Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Mensagem do Papa para o V Dia Mundial dos Pobres

18/10/2021

                                                                             Imagem ilustrativa: Canva (www.canva.com/pt_br/modelos)

«Sempre tereis pobres entre vós» (Mc 14, 7)

1. «Sempre tereis pobres entre vós» (Mc 14, 7): estas palavras foram pronunciadas por Jesus, alguns dias antes da Páscoa, por ocasião duma refeição em Betânia na casa de Simão chamado «o leproso». Como narra o evangelista, entrou lá uma mulher com um vaso de alabastro cheio de perfume muito precioso e derramou-o sobre a cabeça de Jesus. Este gesto suscitou grande estupefação e deu origem a duas interpretações diversas.

A primeira delas é a indignação de alguns dos presentes, incluindo os discípulos, que, ao considerar o valor do perfume (cerca de 300 denários, equivalente ao salário anual dum trabalhador), pensam que teria sido melhor vendê-lo e dar o produto aos pobres. Segundo o Evangelho de João, é Judas que se faz intérprete desta posição: «Porque é que não se vendeu este perfume por trezentos denários, para os dar aos pobres?». E o evangelista observa: «Ele, porém, disse isto, não porque se preocupasse com os pobres, mas porque era ladrão e, como tinha a bolsa do dinheiro, tirava o que nela se deitava» (Jo 12, 5-6). Não é por acaso que esta crítica dura sai da boca do traidor: é a prova de que, quantos não reconhecem os pobres, atraiçoam o ensinamento de Jesus e não podem ser seus discípulos. Recordemos, a este propósito, as palavras fortes de Orígenes: «Judas, aparentemente, estava preocupado com os pobres. (…) Se, agora, ainda houver alguém que tem a bolsa da Igreja e fala a favor dos pobres como Judas, mas depois tira o que metem lá dentro, então tenha parte juntamente com Judas» (Comentário ao Evangelho de Mateus 11, 9).

A segunda interpretação é dada pelo próprio Jesus e permite individuar o sentido profundo do gesto realizado pela mulher. Diz Ele: «Deixai-a. Porque estais a atormentá-la? Praticou em Mim uma boa ação» (Mc 14, 6). Jesus sabe que está próxima a sua morte e vê, naquele gesto, a antecipação da unção do seu corpo sem vida antes de ser colocado no sepulcro. Esta visão ultrapassa todas as expetativas dos convivas. Jesus recorda-lhes que Ele é o primeiro pobre, o mais pobre entre os pobres, porque os representa a todos. E é também em nome dos pobres, das pessoas abandonadas, marginalizadas e discriminadas que o Filho de Deus aceita o gesto daquela mulher. Esta, com a sua sensibilidade feminina, demonstra ser a única que compreendeu o estado de espírito do Senhor. Esta mulher anónima – talvez por isso destinada a representar todo o universo feminino que, no decurso dos séculos, não terá voz e sofrerá violências –, inaugura a significativa presença de mulheres que participam no momento culminante da vida de Cristo: a sua crucifixão, morte e sepultura e a sua aparição como Ressuscitado. As mulheres, tantas vezes discriminadas e mantidas ao largo dos postos de responsabilidade, nas páginas do Evangelho são, pelo contrário, protagonistas na história da revelação. E é eloquente a frase conclusiva de Jesus, que associa esta mulher à grande missão evangelizadora: «Em verdade vos digo: em qualquer parte do mundo onde for proclamado o Evangelho, há de contar-se também, em sua memória, o que ela fez» (Mc 14, 9).

2. Esta forte «empatia» entre Jesus e a mulher e o modo como Ele interpreta a sua unção, em contraste com a visão escandalizada de Judas e doutros, inauguram um fecundo caminho de reflexão sobre o laço indivisível que existe entre Jesus, os pobres e o anúncio do Evangelho.

Com efeito, o rosto de Deus que Ele revela é o de um Pai para os pobres e próximo dos pobres. Toda a obra de Jesus afirma que a pobreza não é fruto duma fatalidade, mas sinal concreto da sua presença no nosso meio. Não O encontramos quando e onde queremos, mas reconhecemo-Lo na vida dos pobres, na sua tribulação e indigência, nas condições por vezes desumanas em que são obrigados a viver. Não me canso de repetir que os pobres são verdadeiros evangelizadores, porque foram os primeiros a ser evangelizados e chamados a partilhar a bem-aventurança do Senhor e o seu Reino (cf. Mt 5, 3).

Os pobres de qualquer condição e latitude evangelizam-nos, porque permitem descobrir de modo sempre novo os traços mais genuínos do rosto do Pai. Eles «têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles. O nosso compromisso não consiste exclusivamente em ações ou em programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não é um excesso de ativismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro, considerando-o como um só consigo mesmo. Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo de procurar efetivamente o seu bem» (Papa Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 198-199).

3. Jesus não só está do lado dos pobres, mas também partilha com eles a mesma sorte. Isto constitui também um forte ensinamento para os seus discípulos de todos os tempos. As suas palavras – «sempre tereis pobres entre vós» – pretendem indicar também isto: a sua presença no meio de nós é constante, mas não deve induzir àquela habituação que se torna indiferença, mas empenhar numa partilha de vida que não prevê delegações. Os pobres não são pessoas «externas» à comunidade, mas irmãos e irmãs cujo sofrimento se partilha, para abrandar o seu mal e a marginalização, a fim de lhes ser devolvida a dignidade perdida e garantida a necessária inclusão social. Aliás sabe-se que um gesto de beneficência pressupõe um benfeitor e um beneficiado, enquanto a partilha gera fraternidade. A esmola é ocasional, ao passo que a partilha é duradoura. A primeira corre o risco de gratificar quem a dá e humilhar quem a recebe, enquanto a segunda reforça a solidariedade e cria as premissas necessárias para se alcançar a justiça. Enfim os crentes, quando querem ver Jesus em pessoa e tocá-Lo com a mão, sabem aonde dirigir-se: os pobres são sacramento de Cristo, representam a sua pessoa e apontam para Ele.

Temos muitos exemplos de Santos e Santas que fizeram da partilha com os pobres o seu projeto de vida. Penso, entre outros, no Padre Damião de Veuster, Santo apóstolo dos leprosos. Com grande generosidade, respondeu à vocação de ir para a ilha de Molokai – tinha-se tornado um gueto acessível apenas aos leprosos –, a fim de viver e morrer com eles. Lançando-se ao trabalho, tudo fez para tornar digna de ser vivida a existência daqueles pobres doentes e marginalizados, reduzidos à degradação extrema. Fez-se médico e enfermeiro, sem se preocupar com os riscos que corria, levando a luz do amor àquela «colónia de morte», como era designada a ilha. A lepra atingiu-o também a ele, sinal duma partilha total com os irmãos e irmãs pelos quais dera a vida. O seu testemunho é muito atual nestes nossos dias, marcados pela pandemia de coronavírus: com certeza a graça de Deus está em ação no coração de muitas pessoas que, sem dar nas vistas, se gastam concretamente partilhando a sorte dos mais pobres.

4. Por isso precisamos de aderir com plena convicção ao convite do Senhor: «Convertei-vos e acreditai no Evangelho» (Mc 1, 15). Esta conversão consiste, primeiro, em abrir o nosso coração para reconhecer as múltiplas expressões de pobreza e, depois, em manifestar o Reino de Deus através dum estilo de vida coerente com a fé que professamos. Com frequência, os pobres são considerados como pessoas aparte, como uma categoria que requer um serviço caritativo especial. Seguir Jesus comporta uma mudança de mentalidade a esse propósito, ou seja, acolher o desafio da partilha e da comparticipação. Tornar-se seu discípulo implica a opção de não acumular tesouros na terra, que dão a ilusão duma segurança em realidade frágil e efémera; ao contrário, requer disponibilidade para se libertar de todos os vínculos que impedem de alcançar a verdadeira felicidade e bem-aventurança, para reconhecer aquilo que é duradouro e que nada e ninguém pode destruir (cf. Mt 6, 19-20).

Mas o ensinamento de Jesus aparece em contracorrente também neste caso, porque promete aquilo que só os olhos da fé podem ver e experimentar com certeza absoluta: «Todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá por herança a vida eterna» (Mt 19, 29). Se não se optar por tornar-se pobre de riquezas efémeras, poder mundano e vanglória, nunca se sará capaz de dar a vida por amor; viver-se-á uma existência fragmentária, cheia de bons propósitos mas ineficaz para transformar o mundo. Trata-se, portanto, de abrir-se decididamente à graça de Cristo, que pode tornar-nos testemunhas da sua caridade sem limites e restituir credibilidade à nossa presença no mundo.

5. O Evangelho de Cristo impele a ter uma atenção muito particular para com os pobres e requer que se reconheça as múltiplas, demasiadas, formas de desordem moral e social que sempre geram novas formas de pobreza. Parece ganhar terreno a conceção segundo a qual os pobres não só são responsáveis pela sua condição, mas constituem também um peso intolerável para um sistema económico que coloca no centro o interesse dalgumas categorias privilegiadas. Um mercado que ignora ou discrimina os princípios éticos cria condições desumanas que se abatem sobre pessoas que já vivem em condições precárias. Deste modo assiste-se à criação incessante de armadilhas novas da miséria e da exclusão, produzidas por agentes económicos e financeiros sem escrúpulos, desprovidos de sentido humanitário e responsabilidade social.

Além disso, no ano passado, veio juntar-se outra praga que multiplicou ainda mais o número dos pobres: a pandemia. Esta continua a bater à porta de milhões de pessoas e, mesmo quando não traz consigo o sofrimento e a morte, todavia é portadora de pobreza. Os pobres têm aumentado desmesuradamente e o mesmo, infelizmente, continuará a verificar-se ainda nos próximos meses. Alguns países estão a sofrer gravíssimas consequências devido à pandemia, a ponto de as pessoas mais vulneráveis se encontrarem privadas de bens de primeira necessidade. As longas filas diante das cantinas para os pobres são o sinal palpável deste agravamento. Um olhar atento requer que se encontrem as soluções mais idóneas para combater o vírus a nível mundial, sem olhar a interesses de parte. De modo particular, é urgente dar respostas concretas a quantos padecem o desemprego, que atinge de maneira dramática tantos pais de família, mulheres e jovens. A solidariedade social e a generosidade de que muitos, graças a Deus, são capazes, juntamente com projetos clarividentes de promoção humana, estão a dar e darão um contributo muito importante nesta conjuntura.

6. Entretanto permanece de pé uma questão, nada óbvia: Como se pode dar uma resposta palpável aos milhões de pobres que tantas vezes, como resposta, só encontram a indiferença, quando não a aversão? Qual caminho de justiça é necessário percorrer para que as desigualdades sociais possam ser superadas e seja restituída a dignidade humana tão frequentemente espezinhada? Um estilo de vida individualista é cúmplice na geração da pobreza e, muitas vezes, descarrega sobre os pobres toda a responsabilidade da sua condição. Mas a pobreza não é fruto do destino; é consequência do egoísmo. Portanto é decisivo dar vida a processos de desenvolvimento onde se valorizem as capacidades de todos, para que a complementaridade das competências e a diversidade das funções conduzam a um recurso comum de participação. Há muitas pobrezas dos «ricos» que poderiam ser curadas pela riqueza dos «pobres», bastando para isso encontrarem-se e conhecerem-se. Ninguém é tão pobre que não possa dar algo de si na reciprocidade. Os pobres não podem ser aqueles que apenas recebem; devem ser colocados em condição de poder dar, porque sabem bem como corresponder. Quantos exemplos de partilha diante dos nossos olhos! Os pobres ensinam-nos frequentemente a solidariedade e a partilha. É verdade que são pessoas a quem falta algo e por vezes até muito, se não mesmo o necessário; mas não falta tudo, porque conservam a dignidade de filhos de Deus que nada e ninguém lhes pode tirar.

7. Impõe-se, pois, uma abordagem diferente da pobreza. É um desafio que os governos e as instituições mundiais precisam de perfilhar, com um modelo social clarividente, capaz de enfrentar as novas formas de pobreza que invadem o mundo e marcarão de maneira decisiva as próximas décadas. Se os pobres são colocados à margem, como se fossem os culpados da sua condição, então o próprio conceito de democracia é posto em crise e fracassa toda e qualquer política social. Com grande humildade, temos de confessar que muitas vezes não passamos de incompetentes a respeito dos pobres: fala-se deles em abstrato, fica-se pelas estatísticas e pensa-se sensibilizar com qualquer documentário. Ao contrário, a pobreza deveria incitar a uma projetação criativa, que permita fazer aumentar a liberdade efetiva de conseguir realizar a existência com as capacidades próprias de cada pessoa. Pensar que a posse de dinheiro consinta e aumente a liberdade é uma ilusão de que devemos afastar-nos. Servir eficazmente os pobres incita à ação e permite encontrar as formas mais adequadas para levantar e promover esta parte da humanidade, demasiadas vezes anónima e sem voz, mas que em si mesma traz impresso o rosto do Salvador que pede ajuda.

8. «Sempre tereis pobres entre vós» (Mc 14, 7): é um convite a não perder jamais de vista a oportunidade que se nos oferece para fazer o bem. Como pano de fundo, pode-se vislumbrar o antigo mandamento bíblico: «Se houver junto de ti um indigente entre os teus irmãos (…), não endurecerás o teu coração e não fecharás a tua mão ao irmão necessitado. Abre-lhe a tua mão, empresta-lhe sob penhor, de acordo com a sua necessidade, aquilo que lhe faltar. (…) Deves dar-lhe, sem que o teu coração fique pesaroso; porque, em recompensa disso, o Senhor, teu Deus, te abençoará em todas as empresas das tuas mãos. Sem dúvida, nunca faltarão pobres na terra» (Dt 15, 7-8.10-11). E no mesmo cumprimento de onda se coloca o apóstolo Paulo, quando exorta os cristãos das suas comunidades a socorrer os pobres da primeira comunidade de Jerusalém e a fazê-lo «sem tristeza nem constrangimento, pois Deus ama quem dá com alegria» (2 Cor 9, 7). Não se trata de serenar a nossa consciência dando qualquer esmola, mas antes contrastar a cultura da indiferença e da injustiça com que se olha os pobres.

Neste ponto, faz-nos bem recordar as palavras de São João Crisóstomo: «Quem é generoso não deve pedir contas do comportamento, mas somente melhorar a condição de pobreza e satisfazer a necessidade. O pobre só tem uma defesa: a sua pobreza e a condição de necessidade em que se encontra. Não lhe peças mais nada; mesmo que fosse o homem mais malvado do mundo, se lhe vier a faltar o alimento necessário, libertemo-lo da fome. (…) O homem misericordioso é um porto para quem está em necessidade: o porto acolhe e liberta do perigo todos os náufragos, sejam eles malfeitores, bons ou como forem. Aos que se encontram em perigo, o porto acolhe-os, coloca-os em segurança dentro da sua enseada. Também tu, portanto, quando vês por terra um homem que sofreu o naufrágio da pobreza, não o julgues, nem lhe peças conta do seu comportamento, mas liberta-o da desventura» (Discursos sobre o pobre Lázaro, II, 5).

9. É decisivo aumentar a sensibilidade para se compreender as exigências dos pobres, sempre em mutação por força das condições de vida. Com efeito, nas áreas economicamente mais desenvolvidas do mundo, está-se menos predisposto hoje que no passado a confrontar-se com a pobreza. O estado de relativo bem-estar ao qual se habituaram torna mais difícil aceitar sacrifícios e privações. Está-se pronto a tudo só para não ficar privado daquilo que foi fruto de fácil conquista. Deste modo, cai-se em formas de rancor, nervosismo espasmódico, reivindicações que levam ao medo, à angústia e, nalguns casos, à violência. Este não é o critério sobre o qual construir o futuro; também estas são formas de pobreza, para as quais não se pode deixar de olhar. Devemos estar abertos a ler os sinais dos tempos que exprimem novas modalidades de ser evangelizadores no mundo contemporâneo. A assistência imediata para acorrer às necessidades dos pobres não deve impedir de ser clarividente para atuar novos sinais do amor e da caridade cristã como resposta às novas pobrezas que experimenta a humanidade de hoje.

Faço votos de que o Dia Mundial dos Pobres, chegado já à sua quinta celebração, possa radicar-se cada vez mais nas nossas Igrejas locais e abrir-se a um movimento de evangelização que, em primeira instância, encontre os pobres lá onde estão. Não podemos ficar à espera que batam à nossa porta; é urgente ir ter com eles às suas casas, aos hospitais e casas de assistência, à estrada e aos cantos escuros onde, por vezes, se escondem, aos centros de refúgio e de acolhimento… É importante compreender como se sentem, o que estão a passar e quais os desejos que têm no coração. Façamos nossas as palavras inflamadas do Padre Primo Mazzolari: «Gostaria de pedir-vos para não me perguntardes se existem pobresquem são e quantos são, porque tenho receio que tais perguntas representem uma distração ou o pretexto para escapar duma específica indicação da consciência e do coração. (…) Os pobres, eu nunca os contei, porque não se podem contar: os pobres abraçam-se, não se contam» (Revista «Adesso», n.º 7, 15 de abril de 1949). Os pobres estão no meio de nós. Como seria evangélico, se pudéssemos dizer com toda a verdade: também nós somos pobres, porque só assim conseguiríamos realmente reconhecê-los e fazê-los tornar-se parte da nossa vida e instrumento de salvação.

Roma, São João de Latrão, na Memória de Santo António, 13 de junho de 2021.

[Francisco]

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