Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é o Sl 144. Estamos diante de uma poesia de ação de Graças a Deus misericordioso. O salmista é um poeta. Cada poeta uma poesia. Cada poesia um poeta. São várias as poesias, vários os poetas e vários são os modos de nos dirigirmos a Deus com uma prece. No livro dos Salmos, ou melhor, de hinos, pois nem todo salmo é um salmo, constam 150 orações. Salmo era um instrumento de oito cordas usado para certos tipos de hinos. Como é predominante, eles deram nome ao livro bíblico.
Poesia se lê como poesia. Buscar o âmago de um texto é encontrar a profundidade de quem o produziu. Rezar com os Salmos é o mesmo que “beber no próprio poço” de nossa espiritualidade. É reviver a experiência com o Sagrado, feita a partir do divino que mora dentro de cada ser humano e que o capacita a se relacionar, viver e amar. Os Salmos são a expressão visível do tempo de Deus (cósmico) que fez morada no tempo do ser humano (cronológico).
Duas palavras-chave conduzem o salmista ou a comunidade que produziu o Sl 144, a misericórdia e a piedade. Uma terceira complementa a oração, a ternura. “A tua ternura Senhor vem me abraçar. E atua bondade infinita me perdoar”, assim como cantou um dos poetas de nosso tempo, Padre Zezinho, com a música “A Ti meu Deus”. Amor, justiça e compaixão elucidam essa tríade.
Que relação existe entre a misericórdia e a justiça no mundo bíblico e em nosso tempo? Como e por que agir com misericórdia? Essas questões-chave para compreender o sentido da misericórdia.
Na Bíblia encontramos os substantivos para falar de misericórdia: hésed e rahamim. Hésed foi traduzido para o grego por Éleos, e tem relação com o útero da mulher que gera a vida, nas suas entranhas maternas. Por isso, misericórdia é como o amor da mulher mãe, pois ela ama sem pedir nada em troca. Ama porque ama, com ternura, piedade e compreensão.
Um detalhe interessante é que 90% do uso de misericórdia na Bíblia se refere ao agir misericordioso de Deus. Ao ser humano resta o desafio de ser misericordioso como Deus. Misericórdia, em português, é a tradução para o latim de hésed. Misericórdia é composto dos termos miser e cor. Miser é a condição extremada de sofrimento e de angústia de alguém que suplica por misericórdia. Cor é o coração que, próximo à miséria, se sente queimado, destruído por um fogo causado pela injustiça. O miserável é o que suplica por algo que lhe falta ou que lhe foi tirado injustamente. Deus é justiça. Portanto, misericórdia, a essência de Deus é fazer justiça. Esse modo de conceber Deus está presente também na tradução grega do hebraico hésed para éleos, que significa ter compaixão diante do sofrimento do outro. De éleos surgiu outro termo grego para dizer esmola, eleemosúne. O espanhol conservou essa origem grega ao dizer limosna para esmola. Assim, esmola, misericórdia e justiça e Deus são modos diferentes para dizer a mesma coisa. Misericórdia tem a ver com justiça que é o outro nome de Deus!
Para nós cristãos, depois de Santo Agostinho, que ligou esmola com caridade, ficou difícil associar a justiça com a misericórdia. O melhor seria dizer fazer esmola, conforme o pensamento judaico, que “dar esmola”. Fazer esmola é fazer justiça, praticar a misericórdia divina. É transformar a nossa realidade social, ferida pela falta de compaixão da sociedade, de nossos políticos, dos empresários, dos ricos etc. Na perspectiva da oração, ter a compaixão como Deus é rezar, louvando-O pela sua misericordiosa e suplicando-Lhe que nos ensine a agir com misericórdia, com justiça, perdão e paciência sempre.
Na contramão do Direito Canônico da Igreja Católica que cita somente duas vezes o substantivo misericórdia, o Papa Francisco marcou o seu pontificado com a instituição do ano da misericórdia, em 2016. Para ele, é urgente fazer misericórdia em todos os âmbitos da vida humana, neste nosso tempo em que o perdão é um hóspede raro em nossas vidas. Ele afirmou: “Somente uma Igreja misericordiosa resplandece. Se tivéssemos que esquecer, embora apenas por um instante, que a misericórdia é ‘aquilo que mais agrada a Deus’, cada esforço nosso seria em vão, porque nos converteríamos em escravos das nossas instituições e de nossas estruturas, por mais renovadas que possam ser, mas sempre seríamos escravos”. [2] Para o Papa Francisco, missão é caminhar para periferia levando a misericórdia
Rezar falando de um Deus misericórdia não foi difícil para os judeus do Primeiro Testamento, muito menos para os cristãos do Segundo Testamento, após ter entendido que Jesus era Misericórdia de Deus no meio deles. Diferentemente dos salmistas que falam naturalmente de relação com Deus, vendo em tudo a sua ação, nós, ao contrário, não percebemos a realidade desse mesmo modo. A oração para nós é um problema. Na realidade pós-moderna, reconhecer-se diante de Deus é problemático. Muitas vezes, a oração não explicita nossa experiência de vida. Vivemos em nossos dias um longo período de incertezas ou, por que não dizer, de muitas certezas incertas. Cinquenta milhões de brasileiros não têm nas suas mesas o que comer no dia a dia. Triste realidade de um país rico em minerais, petróleo, grãos etc. em contraste com o enriquecimento de uma minoria ‘amiga do rei’, ávida de um poder que mata em nome de Deus. Falta misericórdia, falta justiça social. Falta fazer esmola. Falta o perdão. Falta ser misericordioso como o Deus de Israel e de Jesus Cristo.
Na oração carregamos a certeza de que a nossa meta é chegar ao tempo de Deus, o eterno, infinito e ilimitado. Mas também não basta sonhar com o além se não transformamos a nossa realidade social, religiosa, política, humana a partir da misericórdia. Amém!
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2] Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/noticias/550052-a-misericordia-e-urgente-neste-nosso-tempo-o-perdao-e-um-hospede-raro-diz-o-papa-francisco Acesso em 22 jun. 2022.