o céu? Ninguém sabe. No imaginário, conhecemos o inferno. Para o inferno não é preciso se preparar. Como lugar, o inferno existe? Outra pergunta sem resposta.
Mais do que pensar em um espaço físico, Jesus, ao falar de morada no céu, quer chamar a atenção para as relações que acontecem entre nós. Chegar à Morada Celeste é consequência de uma vida baseada no caminho do amor. Nossas relações começam com o cordão umbilical que é rompido para surgir novas relações. A mãe morre, mas a relação eterna com ela, não. Mãe é cordão umbilical que não rompe nunca. Jesus permaneceriam vivos nas ações e relações dos discípulos. Era isso que Jesus estava querendo dizer para os seus discípulos, quando também disse: “Eu vou, mas voltarei e vos levarei comigo, a fim de que, onde eu estiver, estejais também vós” (14,3-4).
E Jesus ainda disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Tomé pergunta: “Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” Felipe pede: “Senhor, por favor, mostra-nos o Pai.” Os judeus entendiam que a Torá, traduzido por Lei, é na verdade um caminho. Seguir a Torá é fazer caminho de justiça em todas as esferas da vida.
Na época de Jesus, havia um grupo de cristãos chamado gnósticos que acreditavam que viemos da Luz (Plenitude) e para lá voltaremos, após conhecermos o caminho de volta, por meio do conhecimento da centelha de luz que está em nós, o que nos libertaria do mundo material, fazendo o caminho de volta para a Plenitude. Conhecer a luz significa fazer o processo de desencarnar e voltar para a Luz plena, a Plenitude. O cristianismo não aceitou o gnosticismo pelo fato de ele não aceitar a ressurreição.
Para a comunidade de João, Jesus é o único caminho que nos leva ao Pai, pois Ele e o Pai são um, indivisíveis, assim como mãe e filho. Jesus nos faz conhecer Deus e nos leva a conhecer Deus a partir da fé, das obras e da vida de oração. Morada tem a mesma origem de namorar, que é entrar na morada do outro para aí se estabelecer. Jesus e o Pai estão na mesma morada.
Viver é um constante fazer caminho. Podemos escolher o nosso caminho: o do bem ou do mal (Sl 1), o da vida ou da morte (Jr 21,8). Nas relações, no caminho até à morada celeste, vale a pena pensar na recente pandemia da Covid-19. Na reclusão de nossas casas, perguntávamos sobre o que seria de nós quando a pandemia terminasse. A pandemia terminou. Somos os mesmos ou mudamos os nossos comportamentos? Sim e não. Houve um ressignificar, um reinventar a vida. O fim da pandemia criou um desejo louco de encontros presenciais, viagens e eventos culturais e religiosos. Parece que havíamos perdido o rumo das coisas. Aprendemos a ser virtuais na formação, na religião, na educação etc. Nunca se ouviu tanto a expressão “on-line”. O medo e os desequilíbrios psíquico e emocional aflorados continuam a nos rondar com a mesma força do tradicionalismo, do rigorismo religioso, dos que querem voltar ao passado de uma Igreja que cerceia, controla, a liberdade das pessoas. É assustador ver a juventude pensando e agindo desse modo.
A lembrança do medo pandêmico deve nos levar a sermos audaciosos nas relações. Nos caminhos de nossas vidas, alimentemos a coragem e a fé para nos reinventar sempre, amar sempre, esperar sempre até o dia do encontro definitivo com o Pai e com aqueles que um dia amamos em vida. A vida para quem acredita não é passageira ilusão. A certeza da morte faz a vida renascer nas relações terrenas, tendo em vista a vida eterna em Deus.
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ