6º Domingo do Tempo Comum
- 6º Domingo do Tempo Comum
- Do “confiar” ao “confiar-se”: caminho de uma vida toda
- Leituras bíblicas para este domingo
- Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus
- Todos, na multidão, procuravam tocá-lo
- Uma felicidade aparentemente às avessas
- Felizes os pobres!
- Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella
6º Domingo do Tempo Comum
Felicidade ameaçada
José Antonio Pagola
O Ocidente não quis acreditar no amor como fonte de vida e felicidade para o homem e a sociedade. As bem-aventuranças de Jesus continuam sendo uma linguagem ininteligível e inconcebível, inclusive para nós que nos chamamos cristãos.
Nós pusemos a felicidade em outras coisas. Chegamos inclusive a confundir a felicidade com o bem-estar. E, embora sejam poucos os que se atrevem a confessá-lo abertamente, para muitos o decisivo para ser feliz é “ter dinheiro”.
Eles quase não têm outro projeto de vida. Apenas trabalhar para ter dinheiro. Ter dinheiro para comprar coisas. Possuir coisas para adquirir uma posição e ser importante na sociedade. Esta é a felicidade na qual cremos. O caminho que procuramos percorrer para buscar a felicidade.
Vivemos numa sociedade que, no fundo, sabe que em tudo isto se esconde algo absurdo, mas não é capaz de buscar uma felicidade mais verdadeira. Gostamos de nossa maneira de viver, embora sintamos que não nos torna felizes.
Nós crentes deveríamos lembrar-nos de que Jesus não falou só de bem-aventuranças. Lançou também ameaçadoras maldições para todos aqueles que, esquecendo o chamado do amor, desfrutam satisfeitos em seu próprio bem-estar. Esta é a ameaça de Jesus: os que possuem e desfrutam tudo quanto seu coração egoísta almejou, descobrirão um dia que não há para eles mais felicidade que aquela que já saborearam.
Talvez estejamos vivendo uns tempos nos quais começamos a intuir melhor a verdade última que se encerra nas ameaças de Jesus: “Ai de vós, os ricos, porque já tendes vosso consolo! Ai de vós, os que agora estais saciados, porque tereis fome! Ai de vós, os que agora rides, porque chorareis!”
Começamos a experimentar que a felicidade não está no puro bem-estar. A civilização da abundância nos oferece meios de vida, mas não razões para viver. A insatisfação atual de muitos não se deve só nem principalmente à crise econômica, mas sobretudo à crise de autênticos motivos para viver, lutar, gozar, sofrer e esperar.
Há poucas pessoas felizes. Aprendemos muitas coisas, mas não sabemos ser felizes. Necessitamos de tantas coisas que somos uns pobres necessitados. Para conseguir nosso bem-estar somos capazes de mentir, defraudar, trair-nos a nós mesmos e destruir-nos uns aos outros. E assim não se pode ser feliz.
E se Jesus tiver razão? Não está nossa “felicidade” demasiadamente ameaçada? Não precisamos procurar uma sociedade diferente, cujo ideal não seja o desenvolvimento material sem fim, mas a satisfação das necessidades vitais de todos? Não seremos mais felizes quando aprendermos a necessitar menos e compartilhar mais?
JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.
Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos
Do “confiar” ao “confiar-se”: caminho de uma vida toda
Frei Gustavo Medella
“É feliz quem a Deus se confia”, reza o estribilho do Salmo 1 na Liturgia deste 6º Domingo do Tempo Comum. O caminho da fé é marcado por um percurso gradativo que o ser humano faz e, à medida que amadurece, adquire estágios que vão se robustecendo em qualidade e intensidade. Na sua relação com Deus, a pessoa é chamada a dar passos, muitos deles marcados pela ousadia. O convite é que, a partir do “reconhecer” a existência de Deus, o ser humano passe a “confiar em Deus” para, finalmente, “confiar-se” a Deus.
Reconhecer a existência
É um exercício muito mais do intelecto do que do coração. Pertence ao âmbito informacional de quem “já ouviu falar” ou “sabe quem é”. Pode ou não tender ao cultivo de uma proximidade maior. Apesar de externar um vínculo frágil, mais ou menos distante, é um primeiro passo fundamental para que haja um amadurecimento no processo da fé. Mais do que “provar” a existência de Deus, o exercício próprio para atrair as pessoas nesta etapa do caminho é o de apresentá-Lo através de Jesus Cristo, com a Palavra e, principalmente, com o testemunho que se espera quem se diz discípulo do Senhor.
Confiar
É um passo a mais no caminho. Trata-se de um aprofundamento na vida de fé onde, para além de reconhecer a existência, aquele que crê percebe em Deus uma presença efetiva em sua vida. No entanto, neste estágio, a pessoa ainda se coloca como centro do processo e da caminhada e passa a enxergar em Deus alguém que pode realizar seus planos pessoais, ajudá-la a vencer os obstáculos, proporcionar a satisfação de seus desejos.
Confiar-se
Aí está o grande salto do caminho. O crente, nesta fase, percebe que Deus é o verdadeiro centro de sua vida e existência e que o sentido da verdadeira felicidade está em colocar-se no caminho das Bem-Aventuranças, sem tanta preocupação do que pode ou não acontecer à sua vida. Ainda que seja injustiçado, que sofra violências e privações, o mais importante é saber que no centro deste projeto está o Reino de Deus instaurado por Jesus, onde a paz, a justiça, o equilíbrio e o respeito se fazem regra geral. É um passo de muita ousadia, uma meta que, com frequência, leva uma vida toda para se tentar alcançar. No entanto, é nesta direção que a comunidade cristã deve caminhar, no desejo de que, junto ao Ressuscitado, todos façam parte do número daqueles que “foram felizes por que a Deus se confiaram”.
Leituras bíblicas para este domingo
Primeira Leitura: Jeremias 17,5-8
5Isto diz o Senhor: “Maldito o homem que confia no homem e faz consistir sua força na carne humana, enquanto o seu coração se afasta do Senhor; 6como os cardos no deserto, ele não vê chegar a floração, prefere vegetar na secura do ermo, em região salobra e desabitada. 7Bendito o homem que confia no Senhor, cuja esperança é o Senhor; 8é como a árvore plantada junto às águas, que estende as raízes em busca de umidade, por isso não teme a chegada do calor: sua folhagem mantém-se verde, não sofre míngua em tempo de seca e nunca deixa de dar frutos”.
Palavra do Senhor.
Sal 1
É feliz quem a Deus se confia!
Feliz é todo aquele que não anda / conforme os conselhos dos perversos; / que não entra no caminho dos malvados / nem junto aos zombadores vai sentar-se; / mas encontra seu prazer na lei de Deus / e a medita, dia e noite, sem cessar. – R.
Eis que ele é semelhante a uma árvore / que à beira da torrente está plantada; / ela sempre dá seus frutos a seu tempo, † e jamais as suas folhas vão murchar. / Eis que tudo o que ele faz vai prosperar. – R.
Mas bem outra é a sorte dos perversos. † Ao contrário, são iguais à palha seca / espalhada e dispersada pelo vento. / Pois Deus vigia o caminho dos eleitos, / mas a estrada dos malvados leva à morte. – R.
Segunda Leitura: 1 Coríntios 15,12.16-20
Irmãos, 12se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dizer entre vós que não há ressurreição dos mortos? 16Pois, se os mortos não ressuscitam, então Cristo também não ressuscitou. 17E se Cristo não ressuscitou, a vossa fé não tem nenhum valor e ainda estais nos vossos pecados. 18Então, também os que morreram em Cristo pereceram. 19Se é para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, nós somos – de todos os homens – os mais dignos de compaixão. 20Mas, na realidade, Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram.
Palavra do Senhor.
Evangelho: Lucas 6,17.20-26
Naquele tempo, 17Jesus desceu da montanha com os discípulos e parou num lugar plano. Ali estavam muitos dos seus discípulos e grande multidão de gente de toda a Judeia e de Jerusalém, do litoral de Tiro e Sidônia. 20E, levantando os olhos para os seus discípulos, disse: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus! 21Bem-aventurados, vós que agora tendes fome, porque sereis saciados! Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque havereis de rir! 22Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome por causa do Filho do Homem! 23Alegrai-vos, nesse dia, e exultai, pois será grande a vossa recompensa no céu; porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas. 24Mas ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação! 25Ai de vós, que agora tendes fartura, porque passareis fome! Ai de vós, que agora rides, porque tereis luto e lágrimas! 26Ai de vós quando todos vos elogiam! Era assim que os antepassados deles tratavam os falsos profetas”.
Palavra da salvação.
Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus
6º Domingo do Tempo Comum
Oração: “Ó Deus, que prometestes permanecer nos corações sinceros e retos, dai-nos, por vossa graça, viver de tal modo, que possais habitar em nós”.
- Primeira leitura: Jr 17,5-8
Maldito o homem que confia no homem;
feliz o homem que confia no Senhor.
O texto da primeira leitura é uma crítica a Sedecias, o último rei de Judá (597-587 a.C.). Jerusalém já havia sido conquistada por Nabucodonosor, rei de Babilônia. Nabucodonosor depôs o rei Joaquin (Jeconias) e o exilou com a classe dirigente para Babilônia. Em seu lugar colocou Sedecias como rei. Passados alguns anos, Sedecias, seguindo a voz de seus conselheiros, tramava uma revolta contra Babilônia, contando com a promessa de apoio do Egito. O profeta Jeremias, em nome de Deus, dizia que trair o rei da Babilônia era assinar a sentença de morte contra Judá e Jerusalém. Submeter-se aos babilônios era a única saída para salvar a nação e seu povo (Jr 27,1-8). Neste contexto situam-se as palavras de Jeremias. O profeta critica o rei, ameaçando-o com as maldições do livro do Deuteronômio. Sedecias deixou de confiar em Deus, para confiar nos conselhos dos homens; com isso atraiu sobre a nação as maldições previstas pela Lei. Colocar a confiança nos homens era apostar no deserto, sem água e sem vida: “Eles me abandonaram, a fonte de água viva, para cavar para si cisternas rachadas, que não podem conter água” (cf. Jr 2,13). A bênção, porém, está com quem confia no Senhor. Este é comparado a uma árvore plantada junto às águas: ela sempre terá as folhas verdes e produzirá frutos (Salmo responsorial). – Qual é a minha fonte de água viva?
Salmo responsorial: Sl 1
É feliz quem a Deus se confia!
- Segunda leitura: 1Cor 15,12.16-20
Se Cristo não ressuscitou, a vossa fé é vã.
No cap. 15, Paulo procura responder a uma pergunta da comunidade de Corinto: Que relação tem a ressurreição de Cristo com a nossa ressurreição? No judaísmo do tempo de Jesus, os fariseus acreditavam na ressurreição, mas os saduceus não. Quando, em Atenas, Paulo tentava anunciar como grande novidade que Jesus de Nazaré morreu crucificado, mas ao terceiro dia ressuscitou e que nós também vamos ressuscitar, alguns começaram a zombar dele e disseram: “A este respeito te ouviremos noutra ocasião” (At 17,32-34). Para os ouvintes pagãos era, portanto, mais difícil acreditar na ressurreição após a morte. Que o fundador de uma nova religião tivesse ressuscitado era até aceitável; seria parte de um mito… Decepcionado com Atenas que recebeu mal o Evangelho, Paulo chega a Corinto e muda o tom de sua pregação e insiste mais na humanidade de Cristo: “Enquanto os judeus pedem sinais, e os gregos procuram sabedoria, nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gregos…” (1Cor 1,22-23). A âncora da fé na ressurreição se fixa na humanidade do Filho de Deus encarnado e no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos. Partindo da dúvida dos coríntios, assim argumenta o Apóstolo: 1. Se os mortos não ressuscitam, Cristo também não ressuscitou. – 2. Se Cristo não ressuscitou, nossa fé não vale nada e ainda não recebemos o perdão dos pecados. – 3. Se Cristo não ressuscitou, os que morreram em Cristo não foram salvos. – 4. Se colocamos nossa esperança em Cristo só para esta vida, entre todos os homens, somos os mais dignos de compaixão. – 5. Realidade da fé: “Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram”.
Aclamação ao Evangelho
Ficai muito alegres, saltai de alegria,
pois, tendes um prêmio bem grande nos céus.
Ficai muito alegres, saltai de alegria. Amém, aleluia, aleluia.
- Evangelho: Lc 6,17.20-26
Bem-aventurados os pobres. Ai de vós, ricos.
Na cena anterior (v.12-16), Jesus tinha subido com os discípulos a uma montanha, onde passou a noite em oração. De manhã Jesus escolheu doze entre os discípulos e os chamou de apóstolos. No evangelho de hoje vemos Jesus descendo com os doze apóstolos até a planície, porque é lá que a missão acontece. Eles serão enviados em missão (Lc 9,1-6), junto com outros 72 discípulos (Lc 10,1-20). A esses apóstolos e discípulos/discípulas Jesus se dirige no seu sermão, bem como a uma multidão de pessoas, vindas da Judeia, de Tiro e Sidônia. É o “sermão da planície” de Lucas, correspondente ao “sermão da montanha” de Mateus. As bem-aventuranças constituem o núcleo central da mensagem do Evangelho. Jesus levanta os olhos e dirige-se a cada pessoa da multidão de ouvintes, usando o plural “vós”. Entre a multidão Jesus vê gente pobre e faminta, gente que chora. Olha para o futuro e vê cristãos odiados e sendo expulsos das sinagogas, insultados e amaldiçoados “por causa do Filho do Homem”. Os pobres são chamados felizes, os famintos serão saciados, os que choram haverão de rir, os que são odiados e perseguidos por causa do nome de Jesus são convidados a alegrar-se porque deram testemunho de sua fé e serão recompensados no céu.
Em Lucas são quatro bem-aventuranças, em Mateus são oito. Em Lucas, as quatro bem-aventuranças correspondem a quatro maldições: pobres x ricos; os famintos x e os que tem fartura; os que choram x e os que estão sempre em festa; os que são difamados x e os que são elogiados. O Evangelho nos coloca diante de dois caminhos: o seguimento de Jesus Cristo ou sua rejeição (ver 1ª leitura). Não se pode permanecer indiferente diante de Jesus (Lc 2,34; 10,10-16; 12,49-53). Ou se é a favor ou se é contra: “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Lc 16,13).
FREI LUDOVICO GARMUS, OFM, é professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.
Todos, na multidão, procuravam tocá-lo
Frei Clarêncio Neotti
É pena que a Liturgia deixou fora os versículos 18 e 19. Vejo-os muito ligados às Bem-aventuranças. No versículo 18, diz-se que o povo tinha vindo “para ouvir Jesus e ser curado das enfermidades”. Uma afirmação de sabor profético, porque os profetas sempre punham a cura de todas as enfermidades entre os sinais dos tempos messiânicos. E Jesus mostrou concretamente a realização desses sinais. E as Bem-aventuranças têm referência a eles.
O versículo 19, também saltado, diz que “a multidão procurava tocá-lo. porque dele saía uma força que sarava a todos”. Tocar o Senhor, ser curado pelo Senhor é o auge da Bem-aventurança, é a vivência da felicidade. Quem experimentou isso foi Tomé, depois da Ressurreição de Jesus, quando lhe tocou as mãos e o lado (Jo 20,27). É verdade que Jesus declarou feliz quem nele cresse, mesmo sem tocá-lo nem vê-lo (Jo 20,29). Mas não há como negar que a maior bem-aventurança é entrar em plena comunhão com ele, estar inserido nele, como o ramo na videira (Jo 15,5-7).
FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFM, entrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.
Uma felicidade aparentemente às avessas
Frei Almir Guimarães
Abraçar diariamente o caminho do Evangelho, mesmo que nos acarrete problemas: isto é santidade.
Papa Francisco, Gaudete et Exsultate, n. 94
♦ Jeremias, na primeira leitura deste domingo, nos lembra que o homem que confia no Senhor é como uma planta viçosa, localizada perto de um curso de água. Nada teme. Caminha impassível pela vida. De outro lado, os que confiam apenas em seus próprios recursos e possibilidades não veem chegar a floração. Plantas que murcham.
♦ No evangelho proclamado, mais uma vez a página da felicidade, dos bem-aventurados, desta vez na versão de Lucas. Não se trata aqui do Sermão da Montanha. Lucas afirma que Jesus desceu da montanha e parou num lugar plano. Uma fala sobre a felicidade em quatro registros: os pobres, os famintos e sedentos, os que choram, os que são odiados, perseguidos ou não levados em consideração. O Sermão da Planície de Lucas.
♦ “A escuta singela das bem-aventuranças provoca sempre em nós um eco especial. Por um lado seu tom fortemente paradoxal nos desconcerta. Por outro, a promessa que encerram nos atrai, porque oferecem a resposta a essa sede que existe no mais profundo de nosso ser. Nós, cristãos, esquecemos que Evangelho é um chamado a ser felizes. Não de qualquer maneira, mas pelos caminhos que Jesus sugere e que são completamente diferentes dos caminhos que a sociedade atual propõe. Este e seu maior desafio” (Pagola, Lucas, p.105).
♦ Bem-aventuados os que têm um espírito de pobreza – Pobre é a pessoa livre para Deus e para os outros. É aquele que foi se libertando de complacências, vaidades, das exigências do homem velho, sempre chorão, reclamão. Serão bem-aventurados no mundo novo do Reino as pessoas que forem despojadas, que não se importam de não terem sido chamadas a sentar à mesa da presidência. Pobres, desapegados. O Evangelho pede que sejamos pessoas avessas à ostentação, vacinadas a comprometimentos que nos apequenam. Desapegados de ideias feitas, mesmo de hábitos, principalmente de suas manias. Os pobres, os que não estão preocupados demais com vantagens mostram uma excelente qualidade de atenção aos outros. São pessoas adoráveis. Já estão na ante sala do mundo novo que se chama Reino. São seus herdeiros.
♦ O futuro pertence aos pobres. O futuro que Deus promete não pertence aos que já chegaram, mas aos que ainda nem partiram. Pertence aos pobres. Apenas eles são os que esperam alguma coisa ou alguém. Os ricos nada têm a esperar do amanhã. Têm tudo. Nada mais lhes resta senão o medo: medo de perder, medo de que falte alguma coisa, medo de serem esquecidos, medo de ficarem sozinhos. Não têm outro destino senão a sepultura. Os pobres já estão no processo de ressurreição para a Vida. Usam vestes de esperança.
♦ Bem-aventurados os que têm fome e sede – Podemos pensar nos que têm o estomago vazio e a garganta seca. Este, no entanto, não pode ser o verdadeiro sentido da bem-aventurança. Há pessoas satisfeitas com tudo. Com as coisas que fazem e os bens que possuem. Seus armários e suas contas bancárias são garantia. Felizes os que experimentam na garganta uma sede de Deus. Não de um Deus feito na medida de seus interesses e necessidades individuais, mas sede do Mistério de Amor que vem encher-nos de plenitude. Na vida da fé e no processo de humanização são felizes aqueles que sentem necessidade do alimento da amizade, do nutrimento da Palavra. Aqueles que não estão satisfeitos com os passos dados e por vezes mal dados. Têm saudade de plenitude e um desejo de serem santos.
♦ Fome de justiça… O Papa Francisco: “Fome e sede” são experiências muito intensas, porque correspondem às necessidades primárias e têm a ver com o instinto de sobrevivência. Há pessoas que, com esta mesma intensidade, aspiram pela justiça e buscam-na com um desejo assim forte. Jesus diz que elas serão saciadas, porque a justiça, mais cedo ou mais tarde, chega e nós podemos torná-lo possível, embora nem sempre vejamos os resultados deste compromisso (“Gaudete et Exsultate”, n. 77).
♦ Bem-aventurados os que choram… – Eles haverão de rir. Deus se torna próximo daqueles que sofrem, quaisquer que sejam eles. A todos traz consolo, sem discriminação, pobres ou ricos. Jesus se compadeceu da dor da viúva de Naim, sofreu com as irmãs com morte de Lázaro. As lágrimas dão a entender que alma não se tornou insensível nem de estratificou. Somos convidados a chorar com os que choram, a nos compadecer, quer dizer sofrer com os que sofrem. Há lágrimas dolorosas. Há outras lágrimas que são de gratidão e de alegria.
♦ Jesus fala de uma alegria prometida aos que choram. O Papa Francisco assim se exprime: “A pessoa que, vendo as coisas, como realmente estão, se deixa trespassar pela aflição e chora no seu coração, é capaz de alcançar as profundezas da vida e ser autenticamente feliz. Esta pessoa é consolada, mas com a consolação de Jesus e não com a do mundo. Assim pode ter a coragem de compartilhar o sofrimento alheio, e deixa de fugir de situações dolorosas. Desta forma, descobre que a vida tem sentido socorrendo o outro em sua aflição, compreendendo a angústia alheia, aliviando o outros. Esta pessoa sente que o outro é carne de sua carne, não teme aproximar-se até tocar a sua ferida, compadece-se até sentir que as distâncias são superadas. Assim, é possível acolher aquela exortação de São Paulo: “Chorai com os que choram (Rm 12,15 (Gaudete et Exsultate, n. 76).
♦ Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem – Há pessoas que são odiadas porque seu testemunho incomoda. Elas são um grito que penetra os corações dos que foram se acomodando com a mediocridade. Há aquelas que não são levadas em consideração, que podem morrer ou desaparecer que não serão notadas, às quais nunca nada se pede nem mesmo seu parecer. Felizes os que defendem a verdade, salvam os inocentes. Os perseguidos têm em seu rosto fortes traços de Jesus.
♦ De acordo com Jesus é melhor dar do que receber, é melhor servir do que dominar, compartilhar do que ajuntar, perdoar do que vingar-se. Quando procuramos ouvir sinceramente o que de melhor há em nós intuímos que Jesus tem toda razão. As bem-aventuranças constituem a chave da felicidade.
Oração
Ensina-nos, Senhor, a viver o espírito das bem-aventuranças,
chaves de ouro, chaves da verdade
Ensina-nos a distinguir, graças a elas,
o Essencial do acessório,
o Importante do irrisório,
o Eterno do efêmero,
o Primordial do secundário.
Livra-nos de todos os medos;
medo de perder um privilégio,
medo de falhar, medo de sofrer.
Assim poderemos nos entregar totalmente
às bem-aventuranças e entrar em teu Reino de Amor.
Amém.
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.
Felizes os pobres!
Pe Johan Konings
O Sermão da Planície do evangelho de Lucas (Lc 6) traz, de forma abreviada, a mesma mensagem que o Sermão da Montanha de Mateus (Mt 5-7). O evangelho nos apresenta Jesus anunciando com alegria a boa-nova aos pobres: “Felizes vós, os pobres, porque o Reino de Deus é vosso”. Nada demais. Até o presidente do FMI fica comovido quando os pobres são felizes. O problema é que Jesus fala o contrário para os ricos: “Ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação”. Os ricos já receberam seu prêmio e agora perdem sua vez … (cf. a 1ª leitura: “Infeliz de quem coloca sua confiança em outro homem e se apoia no ser mortal, enquanto seu coração se desvia de Deus”).
O contraste entre ricos e pobres na boca de Jesus nos ajuda a entender melhor o que é esse Reino de Deus que ele vem anunciar. É o contrário do reino dos homens, o contrário daquilo que os ricos já têm. Eles possuem o que se apropriaram por caminhos humanos (nem sempre muito retos): riqueza, poder, prazer. Coisas passageiras, que, contudo, chegaram a ocupar todo o tempo e imaginação dos que pensam possuí-las, enquanto são por elas possuídos. Basta qualquer revés, um processo por sonegação, uma comparsa que fale demais … basta algo tão tremendamente comum como a morte, para que percam tudo o que tinha valor para eles. Infelizes …
O que Jesus agora anuncia aos pobres é o contrário: vem de Deus, não dos homens. Porque os pobres ainda não se encheram com as suas próprias conquistas, tem valor para eles o “Reino de Deus”, o dom de Deus, o “sistema de Deus”. Que sistema? Aquilo que Jesus anuncia e pratica: fraternidade, comunhão da vida, dos bens materiais e espirituais, partilha de tudo. É aquilo que Jesus, no evangelho, ensina aos seus discípulos: superar o ódio pelo amor, aperfeiçoar a “Lei” pela solidariedade, repartir os bens, e até sofrer por causa de tudo isso. Pois também para os que sofrem e são perseguidos há uma bem-aventurança.
Mas a nossa sociedade vai pelo caminho contrário. A propaganda e o consumismo incutem nas pessoas a mania do rico, do eterno insatisfeito. Os pobres se tornam solidários com os ricos, aderem às suas novelas, modas e compras inúteis. Não é esta a boa notícia do evangelho, e sim, o “ai” proclamado por Jesus.
A diferença entre os pobres e os ricos não é que uns sejam melhores que os outros, mas que a esperança dos pobres, quando não corrompidos, vai para as coisas que vêm de Deus, enquanto os ricos facilmente acham que vão se realizar com aquilo que eles têm em seu poder. Que experimentem … Ou então, que participem da esperança dos pobres e se tornem solidários com eles.
A esperança do reino supera a vida material. É a esperança que se baseia no Cristo ressuscitado (2ª leitura): “Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais lamentáveis de todos!” Aquele que se tornou pobre para nós é que nos enriquece com a dádiva do amor infinito do Pai, que ele revela no dom da própria vida. O reino que Jesus anuncia aos pobres, decerto, começa com a justiça e a fraternidade, mas tem um horizonte que nosso olhar terreno nunca alcança!
PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022. Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.
Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella