Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

2º Domingo da Quaresma

2º Domingo da Quaresma

Viver diante do mistério

 

José Antonio Pagola

O homem moderno começa a experimentar a insatisfação produzida em seu coração pelo vazio interior, pela trivialidade do cotidiano, pela superficialidade de nossa sociedade, pela falta de comunicação com o Mistério.

São muitos os que, às vezes de maneira vaga e confusa, outras de maneira clara e palpável, sentem uma decepção e um desencanto inconfessável diante de uma sociedade que despersonaliza as pessoas, as esvazia interiormente e as incapacita para abrir-se ao Transcendente.

É fácil descrever a trajetória seguida pela humanidade: ela foi aprendendo a utilizar, com uma eficácia cada vez maior, o instrumento de sua razão; foi acumulando um número cada vez maior de dados; sistematizou seus conhecimentos em ciências cada vez mais complexas; transformou as ciências em técnicas cada vez mais poderosas para dominar o mundo e a vida.

Este caminhar apaixonante ao longo dos séculos tem um risco. Inconscientemente acabamos crendo que a razão nos levará à libertação total. Não aceitamos o Mistério. E, no entanto, o Mistério está presente no mais profundo de nossa existência.

O ser humano quer conhecer e dominar tudo. Mas não pode conhecer e dominar nem sua origem nem seu destino último. E o mais racional seria reconhecer que estamos envoltos em algo que nos transcende: precisamos mover-nos humildemente num horizonte de Mistério.

Na mensagem de Jesus há um convite escandaloso para os ouvidos modernos: nem tudo se reduz à razão. O ser humano precisa aprender a viver diante do Mistério. E o Mistério tem um nome: Deus, nosso “Pai”, que nos acolhe e nos chama a viver como irmãos.

Nosso maior problema talvez seja ter-nos tornado incapazes de orar e dialogar com um Pai. Estamos órfãos e não conseguimos entender-nos como irmãos. Também hoje, em meio a nuvens e escuridão, pode-se ouvir uma voz que continua nos chamando: “Este é meu Filho. [ … ] Escutai-o”.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Abraçar o Cristo é abraçar a cruz

Frei Gustavo Medella

No ano de 2001 surgiu uma banda de Pagode denominada “Inimigos da HP”. O nome era uma brincadeira dos componentes da banda – que tinham formação em engenharia – com uma das marcas mais famosas de calculadoras científicas que praticamente virou sinônimo de calculadoras profissionais, as famosas HP’s. A gozação deve ter nascido das dificuldades enfrentadas pelos rapazes na realização dos cálculos complexos e extensos que precisavam realizar durante algumas disciplinas do curso de graduação. No entanto, aquela que jocosamente eles chamam de “inimiga”, foi quem possibilitou a eles levarem adiante os estudos para se tornarem engenheiros.

Na 2ª Leitura deste 2º Domingo da Quaresma, São Paulo, na Carta aos Filipenses, lamenta por aqueles – inclusive cristãos – que se comportam como “inimigos da cruz”. Certamente, refere-se a quem cai na ilusão de abraçar o seguimento de Cristo sem levar em conta a dimensão de dor, renúncia e sofrimento que esta opção exige. Tal exigência não é o capricho de um senhor sádico que se compraz com as dores de seus súditos, mas consequência de um gesto supremo de amor que Deus realiza em favor de seus filhos e filhas. Abraçar a cruz, para o cristão, não é, portanto, um apego doentio ao sofrimento, mas uma atitude de acolhida fiel aos desafios que recaem sobre aquele que deseja entregar-se pela causa do Reino. Neste caso, por causa de Cristo, a cruz deixa de ser um empecilho e se apresenta como um instrumento facilitador do acesso à Graça Divina. Não deveria ter inimigos.

A experiência de Pedro, Tiago e João no Monte Tabor certamente os acompanhou no decorrer da missão. Contemplar, ainda que por um instante, a Face do Cristo Glorioso foi, sem dúvida, para eles, estímulo e força a fim de que, diante das provações, soubessem, cada um a seu modo, abraçar a própria cruz. Dentre as propostas que a Quaresma traz, está, certamente, a de ressignificar as cruzes da vida, buscando na força do Cristo as razões para seguir em frente. O Mistério da Cruz permanece como resposta eloquente para os seguidores de Cristo no contexto de luta, dor e perseguição daqueles que escolhem abraçar o cristianismo em sua radicalidade. As mortes frequentes de líderes populares e comunitários que trabalham na promoção da justiça, da partilha e da vida deveriam doer profundo no coração de quem se proclama amigo de Cristo e, consequentemente, amigo da cruz.

Textos bíblicos deste domingo

Primeira Leitura: Gn 15,5-12.17-18

Naqueles dias, 5o Senhor conduziu Abrão para fora e disse-lhe: “Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!” E acrescentou: “Assim será a tua descendência”.

6 Abrão teve fé no Senhor, que considerou isso como justiça. 7E lhe disse: “Eu sou o Senhor que te fez sair de Ur dos Caldeus, para te dar em possessão esta terra”.

8 Abrão lhe perguntou: “Senhor Deus, como poderei saber que vou possuí-la?” 9 E o Senhor lhe disse: “Traze-me uma novilha de três anos, uma cabra de três anos, um carneiro de três anos, além de uma rola e de uma pombinha”. 10 Abrão trouxe tudo e dividiu os animais pelo meio, mas não as aves, colocando as respectivas partes uma frente à outra.

11 Aves de rapina se precipitaram sobre os cadáveres, mas Abrão as enxotou. 12 Quando o sol já se ia pondo, caiu um sono profundo sobre Abrão e ele foi tomado de grande e misterioso terror.

17 Quando o sol se pôs e escureceu, apareceu um braseiro fumegante e uma tocha de fogo, que passaram por entre os animais divididos.

18 Naquele dia, o Senhor fez aliança com Abrão, dizendo: “Aos teus descendentes darei esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio, o Eufrates”.


Responsório: Sl 26

— O Senhor é minha luz e salvação.
— O Senhor é minha luz e salvação.
— O Senhor é minha luz e salvação;/ de quem eu terei medo?/ O Senhor é a proteção da minha vida;/ perante quem eu tremerei?
— Ó Senhor, ouvi a voz do meu apelo,/ atendei por compaixão!/ Meu coração fala convosco confiante,/ é vossa face que eu procuro.
— Não afasteis em vossa ira o vosso servo,/ sois vós o meu auxílio!/ Não me esqueçais nem me deixeis abandonado,/ meu Deus e Salvador!
— Sei que a bondade do Senhor eu hei de ver/ na terra dos viventes./ Espera no Senhor e tem coragem,/ espera no Senhor!


Segunda Leitura: Fl 3,17-4,1

17 Sede meus imitadores, irmãos, e observai os que vivem de acordo com o exemplo que nós damos.

18 Já vos disse muitas vezes, e agora o repito, chorando: há muitos por aí que se comportam como inimigos da cruz de Cristo. 19 O fim deles é a perdição, o deus deles é o estômago, a glória deles está no que é vergonhoso e só pensam nas coisas terrenas.

20 Nós, porém, somos cidadãos do céu. De lá aguardamos o nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo. 21 Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso, com o poder que tem de sujeitar a si todas as coisas.

4,1 Assim, meus irmãos, a quem quero bem e dos quais sinto saudade, minha alegria, minha coroa, meus amigos, continuai firmes no Senhor.


Evangelho: Lc 9,28b-36

Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. 29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante. 30 Nisso, dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. 31 Apareceram na glória, e conversavam sobre o êxodo de Jesus, que iria acontecer em Jerusalém. 32 Pedro e os companheiros dormiam profundamente. Quando acordaram, viram a glória de Jesus, e os dois homens que estavam com ele. 33 E quando esses homens já iam se afastando, Pedro disse a Jesus: «Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.» Pedro não sabia o que estava dizendo. 34 Quando ainda estava falando, desceu uma nuvem, e os encobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo quando entraram na nuvem. 35 Mas, da nuvem saiu uma voz que dizia: «Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutem o que ele diz!» 36 Quando a voz falou, Jesus estava sozinho. Os discípulos ficaram calados, e nesses dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto.

* 28-36: Lucas apresenta Jesus rezando continuamente (5,16; 6,12; 9,18). Com isso o evangelista mostra que Jesus, através de sua palavra e ação, está realizando a vontade do Pai. Na transfiguração aparece claramente esse sentido da oração (v. 35). E a vontade do Pai é que Jesus realize o êxodo (v. 31), isto é, que ele realize, mediante sua morte, ressurreição e ascensão, o ato supremo de libertação do povo, acabando com a opressão exercida pelo sistema implantado em Jerusalém.

Bíblia Sagrada – Edição Pastoral

Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus

Reflexão de exegeta Frei Ludovico Garmus

2º Domingo da Quaresma, ano C

 Oração: “Ó Deus, que nos mandastes ouvir o vosso Filho amado, alimentai nosso espírito com a vossa palavra, para que, purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da vossa glória”.

  1. Primeira leitura: Gn 15,5-12.17-18

Deus fez aliança com Abraão, homem de fé.

Abraão chegou ao Egito, com a esperança de ver cumprida a promessa, que Deus fez de lhe dar uma terra e uma numerosa descendência (Gn 12,1-3). No Egito, porém, por covardia, quase perdeu sua esposa Sara, cobiçada pelo faraó. De volta a Canaã, Deus renova a promessa da terra e da descendência (13,14-18) e lhe promete proteção contra os inimigos (15,1). Abraão acreditava nas promessas divinas, mas estava cansado de esperar. E queixa-se com Deus: Que adianta esperar uma terra se vou acabar morrendo sem um filho meu? Se continuar assim, o herdeiro do pouco que possuo, será meu servo, Eliezer de Damasco. Mas Deus reitera a promessa: “um de teus descendentes será o herdeiro” (15,2-4). Hoje ouvimos que Deus toma a iniciativa e conduz Abraão para fora de sua tenda. Habituado a ver apenas seu pequeno mundo (tenda, terra), Abraão é convidado a sair de si e contemplar com os olhos do Criador o mundo por ele criado: “Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz! Assim será a tua descendência”. Deus renova também a promessa da terra. Abraão creu no Senhor. Mesmo assim, pergunta: “Como vou saber que vou possuí-la”? Segue, então, o sacrifício que Abraão oferece a pedido do Senhor. Deus aceita o sacrifício, mas não responde à pergunta de Abraão; no entanto faz como ele uma aliança e promessa: “Aos teus descendentes darei esta terra”. A aliança e a fé não partem do ser humano, mas de Deus, que é fiel ao que promete. “Abraão teve fé no Senhor” porque confiou em Deus que é fiel. Ancorou sua fé na fidelidade de Deus. – É assim que nós cremos?

Salmo responsorial: Sl 26

O Senhor é minha luz e salvação.

  1. Segunda leitura: Fl 3,17–4,1

Cristo transformará o nosso corpo

e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso.

Na carta à comunidade de Filipos, Paulo questiona e anima a fé dos pagãos e judeus recém-convertidos a Cristo. Diz ele: “Muitos se comportam como inimigos da cruz de Cristo”. De cristão têm apenas o nome. Continuam a viver as paixões terrenas como se Cristo nada significasse. Paulo vivia e pregava o “Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gregos” (1Cor 1,23). Por isso, contrapondo-se aos “inimigos de Cristo”, apresenta-se como modelo a ser imitado. O verdadeiro cristão abraça a cruz de Cristo neste mundo, mas vive com alegria. Vive neste mundo, mas é um “cidadão do céu”. É uma pessoa cheia de esperança, porque aguarda a vinda do Senhor Jesus Cristo, transformará o seu corpo humilhado num corpo glorioso como o seu. Este é o Cristo que seguimos e no qual depositamos nossa fé? (Evangelho)

Aclamação ao Evangelho

  1. Louvor a vós, ó Cristo, rei da eterna glória.

Evangelho: Lc 9,28b-36

Enquanto Jesus rezava, seu rosto mudou de aparência.

O Evangelho de hoje apresenta Jesus como o Filho amado, o Escolhido do Pai, a quem somos convidados a escutar. Nos três primeiros Evangelhos a cena da transfiguração é precedida pela confissão de Pedro em Jesus como o Messias esperado por Israel. Jesus começa a viagem com os discípulos a Jerusalém. Durante a viagem, Jesus explica em que sentido ele é o Messias. Ele não é o Messias que busca ser rei em Jerusalém – como o povo e os discípulos pensavam –, mas o Filho do Homem que seria condenado à morte. A cena da transfiguração é central para entender o mistério de Jesus, Filho do Homem. Situa-se entre o primeiro anúncio da paixão e ensinamento de Jesus aos discípulos sobre seu seguimento (Lc 9,21-27) e o segundo anúncio da paixão e um novo ensinamento sobre o seguimento de Jesus (Lc 9,43b-50). O primeiro ensinamento é um convite a seguir a Jesus, a renunciar-se a si mesmo, tomando cada um a sua cruz, e a perder a própria vida para salvá-la. No segundo ensinamento Jesus critica a disputa pelo poder entre os discípulos (quem é o maior) a tornar-se os menores e servir os outros.

A viagem a Jerusalém é interrompida pela Transfiguração, uma teofania ou manifestação especial de Deus. As testemunhas do que vai acontecer são os discípulos mais próximos de Jesus – Pedro, Tiago e João –, os mesmos que estarão com Jesus na agonia do Getsêmani. O cenário é o alto de um monte (hoje o Tabor), que lembra o monte Sinai/Horeb, lugar da manifestação de Deus a Moisés e, depois, a Elias. Os dois representam a Lei e os Profetas, isto é, o Antigo Testamento (cf. Lc 24,35-45). No monte, enquanto Jesus está rezando (cf. Lc 3,21-22), seu rosto muda de aparência e as vestes tornam-se brancas e resplandecentes. Envoltos na glória de Jesus, Moisés e Elias conversam com Jesus sobre sua futura morte em Jerusalém. Nisso, os discípulos acordam e, diante da maravilhosa visão, Pedro exclama: “Mestre, é bom estarmos aqui”! Esquece a temida viagem a Jerusalém e interrompe a conversa de Moisés e Elias sobre a morte do Mestre. Em três tendas, quer segurar Jesus, Moisés e Elias envoltos em glória. Pedro, porém, esquece o “caminho” do sofrimento que levará a essa glória. Por um instante foram testemunhas da glória do Senhor e logo uma nuvem misteriosa os envolve. Da nuvem, ouve-se uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz”. E Jesus, o Filho Escolhido do Pai, “encontrou-se sozinho”, para retomar corajosamente, na frente dos discípulos, o caminho para Jerusalém (Lc 9,51). Fica, porém, a mensagem do Pai Celeste: Jesus é o seu Filho Escolhido, que se dirige corajosamente a Jerusalém, onde entregará sua vida por todos. O Pai continua dizendo a nós, discípulos de seu Filho: “Escutai o que ele diz”. – O que ele nos diz na Palavra de Deus hoje anunciada? Como vou corresponder ao que ele me diz? Vamos dizer isso ao próprio Filho de Deus, que nos convida a celebrarmos com ele a sua Ceia.


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Subiu o monte para rezar

Frei Clarêncio Neotti

Pedro quer armar três tendas sobre a montanha. Isso não significa que é sobre uma montanha que devemos construir nossa casa. O lugar geográfico é indiferente. Mas devemos ter nossa moradia permanentemente perto da divindade. Em outras palavras, devemos viver envolvidos pelo mistério do Cristo, Filho de Deus Salvador, que se revela a nós. Esse modo de viver envolvido por Deus é o que o livro do Apocalipse vai chamar de “novo céu e nova terra” (Ap 21,1).

Os Evangelistas dão grande importância à Transfiguração. Em todos os grandes momentos da vida de Jesus, Lucas procura mostrá-la como um homem de oração. Sem dúvida, para dizer que a oração envolve todos os principais passos da vida humana e para mostrar que todo o mistério de Jesus se desenvolve em clima de oração. Assim, Jesus reza no meio do entusiasmo da multidão (Le 5,16), antes da escolha dos Apóstolos (Le 6,12), antes da declaração messiânica de Pedro (Lc 9,18) e hoje “sobe o monte para rezar” (v. 28). A Transfiguração acontece durante a oração (v. 29).

Os três Apóstolos dormiam, enquanto Jesus rezava e se transfigurava (v. 32). Eles lembram as criaturas que não percebem a presença de Deus, não veem com os olhos da fé a divindade de Jesus e sua missão salvadora. Os mesmos três Apóstolos dormiram no Jardim das Oliveiras (Lc 22,45), enquanto Jesus orava. Muitas vezes, Jesus afirma que é preciso estar vigilante para compreender as coisas de Deus, ter a consciência acordada para poder entender como é possível o
Deus da vida morrer, como é possível que o Cristo faça brotar da morte uma vida nova e eterna.


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

Escutar o Filho Amado do Pai

Frei Almir Guimarães

Não tenhamos dúvidas: tudo aquilo que escutamos, mas verdadeiramente tudo, deve ser apenas a preparação para a escuta do que permanece em silêncio. Só no habitat do silêncio, nas jornadas longas de silêncio e de exposição em oração, a escuta pode amadurecer.

José Tolentino Mendonça

♦ Sempre, neste segundo domingo da Quaresma, somos convidados a subir a montanha da transfiguração de Jesus com Pedro, Tiago e João. No final do retiro quaresmal, vamos comemorar a Páscoa do Senhor. Na Sagrada Liturgia da Vigília Pascal, vamos acender o círio com cantos de jubilação. Páscoa é festa da Luz. Uma estrela já havia encaminhado os passos dos magos, aqueles buscadores da claridade para o presépio do Menino. Jesus é a luz. Sua beleza mais densa manifesta-se em sua luminosa Ressureição. No meio da caminhada da Quaresma (ou da vida), somos convidados a fazer uma pausa e subir a montanha. Antes de contemplar o semblante chagado, empoeirado, desrespeitado em sua paixão temos, na montanha, uma prefiguração da glória.

♦ Lucas diz que Jesus levou consigo os apóstolos a uma alta montanha para rezar. Montanha, silêncio, lugar alto e afastado, propício para a oração. A transfiguração do Senhor se dá num espaço de recolhimento, sem ruídos e sem gestos estridentes. Está em união íntima com o Pai. Os dois se conhecem e se amam. Nesse misterioso face a face com o Pai há uma iluminação do semblante do Senhor. Ele é luz. Na realidade luz da luz. “Sua roupa ficou branca e brilhante”.

♦ Dois personagens se fazem presentes: Moisés e Elias. Moisés, aquele que falava com o Senhor como um amigo fala a um amigo. Moisés que ao descer da montanha depois das confabulações com o Senhor tinha o semblante todo iluminado. Tinha sido banhado da claridade do Altíssimo. Elias, o homem cansado da luta, desgastado pela oposição, coloca-se à entrada de uma caverna e quando a brisa suave acaricia seu rosto ele se dá conta que era o Senhor. Montanha, transfiguração, silêncio, oração. Oração que não é um mero balbuciar de formulas, mas êxtase de pobres que abraçam o Senhor em suas vidas. Tolentino gosta de dizer que rezar é abraçar a vida. Tempo do retiro quaresmal: tempo de oração com as portas do quarto fechadas. Houve, segundo Lucas, uma conversa dos personagens do Antigo Testamento com Jesus sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém. Mas os apóstolos dormiam… só acordam um pouco depois.

♦ Pedro exprime um desejo: “É bom estarmos aqui… vamos fazer três tendas e impedir que o tempo passe”. Experiência gozosa de uma proximidade de Deus. O invisível como que se torna palpável. Pessoas que foram se despojando de si, se desvencilhando de seu pequeno universo, que foram abrindo as portas de sua intimidade, no universo da fé, fazem experiência da proximidade do Senhor. A Quaresma não seria um tempo de exercitarmo-nos numa oração sem pressa, num estar diante do Senhor, no silêncio? Quando Pedro ainda estava falando “apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem”. Quando Deus nos envolve, ele atinge nosso nó interior e desde então tudo pode ser diferente. Temos receio do novo que irrompe em nossas vidas. Temos medo quando a majestade esplendorosa do Senhor se aproxima de nosso caminhar. Sua claridade nos ofusca.

♦ “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz”. No coração da Quaresma, no alto da montanha, num clima de silêncio somos convidados a abrir nossa intimidade para a audição do Filho amado. Escutar é mais do acolher sons que chegam em nosso aparelho auditivo. É dar hospitalidade para o Mistério de Deus que avizinha.

♦ Aqui se insere todo o capítulo do seguimento de Jesus, do aprendizado do discípulo. Nos últimos decênios fomos sendo levados a tomar distância de um cristianismo meramente herdado dos que nos precederam na fé. Fomos nos dando conta de que precisávamos com urgência decidir pessoalmente pelo seguimento. Alguns deixaram os ritos e práticas que lhes foram transmitidos. E deixaram tudo. Outros, a duras penas, estão tentando fazer sua vida pela audição atenta do Ressuscitado que lhes fala.

♦ “Os tempos estão mudando. E os tempos de mudança são inspiradores, não o esqueçamos. O inverno conspira para que surjam inesperadas flores. “O que está sendo dito para nós?”, é a pergunta necessária. O que é que esta avalanche cultural nos revela? De fato, a grande crise, a mais aguda não é sequer a dos acontecimentos, decisões e deserções que nos trouxeram aqui. Dia a dia, sobrepõe-se um problema maior: a crise da interpretação. Isto é, a falta de saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos reinventarmos” (Tolentino, A mística do instante, p. 123)

Conclusão

♦ Nesse Jesus que percorria nossos caminhos nada mais aparece senão a fragilidade de todo ser humano. Ele é o servo. No tempo da caminhada seu rosto iria se cobrir de feiura. Sua verdadeira identidade haverá de transparecer na sua ressurreição. Mas atenção, a ressurreição é um mistério de fé e não a reanimação de um cadáver.

♦ Os apóstolos e nós, peregrinos nas plagas da quaresma, somos convidados a um tipo de oração marcada pelo silêncio, na montanha, sobretudo longe de os gritos do mundo e de nosso próprio eu. Quando Jesus ora a luz toma conta dele. Não poderíamos ser criaturas mais luminosas se tomássemos a decisão de ser mais íntimos do Senhor?

♦ Quaresma, Páscoa… tempo de renovação de nossos compromissos batismais. Importante deixar que ressoe dentro de nós a voz que veio da nuvem: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai-o”. Isto significa entrar na escola do discipulado. Temos a vida toda para escutar o filho amado.

Perguntas

◊ Quais os rostos desfigurados que conhecemos?

◊ Como podemos ter nossas roupas brancas e nosso rosto iluminado?

Oração

NO ALTO DA MONTANHA
Silêncio de ruídos, silêncio.
Silêncio dentro de mim mesmo.
Não quero ficar pensando em minhas coisas,
meus projetos, meus interesses.
Silêncio de ruídos e silêncio dentro de mim.
Silêncio na montanha da transfiguração.
Três companheiros: Pedro, Tiago e João
e ele, o Filho bem amado.
Nada de fala, de gritos, de conselhos, de fala.
Nada de histeria.
Tu, Jesus, te colocas diante de teu Pai.
Teu rosto se reveste de beleza,
tua roupa se torna brancura pura.
Teus íntimos são envolvidos pela nuvem da Presença.
Silêncio, admiração, contemplação, êxtase.
Teu rosto, Senhor Jesus, tão parecido com nossos rostos
se torna luminosamente belo.
Este é o meu Filho amado, escutai-o”.
Que, de fato queremos?
Ouvir a voz do Filho que nos encanta,
nos indica um sentido de vida,
voz que atinge o ouvido externo,
mas nosso mistério mais profundo.
Silêncio de ruídos, silêncio de nós mesmos.
Antegosto do céu, da sala de banquetes, da comunhão definitiva.
Nossa caminhada não chegou a seu termo.
Precisamos descer da montanha.


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

Mudança radical que transparece em Cristo

Pe. Johan Konings

Já chegamos à segunda etapa de nossa subida à festa pascal. A 1a leitura nos apresenta a fé com a qual Abraão recebe a promessa de Deus e assim é considerado justo por Deus. Mas o tema que retém nossa atenção está no evangelho de hoje: a visão da fé que descobre o brilho divino no rosto de Jesus.

No evangelho, Lucas nos conta como Jesus foi orar no monte, levando consigo Pedro, Tiago e João, e de repente ficou transfigurado diante dos seus olhos. Apareceu-lhes envolto de glória, acompanhado por Moisés (a Lei) e Elias (os Profetas). Falavam com ele sobre seu “êxodo” em Jerusalém, onde iria enfrentar a condenação e a morte. No momento em que despontava o conflito mortal, Deus mostrou aos discípulos a face invisível de Jesus, seu aspecto glorioso.

Na 2a leitura, Paulo anuncia que Cristo nos há de transfigurar conforme a sua existência gloriosa. Todos nós somos chamados a sermos filhos de Deus. Nosso destino verdadeiro é a glória que Deus nos quer dar. Ora, para chegar lá, devemos – como Jesus – iniciar nosso “êxodo”, nossa caminhada da fé e do amor fraterno, comprometido com a prática da transformação. Isso nos pode levar a galgar o Calvário, como aconteceu a Jesus. O caminho é árduo, e as nossas forças parecem insuficientes. Às vezes parece que não existe perspectiva de mudança. Uma sociedade mais justa e mais fraterna parece sempre mais inalcançável. Mas assim como os discípulos de Jesus, pela sua transfiguração no monte, puderam entrever a glória no fim da caminhada, assim sabemos nós que a caminhada da cruz é a caminhada da glória.

Antes de ser desfigurado no Gólgota, o verdadeiro rosto de Cristo foi transfigurado. Revelou, no monte Tabor, seu brilho divino. Para a fé, os rostos dos nossos irmãos latino-americanos, explorados e pisoteados, brilham como rostos de filhos de Deus. Apesar da desfiguração produzida pela miséria, desigualdade, exclusão, o brilho divino está aí.

Se nós precisamos realizar uma mudança política, econômica e cultural, a mudança radical é a que Deus opera quando torna filho seu aquele que nem figura humana tem. A consciência disto é que nos vai tornar mais irmãos e, daí, mais empenhados em criar uma sociedade digna da glória de Deus que habita em nossos irmãos excluídos. Na Campanha da Fraternidade descobriremos isso. Contemplando a glória de Cristo no rosto do irmão procuraremos caminhos para pôr fim à deformação que nossa sociedade imprimiu a esse rosto, não apenas pela opressão, como também por uma cultura da ilusão e da irresponsabilidade. Por isso, enfrentamos esta caminhada de modo bem concreto, assumindo o sofrimento dos nossos irmãos pisados e oprimidos, participando das lutas materiais, políticas, culturais, e comprovando assim a seriedade de nosso amor fraterno.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella