Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Sexta-feira da Paixão do Senhor

Sexta-feira da Paixão do Senhor

Um amor inimaginavelmente sem medida

 

Quando eu for elevado atrairei tudo a mim.
João 12,32

♦ Sexta-feira do amor que vai até o fim. Dor e amor. Melhor fora, quem sabe, nada escrever sobre o tema. Momento da entrega e do abandono do mais belo dos filhos dos homens. Bastaria ficar em silêncio. No dia de hoje o silêncio fala mais do que as palavras. Sexta-feira da desolação.

♦ Os celebrantes da cerimônia da tarde entram em silêncio no templo. Estão vestidos de paramentos rubros. Fogo e dor. Fogo do amor e dor do mistério da morte violenta. Prostram-se por terra. Celebração da paixão e morte de Jesus, nosso caminho. Deus vem morrer em nossa carne para que possamos viver. Dor aguda e esperança indefectível. Nobre e belo o gesto da prostração do corpo e da mente.

♦ “Nosso Senhor foi calcado pela morte mas, por sua vez, esmagou-a como quem soca aos pés o pó da estrada. Sujeitou-se à morte e aceitou-a voluntariamente, para destruir aquela morte que não queria morrer. Nosso Senhor saiu para o Calvário carregando a cruz, para satisfazer as exigências da morte; mas ao soltar um brado no alto da cruz, fez sair os mortos dos sepulcros, vencendo a oposição da morte. A morte o matou no corpo que assumira; mas ele, com as mesmas armas, saiu vitorioso da morte. A divindade ocultou-se sob a humanidade e assim aproximou-se da morte que matou, mas que também foi morta. A morte matou a vida natural e, por sua vez, foi morta pela vida sobrenatural” (Santo Efrém, Liturgia das Horas II, p. 662-663).

♦ Sexta-feira das dores, do silêncio, da paixão, da compaixão. O Menino das Palhas, o andarilho que espargia esperança, o amigo dos homens chega ao termo de sua curta caminhada. Hora da solidão. Hora esperada, mas temida. Hora de um batismo sonhado. Seria melhor se o cálice lhe fosse afastado. Dores intensíssimas no corpo e aflição no espírito. Querendo falar e quase não podendo nada articular. Encarcerado com a prisão dos cravos. Parece que até mesmo o céu se fechara. Suaves e doídos gemidos do Filho muito amado. O céu havia dito e diz: “Este é meu Filho amado, escutai-o!” “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito”.

♦ Antigamente, em tempos revolutos, quando tudo havia começado, houve uma árvore, uma outra árvore. A árvore da “prova” , do teste da fidelidade, colocada no meio do paraíso, que foi ocasião da desarrumação do coração dos nossos pais. E agora, eis uma outra árvore levantada, a árvore da cruz que carrega um preciosíssimo fruto: aquele que ama sem limites e alimenta os famintos, os verdadeiros famintos, os famintos de Deus, os que se recusam de levar uma vida pequena, frustrada, frustrante e banal.

♦ O ladrão, aquele que é designado de “bom ladrão” dirige-se a Jesus, meio de lado, ainda com força na voz. Suplica que o Mestre dele se apiede. “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso. Hoje mesmo… (que palavras belas)… Eu vou te levar para a ventura do Pai, do meu Pai e teu Pai”. O amor crucificado ainda tem palavras de compaixão…

♦ “Minha alma tem sede de Deus, meu Salvador. Desejo abrir-me ao Senhor. Quero ver aquele que sorveu o cálice mais amargo do mundo, sim o mais amargo. Como efetivamente esse cálice deve ter sido amargo para aquele que era tão puro e tão sensível. Quero beijar estes pés ensanguentados que não pararam de andar sempre em busca de mim até nos becos sem saída e nos abismos mais profundos onde meus pecados me levaram. Quero ver o lado traspassado para ali fazer um lugar para mim” (Karl Ranher).

♦ “Que te fiz eu, meu povo eleito? Dize em que te contristei? Para que por que? Essa cruz, esses pregos, essa solidão, esse olhos turvos, esse abandono, esse morrer? Dize em que te contristei…” Sexta-feira, das dores, da desolação, sem missa, sem sacramentos. Desolação?

♦ É de João e só de João, o detalhe da lança que perfura o peito de Jesus. Uma fonte no peito do amado. Dali correm sangue e água, sinais de vida e de fecundidade. “Queres compreender profundamente o significado deste sangue? Repara de onde ele começou a correr e de que fonte brotou. Começou a brotar da própria cruz, e sua origem foi o lado do Senhor. Estando Jesus já morto e ainda pregado na cruz, diz o evangelista, um soldado aproximou-se, feriu-lhe o lado com a lança e imediatamente saiu água e sangue: a água como símbolo do batismo; o sangue como símbolo da eucaristia. Abriu uma brecha na parede do templo santo e eu, encontrando um enorme tesouro, alegro-me por ter achado riquezas extraordinárias. Assim aconteceu com este cordeiro. Os judeus mataram um cordeiro e eu recebi o fruto do sacrifício” (São João Crisóstomo, Liturgia das Horas II, p. 436).


Ladainha da sexta-feira da paixão

1. Por tua Igreja, Senhor, que te aguarda como seu esposo, na noite deste mundo, Senhor Jesus pela noite da tua paixão, nós te pedimos.

2. Por aqueles que não nos amam, e que não sabemos amar, por nossos inimigos e por aqueles que nos querem mal, Senhor Jesus…

3. Pelos doentes, pelos que se encontram nos hospitais, que passam a noite no sofrimento, pelos que estão em agonia e morrem nesta noite, esses cujos olhos não verão mais a luz do dia, Senhor Jesus…

4. Pelos que vivem angústias, não conseguem dormir, por aqueles que são presas da ideia do suicídio, Senhor Jesus…

5. Pelos que estão em prisão, pelos que são torturados e que são aniquilados na noite, pelos condenados à morte que esperam a noite da execução, Senhor Jesus

6. Pelos homens e mulheres que se amam, pelos casais que descansam em paz, pelas mulheres que dão à luz, Senhor Jesus.


Frei Almir Guimarães


 Imagem ilustrativa (fonte: Catholic Pictures)

Por que ou para que me abandonaste?

O sentido da morte na Paixão de Cristo em tempos de pandemia

(Jo 18,1—19,42)

 Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

Sexta-feira da Paixão, dia para refletir o sentido da morte em suas variadas formas. Ela faz parte do trem de nossa história pessoal, mas como é difícil acolhê-la. São Francisco, no ponto alto de sua espiritualidade, a chama de irmã morte. Morrer é um esperançar para os que vão e os que ficam. Perguntas, no entanto, permanecem no nosso coração: Por que morrer? Para que morrer? Será que Deus nos abandonou na hora morte? Ele abandonou Jesus? Qual o sentido do grito de Jesus na cruz? “Meu Deus, para que me abandonaste?” Penso aqui na dor pandêmica dos familiares dos mais de 300 mil que morreram no Brasil, e dos milhões mundo afora.

Para a nossa reflexão, vou tomar o evangelho Jo 18,1-19,42, a narrativa da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Os pormenores desse texto são muito conhecidos. Eu poderia falar que Judas, nesse relato, não beija Jesus; que o “eu sou” de Jesus, respondendo a Pilatos, é o mesmo do nome de Deus. Permita-me, no entanto, ater-me somente ao momento final da morte de Jesus, quando na cruz, segundo João, ele apenas diz que “tudo está consumado”. João não fala do seu grito de dor. Recorrendo a Marcos e Mateus, proponho refletir sobre o mistério da morte, seja ela natural ou provocada por pandemias.

Como seres humanos, vivemos o eterno paradoxo de ter que viver e esperar a morte, de realizar sonhos e conviver com a derrota, de dar e receber, de fazer algo em função de uma recompensa, de sofrer e de se alegrar. Podem parecer coisas opostas, dicotômicas, mas não são. Essa é a condição humana. Assim viveu Jesus. No momento final de sua vida, pregado na cruz, ele soltou um grande grito de dor. Marcos e Mateus escrevem que Jesus disse: “Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste? (Mc 15,34; Mt 27,46). Para Lucas, o grito de Jesus foi: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito.” (Lc 23,46). Já para João, Jesus apenas diz: “Tudo está consumado” (Jo 19,30). Há uma lógica no encontro de Jesus com a morte: o grito, a entrega e a compreensão do sentido da morte como esperança. esperança. Em Lucas e João, Jesus é mais divino que humano. Ele parece não sentir dor como em Marcos e Mateus.

Explico melhor. Veja que traduzi, não por que, mas para quê? Jesus gritou em aramaico, língua que deu origem ao hebraico. Lamá em hebraico, língua próxima ao aramaico, é lemá, mas também lamá. Jesus disse Lama, seguido de sabachtháni – me abandonaste, que é a junção da partícula interrogativa máh com o complemento le, e significa para quê, podendo também ser traduzido por por quê. Isso pode ocorrer tanto no aramaico quanto no hebraico. O uso do para quê expressa a motivação da morte Jesus. Por isso, que há diferença entre eles. O “porquê” nos remete ao passado, e o “para quê”, ao futuro. A frase dita por Jesus era popular e expressava o sofrimento dos condenados e angustiado. Ele vem do Sl 22,2.

Quem pergunta pelo “porquê” da morte de uma pessoa querida faz perguntas sem respostas: Eu podia ter evitado o acidente? Eu podia ter sido mais cuidadoso com ele ou ela? Eu podia ter perdoado e recebido o perdão? Eu podia, mas não posso mais!

Quem muda a pergunta e diz “para que” se lança para o futuro. Não mais justifica a morte, mas dá um novo sentido para ela. Era o seu momento. Fiz tudo que tinha que fazer, a amei em vida. Seguirei em frente. Mudando a pergunta, a morte ganha um novo sentido. E o luto termina. Jesus, na hora da morte, com o seu grito, entendeu que a sua morte era redentora, salvaria muitos, levaria muitos para a casa do Pai, até ladrões convertidos. Por isso, Jesus morreu entregando o espírito e acreditando que tudo estava consumado.

Mais uma palavrinha sobre a morte. Nesse momento pandêmico de nossa história, a morte, que estava esquecida, voltou a fazer parte do nosso cardápio de cada dia. O que vemos é uma paixão, um calvário vivido nos hospitais mundo afora. Jesus, novamente vive a sua paixão nos infectados, nos seus parentes, e na ação dos profissionais de saúde que fazem de tudo para salvar uma vida. Estamos vivendo uma dor coletiva.

Nesse calvário, vale perguntar pelo “por quê”. E aí vem a resposta. Esse vírus não é maldição de Deus, como propagam alguns. Ele é, sim, uma resposta da natureza que se sente aviltada por nós. A morte aos milhares é responsabilidade dos que não acreditaram na ciência. Vírus, vírus sempre teremos. E como já tivemos!

Na lógica da condição humana, a morte faz parte do nosso viver. No entanto, sempre tivemos dificuldades de compreender o seu porquê. Há os que sonham que, num futuro próximo, a ciência vai pôr fim à morte. No entanto, quando a morte chega, o coração dos que ficam dilacera numa dor sem fim. Uma dor que parece interminável. Uma vontade de ver de novo, mesmo sabendo que novamente na vida terrena isso nunca mais será possível. Aqueles rostos de mãe, pai, filho, filha nunca mais serão vistos de uma forma uma humana, somente pela fé. O entardecer, quando o dia fecha nas suas energias vitais, uma dor súbita chega com muito vigor. Com o tempo, a própria condição humana se encarrega de amenizar a dor, pois libertar-se dela é impossível. A dor se transforma em saudade, memórias de um bom tempo vivido.

Quero concluir com um convite e uma mensagem de esperança. Diante da morte, deixe de perguntar “por quê” e passe a perguntar pelo “para quê”! Verá que o luto vai passar e você seguirá a faina da vida com uma fé em Deus, na vida. Nesse tempo de morte pandêmica, acredite. Tudo isso vai passar. Logo, logo, voltaremos ao “normal”. Um futuro melhor nos espera no “para quê” de tudo isso. Sejamos melhores do que fomos até agora. Coragem, o Deus humanado foi crucificado, passou pela paixão, foi solidário conosco na dor, no abandono e na traição.  Ele venceu. Venceremos.


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze.  Inscreva-se no nosso canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos