Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Quinta-feira Santa | Ceia do Senhor

Quinta-feira Santa | Ceia do Senhor

Uma delicada e bela quinta-feira

 

Era antes da festa da Páscoa. Jesus sabia que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para seu Pai; tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.
João 13, 1

Isto é meu corpo que é dado por vós. Fazei isso em minha memoria.
1Coríntios 11, 24

♦ A tarde de quinta-feira santa é um dia festivo. O templo está enfeitado. O altar da reposição explode com as cores das flores. Arranjos de flores brancas e amarelas. Os paramentos são brancos. Velas nos grandes castiçais de festas. O sino tocam. Canta-se o Gloria a Deus nas alturas. Há festa no ar.

♦ Os séculos passam, as culturas definham, os textos envelhecem, mas temos a impressão as Palavras do Evangelho não perdem sua força. Parece que somos assistentes da cena de João que nos faz viver o lava-pés. Para Jesus chegara o momento de reunir todas as lembranças do passado, a sua trajetória inteirinha e olhar para frente. Era preciso respirar fundo, muito fundo. Tempo da festa judaica da Páscoa. Passagem, ir de um para outra margem, um caminho novo que passava pela cessação das batidas do coração e do arfar dos pulmões. Morte! E que morte! E de que maneira!!! Era a sua e nossa passagem. Misturamo-nos com os que estavam presentes na sala do alto e ao pés da cruz. Somos Madalena que procuramos nosso Senhor na manhã de Páscoa.

♦ Difícil refazer em pormenores toda a mística desse dia e acompanhar o estado interior do coração daquele que amou os seus até o fim. Como é fraca a palavra amor que perpassa, gestos, reações daquele que se reunira com os discípulos pela última vez. Dom de si, dom sem limites, dom que dá vida, oferenda que atinge a todos os que não sabem o que fazem e falam. Dom, entrega, gratuidade. Força de gestos de límpida gratuidade

♦ Era o momento da Ceia. Jesus depõe seu manto que poderia ser de festa. Ele, ali, com seu corpo ainda vivo,  sem chibatadas.  Toma bacia, água, toalha. Como um mero empregado. Começa a colocar um gesto aparentemente chocante. Na verdade profundamente chocante mesmo. O do último lugar, dos servos. Ele, o enviado do Pai, lava os pés de seus discípulos. Dispensamo-nos de tecer comentários. Trata-se de uma lição para nunca ser esquecida. Os cristãos constituem uma comunidade de serviço, de ler as preocupações nos rostos dos que lhes são próximos. Serviço de tornar as pessoas seres humanos de verdade e não personagens de uma representação. O lava-pés é uma parábola do derradeiro serviço de Jesus que era de dar a vida pelos seus. Era um serviço feito por menores. Por isso, Francisco de Assis quis que seus irmãos se chamassem “irmãos menores”, “frades menores”. O lava-pés pede que olhemo-nos uns aos outros.

♦ Na missa da tarde, na ceia do Senhor está inserido o lava-pés. Meu corpo que é dado. Meu sangue derramado. O dom de toda sua vida chegado agora ao ápice, dom de sua vida para a vida do mundo. Pão e vinho. Ele presente sob as aparências. Trigo e vinho de nosso trabalho, do trabalho humano. Um pedaço de nossas histórias se mistura com a ação de Cristo, com sua eucaristia. Momento importante de nossas vidas. Repetimo-lo diariamente. Nunca poderemos deixar de fazer essa memória forte da Presença. O Pai nos acolhe junto com a renovação da entrega de Jesus nas aparências do pão do vinho.

♦ Quantas eucaristias já vivemos. Na capela da infância, na igreja paroquial, na catedral, ao ar livre, no meio das máquinas de fábrica, nos mosteiros de contemplativos, na capela de um hospital, no interior de um navio, numa sala de um presidio. Isto é meu corpo que é dado por vós. Unidos ao Senhor. “Fazei isso para fazer a minha memória. Para que eu me adense em vosso meio, para entrarmos e estreita comunhão”.

♦ Quando tudo é terminado, o Santíssimo e levado processionalmente ao altar da adoração. Silêncio, breves orações, leituras densas. Queremos estar com o Senhor na noite de sua agonia. Getsêmani. Solidão do Mestre. Suor de sangue. “Não pudestes vigiar comigo”. Os altares são desnudados. O sacrário sem os cibórios. Nada de flores. A cruz diante nossos olhos.

♦ “Não são as torturas físicas, nas quais o sentimento piedoso se deleitava tanto, não nem mesmo a morte física. É algo diferente, mais profundo, algo que provoca terror ainda maior. Tocar as feridas de Cristo, não só as feridas de suas mãos e seus pés, que testificam seu sofrimento físico, mas também a ferida do lado, que atingiu o coração, significa tocar a escuridão , da qual testemunha o grito do homem completamente abandonado por Deus. A ferida até o coração é aquilo que se expressa nas palavras de Jesus na cruz; aquela palavra que um único evangelista teve a coragem de documentar: “Deus meu, por que me abandonaste?” (Mc 15,34).

Tomas Halik, Toque as feridas, Vozes, p. 43


Texto para reflexão

Missa do Crisma

 

Na quinta-feira santa, pela manhã, o bispo diocesano reúne os sacerdotes e o povo e celebra com eles a Missa do Crisma. Belíssima essa cerimônia no dia da instituição da Eucaristia. Nesta missa são consagrados os óleos para os sacramentos: óleo dos catecúmenos, dos doentes e do crisma.

Belíssimo o quadro! O bispo, pastor da diocese, aquele que conta com o ministério dos sacerdotes que animam a vida das comunidades. São eles colaboradores do pastor da diocese. Muitos dos concelebrantes são párocos. Outros são colaboradores: animam a catequese, trabalham com jovens, acompanham os enfermos, tomam efetivamente para si a causa dos mais abandonados. Esses homens, como Jesus, são chamados a dar sua vida pelos homens.

Emocionante ver, na concelebração, sacerdotes bem idosos, caminhando com dificuldade, apoiados em bengalas ou delicadamente conduzidos por sacerdotes mais jovens. Que beleza! A riqueza da diversidade na unidade do presbitério. Alguns sacerdotes atravessam crises, deixaram de ser pessoas atentas à voz do Senhor, mas estão ai. Belo vê-los na Missa do Crisma.

Quinta-feira santa é o dia do padres. A eles é aplicada de modo especial a palavra de Isaías: “ O Espírito do Senhor repousa sobre mim. Enviou-me para levar a Boa Nova aos pobres e curar os de coração despedaçado, anunciar a redenção aos cativos e a liberdade e aos prisioneiros e publicar um ano de graças (Is 61, 1-2). Os sacerdotes são ministros de uma palavra de vida; animadores e estimuladores de comunidades de fé, esperança e caridade; pessoas que buscam as ovelhas perdidas e levam à buscar a santidade os que já são do Senhor; homem da Eucaristia; intimo de Deus; homem que, como Cristo, se faz dom para os seus.


Frei Almir Guimarães


 Imagem ilustrativa (fonte: Catholic Pictures)

 Missa da Ceia do Senhor

Oração: “Ó Pai, estamos reunidos para a santa ceia, na qual o vosso Filho único, ao entregar-se à morte, deu à sua Igreja um novo e eterno sacrifício, como banquete do seu amor. Concedei-nos, por mistério tão excelso, chegar à plenitude da caridade e da vida”.

  1. Primeira leitura: Ex 12,1-8.12-14

Ritual da ceia pascal.

A primeira leitura apresenta uma síntese do ritual da celebração da páscoa judaica. A origem deste ritual vem de um costume entre pastores nômades de sacrificar um cordeiro ou cabrito, por ocasião de uma festa primaveril. Os filhos de Jacó entraram no Egito como pastores (cf. Gn 47,1-6). Centenas de anos depois, fugiram da severa escravidão sofrida no Egito, levando para o deserto seus rebanhos de ovelhas e bois (cf. Ex 10,24-26). Talvez A festa que os hebreus queriam celebrar no deserto pode ter sua origem numa antiga festa pastoril (Ex 3,18; 5,1-3). Para Israel a festa de origem pastoril ganhou um conteúdo histórico, passando a ser o memorial do maior evento da história da salvação, isto é, a libertação de Israel do Egito

A celebração da Páscoa judaica tem um caráter familiar, pois era celebrada nas famílias; ao mesmo tempo tinha um caráter coletivo, porque todas as famílias celebravam o mesmo memorial, na mesma data. Jesus celebrou a páscoa com seus discípulos, antes de ser traído por Judas e preso pela guarda do Templo.

Salmo responsorial: Sl 115

O cálice por nós abençoado

é a nossa comunhão com o sangue do Senhor.

  1. Segunda leitura: 1Cor 11,23-26

Todas as vezes que comerdes deste pão

e beberdes deste cálice, proclamais a morte do Senhor.

A instituição da eucaristia é conhecida através de quatro textos, que representam basicamente duas tradições: 1. Paulo e Lucas (1Cor 11,23-35; Lc 22,19-20; 2. Marcos e Mateus (Mc 14,22-24; Mt 26,26-29). O texto mais antigo é o de Paulo. Após criticar alguns abusos na celebração da Ceia, que dividiam a comunidade de Corinto, Paulo reafirma o que antes havia ensinado aos coríntios. O que lhes ensinou não foi invenção sua, mas recebeu-o do Senhor. Embora não tenha conhecido a Jesus histórico, viu como os cristãos de Damasco, Jerusalém e Antioquia celebravam a Ceia do Senhor (Gl 1,11-24; At 9,20-30; 11,24-26; 13,1-3). Lembra que a ceia aconteceu “na noite em que Jesus foi entregue” por Judas. Não foi, porém, uma decisão do traidor que entregou Jesus à morte. Ao contrário, Jesus livremente “entregou-se por nossos pecados… segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (Gl 1,4; Rm 8,32). Ele “sabia que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo ao Pai” (Evangelho). Durante a ceia, Jesus tomou o pão em suas mãos, agradeceu a Deus pelos alimentos recebidos (“frutos da terra e do trabalho humano”: Ofertório), partiu o pão e disse: “Isto é o meu corpo que é dado por vós”. No final da ceia, Jesus pegou o cálice com vinho e disse: “Este cálice é a nova aliança, em meu sangue”. Duas vezes aparece a ordem: “Fazei isso em minha memória”. Se a antiga aliança do Sinai foi selada com o sangue de touros sacrificados (cf. Ex 24,4-8), a nova aliança é selada no sangue de Cristo, derramado por nossos pecados. A livre iniciativa de Deus é marcada pela entrega de seu Filho, pelo seu corpo, que é dado e pelo sangue, que é derramado.

Ao celebrar a Ceia do Senhor proclamamos sua morte e ressurreição, “até que ele venha”. Após a consagração, a assembleia aclama: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus”! 

Aclamação ao Evangelho

            Glória a vós, ó Cristo, verbo de Deus.

Eu vos dou este novo mandamento, nova ordem, agora, vos dou,

que, também, vos ameis uns aos outros, como eu vos amei, diz o Senhor.

  1. Evangelho: Jo 13,1-15

Amou-os até o fim.

João não conta a instituição da eucaristia na véspera de sua condenação à morte, como o fazem Paulo e os outros evangelhos. Em Jo 6,22-59 é tratado o tema da eucaristia. Aqui, o evangelista fala apenas do que aconteceu e o que Jesus falou durante a ceia de despedida, celebrada antes da festa da páscoa judaica. Mais importante do que a própria ceia são as palavras de Jesus e seu gesto de humilde serviço, ao lavar os pés dos discípulos. Pedro não queria que Jesus lhe lavasse os pés. E Jesus lhe diz: “Se não te lavar os pés, não terás parte comigo”. A palavra “parte” significa porção ou participação na herança paterna, como no caso do filho pródigo (Lc 15,12). Estamos no contexto de um testamento que Jesus deixa aos discípulos, como sua última vontade. Este testamento coloca em comunhão os discípulos com o Mestre. Comungar da vida de Jesus tem como consequência lógica o serviço radical. “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (v. 1). Jesus nos ensina tanto pela palavra como pelo exemplo: “Eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (v. 14-15). Todos saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.

Este é o testamento que Jesus deixa aos discípulos e a todos nós. Jesus sabia que “de Deus tinha saído e a Deus voltava”. Jesus saiu do Amor sublime que é Deus e nos deixou como herança o mandamento do Amor. Nossa comunhão com Deus não se manifesta apenas ao comungarmos o seu corpo e sangue na missa, mas também no serviço humilde ao próximo.


Frei Ludovico Garmus, ofm

O inédito numa ceia tradicional

Jesus terá observado toda a tradição da ceia. Como chefe do grupo dos Apóstolos, assumiu a presidência da refeição, como se fora um pai de família. Terminada a ceia prescrita, inovou um novo ritual, composto de três partes. Primeiro, levantou-se sozinho, derramou água numa bacia, cingiu uma toalha e pôs-se a lavar os pés dos doze, todos mais espantados que maravilhados. Voltou a seu lugar; tomou um pedaço de pão, molhou-o no vinho e deu-o a Judas Iscariotes, dizendo: “O que tens a fazer; faze-o logo” (Jo 13,27). E Judas retirou-se rápido da sala, com os pés lavados, mas “com Satanás no corpo” (Jo 13,27).

Assim que Judas saiu, Jesus disse: “Ainda só um pouco estarei convosco. Quero deixar-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,33-35). E vem o segundo momento: Jesus encheu novamente a taça de vinho e a passou aos Apóstolos, pedindo que cada um deles bebesse, porque já não era mais vinho, mas seu sangue, o sangue que seria o selo, a garantia da nova e eterna aliança entre Deus e a humanidade (Mt 26,28). Tomou um pedaço de pão e deu-o a eles para comer; porque já não era pão, mas seu corpo, era ‘o pão da vida’ (Jo 6,48), ‘o pão da ressurreição eterna’ (Jo 6,58). E acrescentou: “Fazei isto em minha memória” (Lc 22,19).

Com essa emocionada e inédita ordem dada aos Apóstolos, Jesus perenizou a Última Ceia. Também nós estamos hoje fazendo a memória de Jesus, porque, toda vez que comemos desse pão e bebemos desse cálice, refazemos em sua integridade de significado e de santidade a Santa Ceia do Senhor.

No terceiro momento, temos um longo discurso, iniciando com a figura da videira e dos ramos: “Eu sou a videira, vós sois os ramos. Quem permanecer em mim e eu nele dará muitos frutos. Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). Um discurso, resumo de três anos de ensinamentos. Um discurso, testamento. Um discurso, promessa de não abandonar os discípulos, apesar de tudo o que iria acontecer: “Não vos deixarei órfãos” (Jo 14,18). Um discurso de união ao Pai e de insistente pedido de unidade entre todos os discípulos (Jo 17,20-26). Um discurso de glorificação da vontade do Pai (Jo 14,31) nesse momento – a sua hora -, a sua hora de começar a paixão, o caminho tenebroso da morte, de cuja última ponta irromperá a aurora da Páscoa. A última frase do discurso é esta: “Pai, que o amor; com que me amaste, esteja com todos os que creem em mim, como eu quero estar com todos eles (Jo 17,26). Os grandes momentos desta noite santa da Última Ceia do Senhor reconfirmam que Jesus é, de fato, o Emanuel (Mt 1,23), o Deus sempre conosco.


Frei Clarêncio Neotti

A Ceia Pascal

Se a Última Ceia de Jesus foi a ceia da Páscoa, como dizem os três primeiros evangelistas, por que a Igreja a celebra antes da Páscoa? É que a páscoa judaica não cai no mesmo dia que a nossa. A páscoa judaica pode cair em qualquer dia da semana, conforme a posição da lua. Assim, na Quinta-Feira Santa, Jesus consumiu, com os discípulos, a páscoa judaica (descrita na 1ª leitura). Nesta ocasião, instituiu a Ceia Eucarística, em memória de sua morte (2ª leitura); e, no início dessa refeição, lavou os pés de seus discípulos, em sinal e exemplo do dom da própria vida (evangelho de hoje). Aliás, o evangelista João nem menciona o momento da Eucaristia, porque a Eucaristia significa comunhão com Jesus, e esta comunhão se expressa maravilhosamente pelo gesto do lava-pés: deixar-se lavar por Jesus, aceitar que Jesus seja nosso servo, que não só lava nossos pés, mas dá sua vida por nós. Por isso, queremos servir os nossos irmãos… O lava-pés é a Eucaristia na vida!

Segundo os primeiros evangelistas, a Última Ceia foi a ceia da páscoa judaica, que comemorava o êxodo dos hebreus do Egito, terra de escravidão. Jesus quis celebrar essa ceia, mas ao mesmo tempo a transformou, colocando-se livremente como escravo dos seus irmãos! E fez disso a sua “passagem” para junto de Deus! Ora, esta passagem de Jesus se manifesta na ressurreição, no terceiro dia a partir de hoje, que vai ser para nós, cristãos, a data de nova Páscoa, em que celebramos a nossa libertação. Hoje celebramos Jesus na imagem do cordeiro pascal do A.T., cujo sangue preservou os hebreus do castigo que Deus fez descer sobre os egípcios para que deixassem ir os israelitas. Já não celebramos a páscoa na data judaica, pois Jesus transformou-lhe o sentido. Mas continuamos celebrando o nosso Cordeiro pascal, cujo sangue nos salva; este, porém, não foi sacrificado como um animal sem inteligência, mas porque quis livremente servir-nos no amor até o fim.


Pe. Johan Konings

Viver a comensalidade mesmo tem tempos de Covid-19   

A Quinta-feira Santa, a Ceia do Senhor, nos faz lembrar a comensalidade, negada aos milhões passando fome hoje no Brasil e no mundo, como consequência da intrusão da Covid-19. Notamos, infelizmente, uma ausência dolorosa de solidariedade face à multidão de esfomeados, impedindo o comer juntos (comensalidade). Um dos méritos do MST consiste em ter se organizado em todos os seus assentamentos ao redor da ética da solidariedade entre seus membros e com os de fora. Estão exemplarmente repartindo o que têm com alimentos agroecológicos e com muitas marmitas distribuídas a milhares de famílias nas periferias de nossas cidades. Permitem a realização de um dos mais ancestrais sonhos da humanidade: a comensalidade, vale dizer, todos podendo comer e comer juntos, sentados ao redor de alguma mesa e desfrutando da convivência e dos frutos da generosa Mãe Terra.

Os alimentos são mais que coisas materiais. São sacramentos e símbolos da generosidade da Mãe Terra que tudo nos dá, junto com o  trabalho humano. Não se trata de nutrição mas de comunhão com a natureza e com os outros com quem repartimos o pão. No contexto da mesa comum, o alimento é apreciado e feito objeto de comentários. A maior alegria das cozinheiras é perceber a satisfação dos comensais. Gesto importante na mesa é servir ou passar a comida ao outro. O comportamento civilizado faz com que todos se sirvam, zelando para que a comida chegue suficiente a todos.

A cultura contemporânea modificou de tal forma a lógica do tempo cotidiano em função do trabalho  e da produtividade que enfraqueceu a referência simbólica da mesa. Ela foi reservada para os domingos ou para os momentos especiais de festa ou de aniversário quando os familiares se encontram. Mas, via de regra, deixou de ser o ponto de convergência permanente da família.

A mesa familiar foi substituída por outras mesas, absolutamente dessacralizadas: mesa de negociação, mesa de jogos, mesa de discussão e de debate, mesa de câmbio e mesa de concertação de interesses entre outras. Mesmo dessacralizadas, estas várias mesas guardam uma referência inapagável: são lugar de encontro de pessoas, pouco importa os interesses que as levam a sentarem-se à mesa. Estar à mesa para a troca, negociação, concertação e definição de soluções que agradem as partes envolvidas. Ou também abandonar a mesa pode significar o fracasso da negociação e o reconhecimento do conflito de interesses.

Não obstante esta difícil dialética, importa reservar tempos para a mesa em seu sentido pleno de convivência e a satisfação de poder comer juntos. Ela é uma das fontes perenes de refazimento de nossa essência como seres de relação. Como isso é negado hoje aos pobres e famintos!

Resgatemos um pouco a memória da comensalidade presente em todas as culturas e realizada por Jesus na Última Ceia com seus apóstolos.

Comecemos pela cultura judaico-cristã pois nos é mais familiar. Ai há uma categoria central – a do Reino de Deus, conteúdo primeiro da mensagem de Jesus – que  vem representada por um banquete para o qual todos são convidados. Todos, independentemente de sua situação moral, se sentam à mesa e são feitos comensais. Conta o Mestre:

          “O Reino dos céus é semelhante a um rei que preparou um banquete para o casamento de seu filho. Enviou os criados para chamar os convidados e lhes disse: ide às encruzilhadas dos caminhos e chamai a todos os que encontrardes para a festa. Saíram os criados pelos caminhos e reuniram todos os que encontraram, maus e bons e a sala ficou cheia de convidados” (Mt 22,2-3;9-10).

Outra memória nos vem do Oriente. Nela o comer juntos, solidários uns com os outros, representa a suprema realização humana, chamada de céu. O inverso, a vontade de comer, mas egoisticamente, cada um para si, realiza a suprema frustração humana, chamada de inferno. Conta a lenda:

“Um discípulo perguntou ao Vidente:

          -Mestre, qual é a diferença entre o céu, a comensalidade entre todos e o seu contrário?

          O Vidente respondeu: – Ela é muito pequena mas com graves consequências.

  • Vi comensais sentados à mesa onde havia um monte muito grande de arroz. Todos estavam famintos, quase a morrer de fome. Todos tentavam mas não conseguiam se aproximar do arroz. Com seus longos palitos de mais de um metro de comprimento procuravam levar o arroz à própria boca, individualmente. Por mais que se esforçassem, não o conseguiam porque os palitos eram longos demais. E assim famintos e solitários permaneciam definhanho por causa de uma fome insaciável e sem fim. Isso era o inferno, a negação de toda comensalidade.

          -VI outro cenário maravilhoso, disse o Vidente.  Pessoas sentadas à mesa ao redor de um monte de arroz fumegante. Todos estavam famintos. Mas coisa maravilhosa! Cada um apanhava o arroz e o levava à boca do outro. Serviam-se mutuamente numa imensa cordialidade. Juntos e solidários. Todos saciavam uns aos outros. Sentiam-se como irmãos e irmãs na grande mesa do Tao. E isso era o céu, a plena comensalidade dos filhos e filhas da Terra”.

Essa parábola dispensa qualquer comentário.  Lamentavelmente hoje, em tempos de Covid-19, grande parte da humanidade está faminta e desesperada porque são pouquíssimos aqueles que lhes estendem os palitos para que se saciem mutuamente com os alimentos abundantes da mesa da Terra. Os ricos se apropriam privadamente deles e comem sozinhos sem olhar quem está excluído. Vigora uma falta criminosa de comensalidade entre os humanos. Por isso somos tão carentes de humanidade. Mas o isolamento social nos cria a oportunidade de revermos nossas práticas individualistas e descobrir a fraternidade sem fronteiras e a comensalidade: todos poderem comer e comer juntos.


Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu: “Comer e beber juntos e viver em paz”, Vozes 2006.

Caminhando com Jesus neste início de Semana Santa

                                     Imagem ilustrativa: (Giotto – domínio público)

Robson Ribeiro de Oliveira Castro

O caminho de Jesus é permeado de provações e desconfortos. Ele se encontra com pessoas que o desejam e o colocam à prova a cada instante. Depois de subir a Jerusalém e ser aclamado com mantos e palmas, agora ele passa algumas situações. A liturgia nos mostra o caminho que ele vai trilhando ao longo da Semana Santa. Sua permanência na cidade incomoda, pois ele faz duras críticas a todos que ali estão acomodados e certos de fazerem o bem.

Ao longo da Semana, Jesus vai mostrando o que acontecerá com ele e os discípulos ficam assustados. Assim, ele fala sobre a traição que sofrerá e todos ficam escandalizados. Padre Adroaldo Palaoro, SJ, nos mostra uma realidade importante ao falar sobre a traição – termo de grande impacto na vida de todo ser humano. “O ato de trair implica romper uma aliança que uma pessoa fez com outra. Trair é uma ação que implica consequências, e, quando se fala de relacionamento humano, envolve sofrimento e sensação de abandono, gerando um estado de desconfiança generalizada naquele que foi traído.”

De fato, hoje, a atual situação que vivemos da pandemia da Covid-19 e o descaso do governo em buscar melhores condições para as vacinas, mostra-nos o que é uma traição frente à população que sofre e morre a cada dia. Esta realidade evidencia que não há um perfil ou um rosto para a traição; ela está em qualquer realidade. Jesus vivenciou isso com a traição de Judas, um dos seus amigos. “Foram anos de convivência nas mesmas caminhadas, nas noites ao relento, nas pregações, nas refeições simples do dia a dia e nas festas. Jesus e Judas viviam elos de amizade, de confiança, de esperança entre si.”

A traição de Judas para nós é algo inadmissível, impensável, mas é também uma realidade das nossas vidas e nas relações que temos com o outro. Papa Francisco, em sua homilia do dia 8 de abril de 2020, nos mostra algo intrigante: “Pensemos nos muitos Judas institucionalizados neste mundo, que exploram as pessoas. E pensemos também no pequeno Judas que cada um de nós tem dentro de si na hora de escolher: entre lealdade ou interesse. Cada um de nós tem a capacidade de trair, de vender, de escolher pelo próprio interesse. Cada um de nós tem a possibilidade de se deixar atrair pelo amor ao dinheiro, aos bens ou pelo bem-estar futuro. ‘Judas, onde estás?’ Mas  faço esta pergunta a cada um de nós: ‘Tu, Judas, o pequeno Judas dentro de mim: onde estás?’.”

Esta pergunta ressoa em nosso ser e em nossa consciência. Será que, neste período de pandemia, em que as pessoas têm passado dificuldade e necessidades,  têm tido apoio e em quem elas confiam? Será que somos membros de uma sociedade e uma Igreja que crescem e amadurecem frente aos desafios do dia a dia?

As respostas são inúmeras. Papa Francisco manifestou o desejo de que a Igreja fosse um “Hospital de campanha”, local que aceita todos os feridos, sem distinção, comprometendo-se na prevenção, fazendo observar os diagnósticos e procurando agir com misericórdia diante dos ameaçados de morte e seus familiares. Reforço aqui a prudência frente à pandemia que estamos vivendo; temos que saber levar cada situação. Jesus deseja que saibamos acolher o outro e viver com ele a realidade e todos os problemas inerentes a esta pandemia.

Vivenciar este período, olhando para a realidade, é um convite à conversão. Diante dos desafios, somos chamados a nos colocar no processo de reinvenção do cotidiano. Recriar atitudes e novo jeito de ser e viver. Algo ainda difícil para uma sociedade que vive com pressa e sem tempo, voltada para dentro de seus pequenos mundos, cavernas que levam a fugir da realidade.

Devemos ter cuidado com o excesso de informação; a tecnologia veio a nosso favor, mas também nos faz adoecer. Devemos priorizar o nosso tempo, as nossas relações e, sem medo de errar, priorizar a nossa espiritualidade. Para tanto, frente aos desafios atuais, que possamos buscar e alimentar a nossa espiritualidade nestes tempos de isolamento social, na nossa casa, na nossa família. Acima de tudo, que sejamos atentos às condições em que estamos vivendo.


Robson Ribeiro de Oliveira Castro  é leigo. Mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Atualmente leciona no Instituto Teológico Franciscano (ITF). E-mail: robsonrcastro@yahoo.com.br.