Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

“Lumen Fidei”

07/10/2012

artigo

Patrícia Mendes de Sousa (*)

O Papa Francisco, em sua primeira Encíclica, inicia falando sobre como o homem, desde sempre, busca a luz. Sendo assim, ao cultuar o deus Sol, o mundo pagão já demonstrava essa inquietação. Embora renascesse a cada dia, o Sol não era capaz de irradiar sua luz sobre toda a existência do homem uma vez que seus raios eram incapazes de chegar até as sombras da morte. Cristo, através de sua paixão, morte e ressurreição, é capaz de romper as barreiras da morte, iluminando este momento, através da fé. Dessa forma, conscientes do amplo horizonte que a fé lhes abria, os cristãos chamaram a Cristo o verdadeiro Sol, “cujos raios dão vida”.

Hoje, no entanto, muitos se questionam se essa luz não é ilusória e impediria a pessoa humana de colocar em prática todo o saber conquistado ao longo dos séculos. A fé estaria em oposição à razão. Sendo assim, o espaço para a fé se abre somente onde a razão já não pode iluminar, onde o homem já não pode ter certezas. Entretanto, pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razão não consegue iluminar suficientemente o futuro, permanecendo este na obscuridade e deixando o homem no temor do desconhecido. Por isso, faz-se necessário recuperar o caráter de luz que é próprio da fé, pois esta é capaz de iluminar toda a existência humana.

A fé nasce do encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela o seu amor. Transformados por este amor, recebemos olhos novos e experimentamos que há nele uma grande promessa de plenitude que nos abre uma visão para o futuro. A fé que recebemos como dom sobrenatural de Deus, é a luz de vida, proveniente da ressurreição de Jesus e se expande para o futuro, para a plena comunhão com Ele. Portanto, a fé não é ilusória, mas é luz para as nossas trevas.

Bento XVI, ao proclamar o Ano da Fé, reaviva em nós a percepção da amplitude de horizontes que a fé descerra e a convicção duma fé que faz grande e plena a vida, centrada em Cristo e em Sua graça. Para os primeiros cristãos, entre eles os mártires, a fé era uma “mãe” porque fazia vir à luz, gerava neles a vida divina, pela qual estavam prontos a dar testemunho público até o fim. Como é este caminho que a fé desvenda diante de nós?

CAPÍTULO I –  ACREDITAMOS NO AMOR (cf. 1 Jo 4,16)

No Antigo Testamento, temos o testemunho de Abraão, nosso pai na fé. Deus dirige-lhe a Palavra, revela-Se como um Deus que fala e o chama pelo nome. A fé está ligada à escuta e assume, neste momento, um caráter pessoal. A fé é uma resposta e uma Palavra que interpela pessoalmente. Abraão é chamado a sair da própria terra e sua fé o leva a ver na medida em que caminha, em que entra no espaço aberto pela Palavra de Deus, que contém também uma promessa: tua descendência será numerosa, será Pai de um grande povo (cf. Gn 13,16; 15,5; 22,17). A fé, enquanto horizonte de futuro, está intimamente ligada à esperança. A fé compreende que a palavra, uma realidade aparentemente efêmera e passageira, quando é pronunciada pelo Deus fiel, torna-se no que de mais seguro e inabalável possa haver, possibilitando a continuidade do nosso caminho no tempo. Em hebraico fé é indicada pela palavra ‘emûah, que deriva do verbo ‘amàn, cuja raiz significa sustentar. O termo ‘emûah tanto pode significar a fidelidade de Deus como a fé do homem. Deus promete a Abraão um filho, dirigindo-se, portanto, à experiência do patriarca e revelando-se como a fonte donde provém toda a vida. A fé une-se com a Paternidade de Deus, da qual brota a criação.

A história do povo de Israel, no livro do Êxodo, nasce também de um dom originador: Israel abre-se à ação de Deus, que quer libertá-lo da sua miséria. Essa libertação é transmitida no culto de pai para filho significando que Deus se revela na história e seus benefícios são recordados através dos tempos e delineiam o cumprimento de suas promessas. A história de Israel mostra que quando o povo perde a fé, ele cai na idolatria. Em vez da fé em Deus, prefere-se adorar o ídolo, cujo rosto se pode fixar e cuja origem é conhecida, porque foi feito por nós. O ídolo é um pretexto para se colocar a si mesmo no centro da realidade. A idolatria não oferece um caminho mas uma multiplicidade pois o homem perde a orientação fundamental que dá unidade à sua existência. A fé consiste na disponibilidade a deixar-se incessantemente transformar pelo chamado de Deus.

Na fé de Israel sobressai também a figura de Moisés, o mediador. Com esta presença do mediador, Israel aprendeu a andar unido e isso provoca uma abertura: no encontro com os outros, o olhar abre para uma verdade maior que nós mesmos.

Todas as promessas do Pai no Antigo Testamento têm o seu sim definitivo em Cristo, centro da fé cristã, aquele que Deus Pai ressuscitou dos mortos e manifestação plena da fiabilidade de Deus. A fé identifica, no amor de Deus, manifestado em Jesus, o fundamento sobre o qual assenta a realidade e seu destino último. A maior prova de fiabilidade do amor de Cristo encontra-se na sua morte pelo homem. É por isso que os evangelistas situam na hora da cruz o momento culminante do olhar da fé: naquela hora resplandece o amor divino em toda a sua sublimidade e amplitude. Cristo ressuscitado é testemunha digna de fé, apoio firme para a nossa fé. É o amor do Pai capaz de iluminar também as trevas da morte. Precisamente porque é Filho, porque está radicado no modo absoluto do Pai, Jesus pôde vencer a morte e fazer resplandecer a plenitude da vida.

A nossa cultura perdeu essa noção desta presença concreta de Deus, da Sua ação no mundo; pensamos que Deus Se encontra só no além, noutro nível de realidade, separado das nossas relações concretas. Se Deus fosse incapaz de agir no mundo, o seu amor não seria verdadeiramente real, capaz de cumprir a felicidade que promete. Sendo assim, seria completamente indiferente crer nEle ou não. Ao contrário deste pensamento, os cristãos confessam o amor concreto e poderoso de Deus, que atua verdadeiramente na história e determina o seu destino final, um amor que se fez passível de encontro, que se revelou em plenitude na paixão, morte e ressurreição de Cristo. Na fé, a vida de Cristo, a sua maneira de conhecer o Pai, de viver totalmente em relação com Ele, abre um espaço novo à experiência humana, e nós podemos entrar nele.

A fé cristã é fé na encarnação do Verbo e na sua ressurreição na carne, é fé num Deus que se fez tão próximo que entrou na nossa história. A fé em Jesus nos permite descobrir quanto Deus ama esse mundo e o orienta sem cessar para Si. E isto leva os cristãos a comprometer-se, a viver de modo ainda mais intenso o seu caminho sobre a terra. Aquele que aceita o dom da fé, é transformado numa nova criatura, torna-se filho no Filho. A vida na fé é reconhecer que somos justificados pelos méritos de Cristo e se fazemos boas obras é pela ação da graça de Deus em nós. A salvação pela fé consiste em reconhecer o primado do dom de Deus, como nos coloca São Paulo em Ef 2,8: “Porque é pela graça que estais salvos, por meio da fé. E isto não vem de vós, é dom de Deus”. Na fé, o eu do crente dilata-se para ser habitado por um Outro, para viver num Outro, e assim a sua vida amplia-se no Amor. Fora desta conformação no Amor, fora da presença do Espírito que infunde em nossos corações é impossível confessar Jesus como Senhor.

Confessando Cristo como Senhor, todos os crentes se conformam ao corpo de Cristo, que está em união vital com o próprio Cristo e entre si mesmo, tornando a vida do fiel uma existência eclesial. A fé não é uma opinião subjetiva, um fato privado, mas nasce de uma escuta, que se torna operativa no cristão a partir do Amor que o atrai para Cristo. Destina-se a tornar-se anúncio e ir “contagiando” a todos, que se tornam participantes, então, do caminho da Igreja, peregrina na história rumo à perfeição.

CAPÍTULO II – SE NÃO ACREDITARDES, NÃO COMPREENDEREIS – (cf. Is 7,9)

Mas a fé precisa de conhecimento, de verdade. Sem verdade a fé não salva. A compreensão da fé é aquela que nasce quando recebemos o grande amor de Deus, que nos transforma interiormente e nos dá olhos novos para ver a realidade. O amor tem necessidade da verdade porque somente fundado nela é que pode perdurar no tempo, superar o instante efêmero e permanecer firme para sustentar um caminho comum. Sem a verdade, o amor não pode oferecer um vínculo sólido, não consegue arrancar o eu para fora do seu isolamento, nem libertá-lo do instante fugidio para edificar a vida e produzir fruto. A verdade também precisa do amor pois a verdade que buscamos nos ilumina quando somos tocados pelo amor. É um modo relacional de olhar o mundo, que se torna conhecimento partilhado, visão na visão do outro e visão comum sobre todas as coisas.  No entanto, essa visão é precedida pela escuta. O conhecimento associado à palavra é sempre conhecimento pessoal, que reconhece a voz, se lhe abre livremente e a segue obedientemente. Ao escutar, a pessoa humana estabelece uma conexão com a visão, visão plena de todo o percurso. Essa síntese entre o ouvir e o ver se dá a partir da pessoa concreta de Jesus, que Se vê e escuta. Ele é a Palavra que se faz carne e um Rosto no qual se vê o Pai. Configurados a Jesus é que recebemos o olhar adequado para vê-lo, e seguindo o chamado, trilhamos o caminho do seguimento. A luz do Amor nasce quando somos tocados no coração, recebendo assim em nós a presença interior do amado, que nos permite reconhecer o seu mistério.

A luz da fé ilumina também o caminho de todos aqueles que procuram a Deus e oferece a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das diversas religiões. O homem religioso procura reconhecer os sinais de Deus nas experiências diárias da sua vida, no ciclo das estações, na fecundidade da terra e em todo movimento do universo. Deus é luminoso, podendo ser encontrado também por aqueles que O buscam de coração sincero. Configurando-se como caminho, a fé tem a ver com a vida dos homens que, apesar de não acreditar, desejam-no fazer e não cessam de procurar. Na medida em que se abrem de coração sincero ao amor, já vivem, sem saber, no caminho para a fé: procuram agir como se Deus existisse.

CAPÍTULO III – TRANSMITO-VOS AQUILO QUE RECEBI – (cf. 1Cor 15,3)

A palavra recebida faz-se resposta, confissão, e assim ecoa para os outros, convidando-os a crer. É através de uma cadeia ininterrupta de testemunhos que nos chega o Rosto de Jesus. Esse tesouro está guardado vivo na memória da Igreja. O Amor, que é o Espírito, e que habita na Igreja, mantém unido entre si todos os tempos e nos faz contemporâneos de Jesus e Ele se torna, assim, o guia do nosso caminho na fé. Esse encontro tem um meio especial de ocorrer na Igreja: os sacramentos.

A natureza sacramental da fé encontra a sua máxima expressão na Eucaristia. A Eucaristia é atualização do mistério, em que o passado, como um evento de morte e ressurreição, mostra a sua capacidade de se abrir ao futuro, de antecipar a plenitude final. Há também o encontro do mundo visível ao invisível. O pão e vinho transformam-se no Corpo e Sangue de Cristo. Na profissão de fé, o Credo, fazemos a vida toda entrar em comunhão plena com o Deus vivo.

Ainda como elemento essencial na transmissão fiel da memória da Igreja está a Oração do Senhor, o Pai Nosso; nela, o cristão aprende a partilhar a própria experiência espiritual de Cristo e começa a ver com Seus olhos. O Decálogo, da mesma forma, apresenta as indicações concretas para sair do “eu”, fechado em si mesmo, e entrar em diálogo com Deus, deixando-se abraçar pela sua misericórdia, a fim de a irradiar.

Essa unidade da fé é precisamente o que dá a unidade da Igreja no tempo e no espaço, ou seja, a unidade de Deus conhecido e professado; direcionada ao único Senhor Jesus; partilhada por toda a Igreja, que é um só corpo e um só Espírito. Negar um artigo da fé equivale, portanto, a danificar o todo. Como serviço à unidade da fé e a sua transmissão íntegra, o Senhor deu à Igreja o dom da sucessão apostólica. Por seu intermédio, fica garantida a continuidade da memória da Igreja e é possível beber na fonte de onde surge a fé, assim a garantia da ligação com a origem nos é dada por pessoas vivas, o que equivale à fé viva que a Igreja transmite.

E essa fé viva tem uma ligação direta com o amor e, sendo assim, coloca-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz. Sem esse amor divino, nada poderia manter verdadeiramente unidos os homens: a unidade entre eles seria concebível apenas enquanto fundada sobre a utilidade, a conjugação de interesses, o medo, mas não sobre a beleza de viverem juntos, nem sobre a alegria que a simples presença do outro pode gerar. Portanto, a fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir um grande chamado, a vocação do amor, e assegura que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade. Sendo assim, a fé nos ensina a ver que em cada homem há uma bênção para mim, que a luz do rosto de Deus me ilumina através do rosto do irmão e, assim, compreendemos a dignidade única de cada pessoa, enquanto imagem e semelhança de Deus. Da mesma forma, ao nos revelar o amor de Deus criador na exuberância da natureza, nos faz olhar com mais respeito esta natureza. A fé também afirma a possibilidade do perdão, uma vez que o bem é mais forte que o mal e que a unidade é sempre superior ao conflito. Quando a fé esmorece, esmorecem também os fundamentos do viver.

Falar da fé comporta falar também das provas dolorosas, mas é justamente na fraqueza e no sofrimento que sobressai e se descobre o poder de Deus, que supera a nossa fraqueza e o nosso sofrimento. O cristão sabe que o sofrimento não pode ser eliminado, mas pode adquirir um sentido: pode tornar-se ato de amor, entrega nas mãos de Deus que não nos abandona e, deste modo, ser uma etapa de crescimento na fé e no amor. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé, tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a beata Teresa de Calcutá. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma de uma presença que o acompanha.

Concluindo o percurso da fé, apresentamos o ícone perfeito da fé: Maria. Na Mãe de Jesus a fé mostrou-se cheia de fruto e, quando nossa vida espiritual dá fruto, nos enchemos de alegria, que é o sinal mais claro da grandeza da fé. Na sua vida, Maria realizou a peregrinação da fé seguindo o seu Filho. No centro de nossa fé encontra-se a confissão de Jesus, filho de Deus, nascido de mulher, que nos salva e nos introduz, pelo dom do Espírito Santo, na filiação adotiva. Por isso, rezamos: Ave-Maria…


(*) Patrícia de Moraes Mendes de Sousa, da Ordem Franciscana Secular, é teóloga.

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