Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

7º Domingo do Tempo Comum

7º Domingo do Tempo Comum

O que é perdoar?

 

José Antonio Pagola

A mensagem de Jesus é clara e categórica: “Amai vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam”. É possível viver esta atitude? O que se nos está pedindo? Podemos amar o inimigo? Talvez precisemos começar por conhecer melhor o que significa “perdoar”.

É importante, em primeiro lugar, entender e aceitar os sentimentos de ira, revolta ou agressividade que nascem em nós. É normal. Estamos feridos. Para não causarmos um dano ainda maior precisamos recuperar o quanto possível a paz interior que nos ajude a reagir de maneira sadia.

A primeira decisão daquele que perdoa é não vingar-se. Não é fácil. A vingança é a resposta quase instintiva que nasce dentro de nós quando nos feriram ou humilharam. Procuramos compensar nosso sofrimento fazendo sofrer quem nos causou dano. Para perdoar é importante não gastar energias imaginando nossa revanche.

É decisivo, sobretudo, não alimentar o ressentimento. Não permitir que o ódio se instale em nosso coração. Temos direito a que se nos faça justiça: aquele que perdoa não renuncia a seus direitos. Mas o importante é curar-nos aos poucos do dano que nos causaram.

Perdoar pode exigir tempo. O perdão não consiste num ato da vontade, que rapidamente conserta tudo. Em geral, o perdão é o final de um processo no qual intervêm também a sensibilidade, a compreensão, a lucidez e, no caso do crente, a fé num Deus de cujo perdão todos nós vivemos.

Para perdoar é necessário às vezes compartilhar com alguém nossos sentimentos. Perdoar não quer dizer esquecer o dano que nos causaram, mas sim recordá-lo da maneira menos prejudicial para o ofensor e para si mesmo. Aquele que chega a perdoar volta a sentir-se melhor.

Quem vai entendendo assim o perdão compreende que a mensagem de Jesus, longe de ser algo impossível e irritante, é o caminho acertado para ir sanando as relações humanas, sempre ameaçadas por nossas injustiças e conflitos.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

O desafio de integrar os dois “Adões”

Frei Gustavo Medella

Dentro de nós moram dois “Adões”. O primeiro e o segundo Adão, a quem São Paulo chama, respectivamente, de “ser vivo” e espírito vivificante (Cf. Rm 15,45).

O primeiro está profundamente preocupado com a própria sobrevivência, traz consigo instintos normais de autopreservação e da proteção de si mesmo. Tem reduzida capacidade de reconhecimento do outro, especialmente dos dramas e dores e do outros, e por isso a empatia para ele é algo bastante complicado de se praticar. O primeiro Adão é bom de briga, aprendeu a se virar nas ruas e esquinas da vida e, por isso, com ele, as coisas funcionam na base do “deu levou”, do “milho pouco, meu pão primeiro”, do “amigos, amigos! Negócios à parte”, do “se for para chorar, que chore o outro”.

O segundo Adão, ao contrário, busca cultivar um coração alargado. Percebe desde sempre a sagrada vocação humana à comunhão, com facilidade compreende a dor do outro e, ainda mais, é capaz de trazê-la para si e assumir como sua. É o espírito do encontro, do serviço, da solidariedade, da ousadia, da doação. É capaz de atitudes surpreendentes e desconcertantes como, por exemplo, amar os inimigos, fazer o bem aos que o odeiam, bendizer os que o amaldiçoam, rezar por aqueles que o caluniam e, quando levar uma bofetada, oferecer a outra face também para apanhar (Cf. Lc 6,27-30).

Em sua sabedoria infinita, o sonho de Deus é que, nós, no íntimo de nosso ser, saibamos dialogar com estes dois “Adões”, com nossos instintos e necessidades integrados à nossa capacidade de amar e de dar um novo significado às dores e frustrações que a vida nos traz. Saber promover esta síntese é lançar-se no seguimento de Cristo, o segundo Adão, promovendo o feliz convívio entre humano e divino que ocorre dentro de cada um de nós.

Leituras bíblicas para este domingo

Primeira Leitura:
1 Samuel 26,2.7-9.12-13.22-23
Naqueles dias, 2Saul pôs-se em marcha e desceu ao deserto de Zif. Vinha acompanhado de três mil homens, escolhidos de Israel, para procurar Davi no deserto de Zif. 7Davi e Abisai dirigiram-se de noite até o acampamento e encontraram Saul deitado e dormindo no meio das barricadas, com a sua lança à cabeceira, fincada no chão. Abner e seus soldados dormiam ao redor dele. 8Abisai disse a Davi: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu inimigo. Vou cravá-lo em terra com uma lançada, e não será preciso repetir o golpe”. 9Mas Davi respondeu: “Não o mates! Pois quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor e ficar impune?” 12Então Davi apanhou a lança e a bilha de água que estavam junto da cabeceira de Saul, e foram-se embora. Ninguém os viu, ninguém se deu conta de nada, ninguém despertou, pois todos dormiam um profundo sono que o Senhor lhes tinha enviado. 13Davi atravessou para o outro lado, parou no alto do monte, ao longe, deixando um grande espaço entre eles. 22E Davi disse: “Aqui está a lança do rei. Venha cá um dos teus servos buscá-la! 23O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e a sua fidelidade. Pois ele te havia entregue hoje em meu poder, mas eu não quis estender a minha mão contra o ungido do Senhor”. – Palavra do Senhor.


Sl 102(103)
O Senhor é bondoso e compassivo.
Bendize, ó minha alma, ao Senhor, / e todo o meu ser, seu santo nome! / Bendize, ó minha alma, ao Senhor, / não te esqueças de nenhum de seus favores! – R.
Pois ele te perdoa toda culpa / e cura toda a tua enfermidade; / da sepultura ele salva a tua vida / e te cerca de carinho e compaixão. – R.
O Senhor é indulgente, é favorável, / é paciente, é bondoso e compassivo. / Não nos trata como exigem nossas faltas / nem nos pune em proporção às nossas culpas. – R.
Quanto dista o nascente do poente, / tanto afasta para longe nossos crimes. / Como um pai se compadece de seus filhos, / o Senhor tem compaixão dos que o temem. – R.


Segunda Leitura:
1 Coríntios 15,45-49
Irmãos, 45o primeiro homem, Adão, “foi um ser vivo”. O segundo Adão é um espírito vivificante. 46Veio primeiro não o homem espiritual, mas o homem natural; depois é que veio o homem espiritual. 47O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem vem do céu. 48Como foi o homem terrestre, assim também são as pessoas terrestres; e como é o homem celeste, assim também vão ser as pessoas celestes. 49E como já refletimos a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem do homem celeste.
Palavra do Senhor.


Evangelho:
Lucas 6,27-38
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: 27“A vós que me escutais, eu digo: amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, 28bendizei os que vos amaldiçoam e rezai por aqueles que vos caluniam. 29Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra. Se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica. 30Dá a quem te pedir e, se alguém tirar o que é teu, não peças que o devolva. 31O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles. 32Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam. 33E se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis? Até os pecadores fazem assim. 34E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber de volta a mesma quantia. 35Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus. 36Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso. 37Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. 38Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante, será colocada no vosso colo; porque, com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos”.
Palavra da salvação.

Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus

7º Domingo do Tempo Comum

Oração: “Concedei, ó Deus todo-poderoso, que, procurando conhecer sempre o que é reto, realizemos vossa vontade em nossas palavras e ações”.

  1. Primeira leitura: 1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23

O Senhor te entregou em minhas mãos,

mas eu não quis te matar.

A primeira leitura lembra um episódio dos inícios da monarquia em Israel. Saul era da tribo de Benjamim e foi ungido pelo profeta Samuel como o primeiro rei de Israel. O rei teve que enfrentar durante vários anos os filisteus, que invadiram a costa da Palestina. O exército de Saul era formado por combatentes voluntários. Jessé de Belém tinha vários filhos e os mandou para a frente de batalha. Um dia enviou Davi, seu filho mais novo, que cuidava do rebanho, para levar mantimentos para seus irmãos que combatiam contra os filisteus. Davi viu então um guerreiro chamado Golias, um gigante muito forte que ninguém tinha coragem de enfrentar. Davi ofereceu-se para combater com o guerreiro e derrubou-o com uma única pedrada de sua funda de pastor. Depois, com a espada do filisteu abatido, cortou sua cabeça. Davi logo tornou-se famoso, por isso Saul o convidou para ser seu escudeiro. À medida que a fama de Davi aumentava, crescia também o ciúme e o ódio de Saul, que começou a persegui-lo de morte. Neste contexto coloca-se a leitura que acabamos de ouvir.

Aconteceu que, durante a perseguição, Saul entrou numa caverna com seus guerreiros a fim de ali passar a noite. Mas na mesma caverna já estavam escondidos Davi e seus companheiros. Grande era a tentação de acabar com a vida de Saul. Davi, porém, disse aos companheiros: “Quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor, e ficar impune”? Em vez disso, pegou a lança de Saul e a bilha de água de junto de sua cabeça e saiu da caverna com os companheiros. No dia seguinte gritou para o rei: “Aqui está a lança do rei. Venha cá um dos teus servos buscá-la! O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e a sua fidelidade”. Davi defende sua inocência e fidelidade ao rei e entrega-se nas mãos de Deus. Quem enfrentou o filisteu Golias em campo aberto não considerava justo matar um rei adormecido. Ao ódio cego de Saul, Davi responde com o perdão e o respeito pela figura do rei, ungido do Senhor. O perdão é o gesto máximo de amor e de misericórdia (Evangelho).

Salmo responsorial: Sl 102

O Senhor é bondoso e compassivo.

  1. Segunda leitura: 1Cor 15,45-49

E como já refletimos a imagem do homem terrestre,

assim também refletiremos a imagem do homem celeste.

Domingo passado Paulo esclarecia a comunidade de Corinto sobre a ressurreição de Cristo e a nossa ressurreição. O esclarecimento se fazia necessário porque havia alguns que aceitavam a fé que Cristo ressuscitou dos mortos, mas duvidavam que os cristãos iriam também ressuscitar. Paulo argumentava que o Filho de Deus assumiu a nossa carne, morreu por nós e ressuscitou dos mortos. Por isso ele é o Primogênito dos mortos, isto é, o primeiro dentre os homens que ressuscitou. A ressurreição de Cristo é a garantia que nós, filhos e filhas de Deus, também vamos ressuscitar. Portanto, se o Filho de Deus assumiu nossa humanidade em Jesus de Nazaré, morreu por nossos pecados e ressuscitou, abriu também as portas para que, pela sua ressurreição, nós participássemos de sua divindade. Para aprofundar o argumento, na leitura de hoje Paulo faz uma comparação entre o primeiro ser humano, Adão, e Jesus Cristo o novo Adão: O primeiro ser humano (Adão) tornou-se um “ser vivo” pelo sopro de Deus (Gn 2,7). Jesus Cristo, o novo Adão, é um espírito que dá vida. Primeiro veio o homem natural, depois é que veio o homem espiritual (Cristo). O primeiro homem foi tirado da terra; o segundo homem veio do céu. Com Adão somos todos ligados à terra (terrestres); com Cristo, o homem celeste, todas as pessoas que creem vão ser também celestes. Hoje somos reflexo do homem terrestre (Adão); no futuro refletiremos a imagem de Cristo ressuscitado, o homem celeste. Cristo ressuscitado é o novo Adão e os que nele creem são a nova criação, uma obra nova de Deus.

Aclamação ao Evangelho

         Eu vos dou este novo mandamento, nova ordem, agora, vos dou;

            que, também, vos ameis uns aos outros, como eu vos amei, diz o Senhor.

  1. Evangelho: Lc 6,27-38

Sede misericordiosos,

como também o vosso Pai é misericordioso.

O evangelho de hoje apresenta uma síntese do “sermão da planície” de Lucas. Os ouvintes de Jesus são os discípulos que o seguem e escutam. Jesus se dirige a eles com intimidade: “A vós que me escutais, eu digo…” A mensagem de Jesus é a continuação das bem-aventuranças (6º Domingo). O tema é o amor aos inimigos, fazendo o bem também a eles. As palavras são imperativas que levam à ação e respeito em relação aos inimigos. Inimigos são aqueles que odeiam os cristãos, amaldiçoam, caluniam, agridem fisicamente e praticam extorsão. O cristão deve dar o que lhe pedem, sem pedir de volta o que tiram. Diante destas pessoas mais pobres vale o princípio: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também a eles”. Em outras palavras, o cristão é convidado a colocar-se no lugar dos pobres e solidarizar-se com eles. Quem ama os inimigos torna-se “filho do Altíssimo”, que é bondoso também com os ingratos e maus. O cristão não se coloca como juiz dos outros, não condena ninguém, mas perdoa. A chave de ouro que nos abre para o amor de Deus é a seguinte: “Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso”.

O discípulo que busca viver o Reino de Deus procura ter um novo espírito em relação ao espírito deste mundo: ama os que o odeiam e faz o bem até aos inimigos. Vive na gratuidade, não busca recompensa. Age como filho de Deus porque Deus ama gratuitamente (Salmo responsorial).


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

A coragem de ir além do humano

Frei Clarêncio Neotti

Não precisamos pensar em inimigos de guerra. Todos temos experiência de gente que não é nossa amiga. A expressão de Jesus: ‘amar os inimigos’ pode ser substituída pelo verbo ‘perdoar’. A experiência de perdoar e não perdoar todos a temos. Perdoar é mais que esquecimento, é mais que ‘deixa pra lá’. Veja-se que em perdoar está contido o verbo doar e a partícula per. Esta significa inteiramente, de ponta a ponta. Tem gente que pensa que é mais fácil perdoar; quando nos distanciamos do inimigo ou da ofensa recebida. Isso pode significar esquecimento, mas não é perdão. O perdão implica o doar uma parte de mim mesmo, talvez a parte da verdade, talvez a parte da minha vaidade ferida, talvez a
parte da minha honra desgastada, talvez a parte dos meus bens roubados, mas, sobretudo, a doação do meu amor fraterno. E isso per, isto é, com todo o coração, sem fingimento, sem nada querer em troca, sem nenhuma condição.

O perdão não é instintivo. Perdoar não é coisa natural. Se alguém me fez o mal, minha natureza desperta a antipatia, o distanciamento, a rotura. Jesus sabia isso. O perdão não ignora a realidade humana. O que Jesus pede é que se tenha a coragem de ir além do modo comum de perceber e vivenciar; seja psicológico, seja sociológico. Aliás, o Cristianismo, de per si, é um passo à frente da realidade corriqueira, um ir além do senso comum, que pode exigir-nos sacrifícios, mudança de mentalidade, correção de metas e rotas. Jesus chamou a tudo isso de ‘conversão’.


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

A difícil e delicada arte da convivência

Frei Almir Guimarães

O ser humano não se atreve a enfrentar decididamente a mudança de que realmente precisa: deixar de viver fechado egoisticamente em si mesmo para abrir-se a um amor solidário.
José Antonio Pagola

♦ O trecho proclamado no Evangelho deste domingo vem de um discurso que em Mateus chamamos de Sermão da Montanha e em Lucas, o evangelista deste ano, Sermão da Planície. Estamos diante de orientações básicas que podem modelar o perfil do discípulo de Jesus, de modo particular no relacionamento com os outros. Misturam-se os temas da acolhida, da generosidade e do perdão. Quando percorremos o texto proclamado damo-nos conta de que se trata de exigentes e difíceis regras para a convivência entre as pessoas, de um programa que nos leva a viver um amor solidário apesar de todas as diferenças e descaminhos.

♦ Existe uma convivência normal entre as pessoas. Encontramo-nos com estes e aqueles ao longo de nossa viagem pela vida. Há esses que constituem nossa família. Pessoas próximas e pessoas menos próximas. O grau de intimidade não é o mesmo. Há alguns tratamos com um amor único e denso. Temos aqui em mente o bem-querer dos esposos, de pais e filhos, de membros da família. Sentimos que precisamos alimentar o bem-querer. Não basta uma convivência mais ou menos habitual, “costumeira”, quase insípida. Marido e mulher precisam crescer no bem-querer. Filhos e pais, pais e filhos haverão de rever sempre de novo a qualidade de seu bem-querer. Presença real de uns na vida dos outros. Não basta o virtual. Não bastam os encontros esporádicos.

♦ Nosso bem-querer vai para fora. Por vezes, ele se traduz numa grande e quase indestrutível amizade. Encontros mais ou menos regulares. Interesse efetivo. Olham juntos na mesma direção. Damo-nos conta que precisamos olhar detidamente para pessoas, de nosso relacionamento ou não que precisam de atenções especiais: dinheiro para pagar uma conta, exortação para deixar alguma coisa que destrói. Sentimos que não existimos apenas para viver em nossa familiazinha ninho quente, tudo “hermoso” e maravilhoso. Tudo o que é humano nos toca. A tragédia de Brumadinho atinge o fundo de nossa alma. Vocacionados para a solidariedade tal tragédia provoca revolta em nós. Uma parte nossa lá estava. O humano que foi destruído pelo descuido era um pouco de cada um de nós.

♦ Querer bem aos de perto, aos de casa e querer bem aos de fora. Nem sempre é fácil. Há pessoas de perto e de longe que nos fazem mal. Quem sabe também nós lhes fazemos. Filhos e filhas, enteados e enteadas sofrem opressão e abusos de toda ordem, dentro de casa. Há traições, brigas, guerra entre irmãos no momento da partilha da herança. Há indiferença solenes e calúnias levantadas. Há pedaços de nós que morrem num filho assassinado. Há casais que se toleram e nunca construíram um casamento viçoso. Há mortes que nos matam antes do tempo. Conviver com quem nos tira o chão de debaixo dos pés.

♦ Ora, o evangelho proclamado incide sobre tudo isso e muito mais.

♦ Os inimigos, aqueles que nos fazem mal, não podem ser eliminados. São seres humanos. O Pai os ama. O Pai faz chover e manda o sol sobre justos e injustos. Perdão? Que quer dizer? Que palavras encontrar para compreender essa proposta de Jesus? Não se trata de esquecer a ofensa, nem de desculpar a quem me ofende. O que está errado, está errado. A justiça sempre pede caminho. Trata-se de jogar a historia dos que nos fizeram mal nas mãos de Deus. Para tanto tal só será feito com uma graça de Deus. Quem puder compreender que compreenda.

♦ O que desejamos que os outros façam para nós, faremos para os outros. Cometemos falhas graves, roubamos, espancamos. Podemos ser roubados. Se tivermos cometido falhas graves para com o pai e a mãe, o amigo e o vizinho e tivermos arrependidos desejamos ser perdoados. Precisamos do perdão para sobreviver. Mesmo que estejamos encarcerados precisamos do perdão dos irmãos e de Deus. Temos o direito de negá-lo aos outros, nós que suplicamos o perdão?

♦ Melhor não ficarmos fazendo muito discurso sobre o perdão. Deletar a culpa do outro? Parece normal. Justiça é justiça. Voltar a ter com ele relacionamento límpido e carinhoso? Será possível? Não é esta a utopia do cristianismo? Criar um mundo de fraternidade e de irmãos? Não é isso que as parábolas de Jesus insinuam e proclamam? Quem puder compreender que compreenda…

♦ Para aprofundar o assunto, algumas linhas de Francesco Torralba:

◊ O perdão é um meio de restaurarmos o que foi quebrado, mas só é possível quando nos arrependemos de verdade e estamos dispostos a uma reconciliação.

◊ O perdão é um processo pelo qual se repara um coração partido. Libertamos o coração da prisão do rancor e do ressentimento, recompomos nosso mundo interior maculado de vergonha e de culpa e o devolvemos a seu estado puro. Recuperamos a inocência de outros tempos quando éramos livres para amar.

◊ A reconstrução dos tecidos esgarçados depende do trabalho do perdão, mas esse exercício é sempre bilateral. Não pode ser realizado por uma única pessoa. Posso implorar o perdão e não ser perdoado. Posso oferecer o perdão ainda que o outro não o peça. Para que o perdão aconteça é necessário um movimento bilateral do agressor para com a vítima e desta em relação ao agressor.

◊ Amar desinteressadamente: “Se fazeis o bem aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis?”. Jesus proclama a lei da generosidade, da gratuidade. Nada da política do dou e dês, do é dando que se recebe. O amor faz sempre o bem.

◊ Na arte da convivência deve falar outro principio enunciado do evangelho. Temos que ser bons como Deus é bom. “Deus é bondoso também para os ingratos e os maus. Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso”.


Texto para reflexão
Não há outra saída, senão o perdão

Ao abordar o tema do perdão, José Tolentino Mendonça conta histórias. Vamos a uma delas:

Esta é contada pelo escritor judeu, Prêmio Nobel da Paz, Elie Wiesel. Na infância esteve prisioneiro em Auschwitz, na companhia dos pais, irmãos, amigos. Praticamente só ele sobreviveu. Podemos sentir até que ponto se sentia espoliado. A partir de 1945 quando a guerra acaba, passa em que o único objetivo de vida era procurar uma impossível justiça para o irreparável. “Como foi possível tamanho horror?… Como foi possível!” E a sua vida era isso. Cada dia adormecia e acordava num inferno. Não conseguia encontrar a sua alma. Até que foi falar com um rabino. E o rabino disse-lhe: “Meu filho, enquanto tu não perdoares, continuarás prisioneiro em Auschwitz”. E essa palavra redimensionou o seu coração para sempre.

José Tolentino Mendonça, “Pai nosso que estais na terra”,Paulinas, p. 112


Oração
Prece encontrada nos escassos pertences de um prisioneiro num campo de concentração.

Senhor,
Quando vieres na tua glória, não te lembres
somente dos homens de boa vontade.
E no dia do Julgamento,
não te lembres apenas das crueldades e violências
que ele praticaram;
lembra-te também dos frutos que produzimos
por causa daquilo que eles nos fizeram.
Lembra-te da paciência, da coragem, da confraternização,
da humildade, da grandeza de alma,
da fidelidade que nossos carrascos
acabaram por despertar em cada um de nós.
Permite então, Senhor, que os frutos em nós despertados
possam servir também para salvar esses homens.


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

O sistema de Deus e o homem novo

Pe. Johan Konings

O evangelho é a continuação do de domingo passado (o Sermão da Planície, de Lc). Aí Jesus anunciava aos pobres o Reino, o “sistema” de Deus; e lamentava os ricos, que colocam a sua esperança em outras coisas. Hoje Jesus nos explica como funciona o sistema de Deus na prática. Amar os inimigos (a 1ª leitura dá um exemplo disso). Não resistir aos exploradores. Fazer aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem. Fazer o bem sem esperar nada em troca … Sermos misericordiosos como Deus é misericordioso! É isso que Jesus pede, pois assim seremos filhos de Deus e realizaremos aquilo para que fomos criados: a sua imagem e semelhança.

O sistema de Deus parece estranho. Não só aos olhos dos poderosos, também aos olhos dos pobres e oprimidos, acostumados a deixar acontecer a exploração, a injustiça etc. Contudo, Deus está certo … O projeto de Deus é vencer o desamor pelo amor. O clamor dos pobres e oprimidos não é um grito de vingança, mas o primeiro passo para, pela justiça, transformar a exploração em fraternidade. A luta dos pobres não busca revanche, mas é o primeiro passo rumo a um novo sistema, em que todos serão beneficiados, porque todos participarão da fraternidade. Não exigir paga do opressor, mas superar o sistema dele com o sistema de Deus. Não exigir retaliação (a lei do talião, do “tal qual”), mas provocar relações novas em que a exploração e a inimizade não cabem mais. “Desinimizar” o mundo, eis a missão histórica dos pobres aos quais Jesus anunciou as bem-aventuranças.

Jesus não oferece receitas a seguir literalmente. Usa imagens para provocar nossa imaginação. Mas fala com bastante clareza para que percebamos em que direção ele nos quer conduzir. Talvez nem sempre precisemos oferecer a outra face a quem nos bate, mas sempre devemos procurar superar o ódio. A superação do sistema iníquo pode às vezes exigir luta, mas que esta não sirva para vingança ou para mera inversão dos papéis (os oprimidos se tornam opressores … ). Sirva para a nova realidade da justiça, amor e fraternidade. O povo dos pobres deve ser solidário, não contaminado pelo vírus da opressão. Então poderá desinfetar o mundo da violência e da exploração, praticando o contrário disso.

A imagem usada por Paulo na 2ª leitura pode nos ajudar para aprofundar esses pensamentos: o Adão antigo pertence ao passado, somos chamados a assemelhar-nos ao “homem novo”, Jesus, confirmado para sempre na ressurreição. É o modelo definitivo do agir humano.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella