Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Miguel e a batalha entre anjos bons e maus em Ap 12,7-12 e hoje

28/09/2021

                                                                                                               Imagem: Arcanjos, Creative Commons

Frei Jacir de Freitas Faria [1]

 O texto sobre o qual vamos refletir é Apocalipse 12,7-12. Trata-se de uma batalha no céu entre o Arcanjo Miguel e o Dragão. Esse texto é muito propício no dia em que celebramos a festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael. Por que celebrar a memória desses seres imaginários? Você concordaria se eu dissesse que anjo não existe? Não? Então, vamos lá. Primeiro, observe que no texto de Ap 12,7-12 aparecem o Arcanjo Miguel e seus anjos, de um lado, e do outro, o Dragão que também tem anjos como combatentes. A luta é vencida por Miguel e seus anjos. Quem é esse Miguel? Quem é esse Dragão? Por que ele também tem anjos?

A Bíblia está repleta de anjos, do Gênesis ao Apocalipse, da tentação de Jesus, no deserto (Mt 4,11), até o momento de sua prisão, quando anjos de Deus também estão com ele (Mt 26,53). Somente no livro do Apocalipse, o substantivo anjo aparece 67 vezes, sendo 175 no Segundo Testamento.

Os anjos têm funções diversificadas. Miguel, que significa “Quem é como Deus?”, é considerado, no judaísmo, o mais importante dos anjos, isto é, o primeiro de todos. Daí o seu título de Arcanjo, constituído, no grego por arché, ‘o que vem primeiro’, e angelos, o mensageiro. Portanto, Miguel é “anjo do princípio”, o príncipe dos anjos.

Na tradição devocional da Igreja Católica, Miguel foi associado ao poder de intervenção de Nossa Senhora da Boa Morte na hora dos Juízo Final ou Particular. Assim, ele se tornou, na Idade Média, o santo protetor das almas, o que lhe rendeu o título de São Miguel e Almas, padroeiro da Igreja Católica, guerreiro, o guarda do Paraíso que tem poder de ir ao Inferno para buscar almas.[2] Ele também pode ajudar a alma a se redimir no momento de sua morte. A sua imagem foi, também, associada à de uma balança que pesa as almas.

Gabriel, isto é, “Deus mostrou-se forte”, é o anjo da anunciação do nascimento de Jesus, o mensageiro da boa-nova de Deus. Aliás, anjo, em grego, angelos, significa mensageiro, o que resultou no substantivo evangelho. Gabriel é também compassivo e paciente. Somente numa tradição tardia é que Gabriel e Rafael passaram a ser considerados arcanjos. Já Rafael, que significa “Deus curou”, aparece na historiografia de Tobias (Tb 12,15). Rafael é o anjo que cuida dos doentes e feridos.

Há também os anjos maus, assim como o anjo exterminador, aquele que age demonstrando a ira de Deus ao matar (Nm 167,6-15; Ex 12,23). Já o anjo da Guarda é aquele que protege, em nome de Deus, adultos e crianças (Mt 18,10).

Os anjos estão intimamente unidos a Deus. Observe que o sufixo El, no fim do nome de cada anjo, significa Deus. Eles são mensageiros ou agem em nome Dele. Na verdade, anjos e Deus são a mesma coisa. E foi esse foi o modo encontrado pelo judaísmo para aproximar Deus da condição terrena, visto que era proibido pronunciar o nome de Deus, o que poderia incorrer em idolatria. Em Jo 15,51, quando Jesus diz que há anjos subindo e descendo do céu significa que Deus está presente no meio de nós.

Voltemos ao texto de Apocalipse. Vejamos a batalha final da era apocalíptica, da luta entre o bem e mal. Miguel tem o poder de enfrentar Satanás, aquele que divide, o império romano. Trata-se de uma luta entre os anjos bons, liderados por Miguel, e os anjos maus, os impuros, corruptos, liderados pelo grande Satanás, em grego, Diabo, aquele que divide para imperar e matar, isto é, o império romano e seus imperadores sanguinários. O Dragão é a besta do Apocalipse.

Miguel vence a Serpente, referência ao animal que enganou Eva, no Gênesis, que se transformou em Satanás, o anjo mau e protetor do império romano. No fim do livro de Apocalipse um anjo enviado por Deus acorrenta esse mesmo Satanás e o prende, no abismo, por mil anos, quando, então, seria solto (Ap 20,1-3). Pena que a Igreja transformou esse Satanás, o opositor, em Capeta de rabo e chifre por meio de uma pastoral do medo que, infelizmente, continua até hoje. Foi nessa época, como vimos anteriormente, que o poder do Arcanjo Miguel foi retomado para garantir a salvação das almas, livrando-as do Inferno.

O poder de Miguel de Ap 12,11 vem do sangue do Cordeiro (Jesus) e da Palavra (Evangelho), do testemunho das lideranças das comunidades joaninas, as quais eram chamadas de anjos. Alguns teólogos, como Calvino, morto em 1564, acreditavam que Miguel seria a forma de pessoa, a personificação de Cristo, que luta contra o Dragão. Essa ideia fui refutada, rejeitada, na tradição posterior, visto que poderia gerar uma angelolatria, isto é, adorar um anjo ao pensar que ele era Jesus.

Os anjos bons são a ponte entre Deus e a humanidade, assim como ocorreu com Jacó no seu sonho: uma escada entre o céu e a terra possibilitava a subida de e a descida de anjos (Gn 28,12-13) Os anjos estão ao lado dos mais fracos na luta contra o mal e a serviço de Deus e do ser humano. Eles estão nos planos de Deus. Não são humanos, por isso não têm vida sexual e, caso venham a ter, são considerados anjos que caídos do céu.[3] Nessa mesma linha, conforme Ap 12,8, esses anjos do mau e seu Dragão foram expulsos para a terra. O céu não lhes pertence. Lugar só de Deus. Na terra, eles continuam agindo.

Fazer memória do imaginário angelical significa acreditar que outro mundo é possível, que as forças demoníacas de nosso tempo serão vencidas. Faço memória de anjos bons que passaram no meio de nós, o Cardeal Arns e Paulo Freire, ambos completariam 100 anos se estivessem vivos. Ambos defenderam os excluídos e os pobres. O primeiro, na Igreja que liberta, e o segundo, na educação inclusiva que forma para libertar os oprimidos do opressor. Eles entenderam que a batalha de São Miguel não é meramente espiritual, piedosa, de uma moral intimista, mas de uma luta sem trégua contra os opressores do nosso tempo. Que os anjos de Deus não nos abandonem nessa batalha!


[1]Doutor em Teologia Bíblica pela Faje (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Último livro: O Medo do Inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ

[2] SÃO MIGUEL. In: VAN DER POEL, Francisco. Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Editora Nossa Cultura LTDA, 2013, p. 992.

[3] Para um estudo crítico e acurado da questão na Bíblia e no cristianismo primitivo, sugerimos o livro de CARNEIRO, Marcelo; GOMES, Silvio (Orgs). Manual de Angeologia. São Paulo: Fonte editorial, 2017.

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