Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir é Lc 1,26-38. Trata-se da aparição do anjo Gabriel a Maria, uma virgem prometida (noiva) em casamento a José. Ambos viviam na desprezível cidade de Nazaré. O mensageiro do “Deus que se mostrou forte”, Gabriel, diz a Maria, nome que significa “a amada de Deus”, que ela foi agraciada, isto é, foi a escolhida para participar do plano salvador de Deus. Por isso, Ele lhe concederia a graça da fertilidade para gerar, por obra do Espírito Santo, um filho que seria chamado de “Deus dá a Salvação”, nome grego de Jesus, transliterado do hebraico Yehôšūaʽ, resultado da junção, da partícula YH, de YHWH, com š’, que significa salvar.
Na visão do povo da Bíblia é Deus quem concede a fertilidade à mulher, abre seu útero para gerar a vida. Por isso, o anjo Gabriel diz a Maria que sua parenta Isabel, estéril e idosa, estava gerando um filho. No Primeiro Testamento, as matriarcas Sara e Raquel são estéreis até o dia em que Deus decide pôr fim às suas esterilidades (Gn 18, 13-15; 30,22).
O que significa para nós a escolha de Maria para ser a mãe do Filho de Deus? Como o cristianismo compreendeu a função de Maria na história de reinos ricos e pobres escravos negros? Por que Maria teve outros nomes?
Começo pela última pergunta. Refiro-me a Nossa Senhora do Rosário, celebrada no dia 7 de outubro. Rosário significa um buquê de rosas oferecido a Maria com a recitação de 150 Ave-Marias, chamado de Rosário.
A escolha da Igreja pelo 7 de outubro justifica-se pelo fato de que foi nesse dia, em 1571, que a Liga Santa de católicos venceu a batalha naval contra os turcos Otomanos, em Lepanto, na Grécia, o que impediu o avanço do islamismo, a religião dos muçulmanos, na Europa, ainda que o Mediterrâneo tenha se tornado um mar de sangue humano. A vitória foi atribuída a Nossa Senhora do Rosário, que havia aparecido a São Domingos de Gusmão, fundador da Ordem do Dominicanos, em 1214, na França, e lhe oferecido um Rosário.
No evangelho, é o anjo de Deus que aparece a Maria. Na história do cristianismo é Maria que aparece de várias formas, de onde provêm seus vários nomes, mas Maria é uma só. Na época da aparição de Nossa Senhora do Rosário, a Idade Média, Maria exercia forte influência na Igreja. Ela era considerada advogada na hora da morte, devido ao cenário de mortes por pestes, à insistência da Igreja sobre o pecado e aos medos generalizados, sobretudo aos de morrer e ir para o inferno.
Segundo Lucas, o menino que nasceria de Maria seria “Filho do Altíssimo” e reinaria sobre o trono eterno de Davi (Lc 1,32-33). No contexto da Idade Média, Jesus se torna juiz e símbolo do poder da Cristandade. Maria, por ser sua mãe, passa a ter o poder de interceder a Ele pelos pecadores, sobretudo os devotos do Rosário, visto como arma contra as ciladas do demônio na hora da morte e do juízo final ou particular.
A partir da Idade Média, para ajudar na evangelização da Igreja, assim como resistir ao seu modo de evangelizar, agindo de forma independente do clero, surgiram irmandades, isto é, associações de leigos católicos, cada uma delas com seus objetivos específicos.[2] Destaque para a irmandade do Rosário de Colônia, na Alemanha, criada em 1404.
Portugal levou para os países que colonizou as devoções e as irmandades. Foi assim com a devoção a Nossa Senhora do Rosário que chegou ao Reino do Gongo, noroeste da África, assim como no Brasil, onde os negros, impedidos de participarem nas igrejas dos brancos, criaram suas irmandades próprias, como a do Rosário do Homens Pretos de Olinda, a mais antiga delas, no século XVI. O objetivo dessa irmandade era rezar a Nossa Senhora, com o auxílio de sementes de capim, para aliviar os sofrimentos infligidos pelos Senhores brancos.
O Congado, composto de danças e bailados de negros escravos vindos, sobretudo, do Reino do Congo, foi o cultuar Nossa Senhora do Rosário e coroar, simbolicamente, o rei e a rainha de Congo, como forma de um sincretismo religioso afro-lusitano-brasileiro de celebrar a fé e resistir à dominação branca, a partir da mistura de elementos da liturgia católica e de cultos africanos.
A presença de Maria na história do cristianismo foi sempre cercada de mistério. Muitos teólogos já se debruçaram nas palavras do anjo Gabriel. Como poderia o Espírito Santo envolver a jovem de Nazaré que ainda não tinha tido relações com um homem? Desse mistério decorre que Maria, como outro anjo de Deus, apresentou Jesus à humanidade, sendo a serva que se entregou nas mãos de Deus. O anjo Gabriel partiu para onde veio, a casa do Pai. Ela ficou para sempre como a mensageira da paz para os negros escravos do Congo de ontem e de hoje. Infelizmente, ela também usada para dominar e matar. Hoje, resta-nos estar unidos a ela pelo Rosário das rosas que ela plantou no meio de nós, pelo sim que fortalece a nossa luta pelas igualdades racial e social.
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela Faje (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2] FARIA, Jacir de Freitas, O Medo do Inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 185.