Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

4º Domingo da Quaresma

4º Domingo da Quaresma

Como Jesus experimenta Deus

 

José Antonio Pagola

Jesus não queria que as pessoas da Galileia imaginassem Deus como um rei, um senhor ou um juiz. Ele o experimentava como um pai incrivelmente bom. Na parábola do “pai bom” mostrou-lhes como ele imaginava Deus.

Deus é como um pai que não pensa em sua própria herança. Respeita as decisões dos filhos. Não se ofende quando um deles o considera “morto” e lhe pede sua parte da herança.

Com tristeza ele o vê partir de casa, mas nunca o esquece. Aquele filho sempre poderá voltar para casa sem temor algum. Quando um dia o vê chegar faminto e humilhado, o pai “se comove”, perde o controle e corre ao encontro do filho.

Esquece-se de sua dignidade de “senhor” da família e o abraça e beija efusivamente como uma mãe. Interrompe a confissão do filho para poupar-lhe mais humilhações. Ele já sofreu bastante. Não precisa de explicações para acolhê-lo como filho. Não lhe impõe nenhum castigo. Não exige dele um ritual de purificação. Nem sequer parece sentir necessidade de manifestar-lhe o perdão. Não é necessário. Nunca deixou de amá-lo. Sempre procurou para ele o melhor.

Sua preocupação é que seu filho se sinta bem novamente. Dá-lhe de presente o anel da casa e a melhor veste. Oferece urna festa a todo o povoado.

Haverá banquete, música e danças. Junto ao pai, o filho deverá conhecer a festa boa da vida, não a diversão falsa que procurava entre prostitutas pagãs.

É assim que Jesus sentia Deus e assim o repetiria também hoje aos que vivem longe dele e começam a ver-se como que “perdidos” na vida. Qualquer teologia, pregação ou catequese que esquece esta parábola central de Jesus e impede de experimentar Deus como um Pai respeitoso e bom, que acolhe seus filhos e filhas perdidos oferecendo-Ihes seu perdão gratuito e incondicional, não provém de Jesus nem transmite a Boa Notícia de Deus que ele pregou.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Leituras bíblicas para este domingo

Primeira Leitura: Josué 5,9-12

Naqueles dias, 9o Senhor disse a Josué: “Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito”. 10Os israelitas ficaram acampados em Guilgal e celebraram a Páscoa no dia catorze do mês, à tarde, na planície de Jericó. 11No dia seguinte à Páscoa, comeram dos produtos da terra, pães sem fermento e grãos tostados nesse mesmo dia. 12O maná cessou de cair no dia seguinte, quando comeram dos produtos da terra. Os israelitas não mais tiveram o maná. Naquele ano comeram dos frutos da terra de Canaã.


Sl 33(34)
Provai e vede quão suave é o Senhor!
Bendirei o Senhor Deus em todo o tempo, / seu louvor estará sempre em minha boca. / Minha alma se gloria no Senhor; / que ouçam os humildes e se alegrem! – R.
Comigo engrandecei ao Senhor Deus, / exaltemos todos juntos o seu nome! / Todas as vezes que o busquei, ele me ouviu / e de todos os temores me livrou. – R.
Contemplai a sua face e alegrai-vos, / e vosso rosto não se cubra de vergonha! / Este infeliz gritou a Deus e foi ouvido, / e o Senhor o libertou de toda angústia. – R.


Segunda Leitura: 2 Coríntios 5,17-21
Irmãos, 17se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo. 18E tudo vem de Deus, que, por Cristo, nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério da reconciliação. 19Com efeito, em Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo, não imputando aos homens as suas faltas e colocando em nós a palavra da reconciliação. 20Somos, pois, embaixadores de Cristo, e é Deus mesmo que exorta através de nós. Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus. 21Aquele que não cometeu nenhum pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornemos justiça de Deus.


Evangelho: Lucas 15,1-3.11-32

Naquele tempo, 1os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar. 2Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus: “Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”. 3Então, Jesus contou-lhes esta parábola: 11“Um homem tinha dois filhos. 12O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles. 13Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada. 14Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome naquela região e ele começou a passar necessidade. 15Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para seu campo cuidar dos porcos. 16O rapaz queria matar a fome com a comida que os porcos comiam, mas nem isso lhe davam. 17Então caiu em si e disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. 18Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; 19já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados’. 20Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos. 21O filho, então, lhe disse: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’. 22Mas o pai disse aos empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. 23Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. 24Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa. 25O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. 26Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. 27O criado respondeu: ‘É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com saúde’. 28Mas ele ficou com raiva e não queria entrar. O pai, saindo, insistia com ele. 29Ele, porém, respondeu ao pai: ‘Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. 30Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado’. 31Então o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu. 32Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’”.

Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus

4º Domingo da Quaresma

 Oração: “Ó Deus, que por vosso Filho realizais de modo admirável a reconciliação do gênero humano, concedei ao povo cristão correr ao encontro das festas que se aproximam, cheio de fervor e exultando de fé”.

  1. Primeira leitura: Js 5,9a.10-12

O povo de Deus celebra a Páscoa depois de entrar na Terra Prometida.

A primeira leitura nos coloca no clima das celebrações pascais. Páscoa significa “passagem”. Os hebreus, liderados por Moisés, celebraram a páscoa antes de passarem pelo mar Vermelho (Ex 12,1-20). Deus escolheu os hebreus como seu povo eleito e com ele selou uma aliança no monte Sinai. As andanças dos hebreus pelo deserto duraram “quarenta” anos. Neste meio tempo Moisés morreu e Josué assumiu a liderança do povo, em seu lugar. Conduzido por Josué, o povo atravessou o rio Jordão a pé enxuto, como haviam feito no mar Vermelho. Em seguida, foram circuncidados todos os homens nascidos no deserto (Js 5,1-8). Assim foram incluídos entre os descendentes de Abraão, que recebeu a promessa da terra e de uma grande descendência, que agora se cumpriam. Pelo rito da circuncisão o israelita era também incluído na aliança que Deus fez com o povo no Sinai. Por isso Deus diz a Josué: “Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito”. Libertados da escravidão do Egito entram na terra prometida por Deus a Abraão e sua descendência para uma vida nova (cf. 2ª leitura), a ser vivida com liberdade e dignidade. Deixaram de servir como escravos do faraó para servirem livremente o Deus libertador. Neste clima celebram com alegria a primeira Páscoa na terra prometida. Deixam de se alimentar do maná, e começam a se alimentar dos produtos da terra, recebida como dom de Deus.

Salmo responsorial: Sl 33

  Provai e vede quão suave é o Senhor.

  1. Segunda leitura: 2Cor 5,17-21

Por Cristo, Deus nos reconciliou consigo mesmo.

O texto de Paulo que ouvimos está focado no tema da “reconciliação”, termo que ocorre cinco vezes na leitura. O fundamental é “estar em Cristo”. O cristão, batizado em Cristo, é uma nova criatura porque nasce de Deus por meio de Cristo. Paulo se considera “ministro” da reconciliação. Segundo a pregação de Paulo, Cristo trouxe a reconciliação não apenas para os judeus, mas para toda a humanidade. Por meio de Cristo, que morreu pelos nossos pecados, Deus abriu seu coração para reconciliação de todas as pessoas. Cabe a nós buscá-la. Por isso Paulo diz: “Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus”. A Quaresma é o tempo para reconciliar-se com Deus e com os irmãos.

Aclamação ao Evangelho

Louvor e honra a vós, Senhor Jesus.

Vou levantar-me e vou a meu pai e lhe direi:

Meu Pai, eu pequei contra o céu e contra ti.

  1. Evangelho: Lc 15,1-3.11-32

Este teu irmão estava morto e tornou a viver.

Domingo passado Jesus exortava seus discípulos à conversão e nos revelava a face de um Deus paciente e misericordioso, sempre pronto a acolher o pecador arrependido. O Evangelho de hoje aprofunda o tema da misericórdia divina. Lucas reúne no capítulo 15 três parábolas da misericórdia, a ovelha perdida, a moeda perdida e o filho pródigo. A primeira se conclui com a frase “no céu haverá mais alegria por um pecador que se converte do que por noventa e nove justos” (15,7); de modo semelhante termina a segunda parábola termina: “Haverá alegria entre os anjos de Deus por um pecador que se converte” (15,10). O mesmo clima de alegria reina na parábola do filho pródigo, que termina com uma alegre festa pelo retorno do filho. O foco da parábola é o pai que acolhe com alegria o filho arrependido. Convém prestar atenção nos personagens envolvidos na parábola, no que eles fazem e no que eles dizem. No ponto de partida da parábola Jesus ocupa o centro da cena (v.1-3). De um lado temos os cobradores de imposto e pecadores que procuram Jesus para escutá-lo. Doutro lado estão os fariseus e mestres da Lei, que desprezam os pecadores. Não vêm para ouvir a Jesus, mas para criticá-lo: “Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”.

A parábola que Jesus conta é uma resposta às críticas dos escribas e fariseus e uma lição para nós, atuais ouvintes da Palavra de Deus. Prestemos atenção aos personagens da parábola, ao que eles dizem e fazem. Os gestos e as palavras do pai da parábola representam o Pai misericordioso revelado por Jesus (3º domingo da Quaresma!). O filho mais novo representa os publicanos e pecadores, que se aproximam de Jesus para ouvi-lo e são por ele acolhidos. O filho reconhece seu pecado e volta para pedir perdão: “Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho”. O irmão mais velho representa os fariseus e mestres da Lei. Afasta-se do irmão pecador, não o reconhece como irmão e nega-se a participar da festa preparada pelo pai. Considera seu pai injusto, não aceita a gratuidade do amor do pai a seu irmão pecador. Pensa como os fariseus e mestres da Lei, que se julgavam justos e merecedores de recompensa. Se o pai fosse justo lhe daria ao menos um cabrito para festejar “com seus amigos”, pois sempre obedeceu ao pai, e não “esse teu filho” que gastou a herança com prostitutas. – A atitude do pai é admirável. Quando o filho mais novo pede a parte da herança e rompe com a família, o pai o atende sem repreendê-lo. Nada fala, mas respeita sua liberdade. Quando o filho volta, antes que lhe peça perdão, corre ao seu encontro e cheio de compaixão, abraça-o e cobre-o de beijos. O pai não o repreende e nada lhe fala, mas seus gestos dizem tudo. O filho mais novo se considera indigno de ser chamado seu filho, mas o pai devolve-lhe a dignidade de filho: a melhor túnica, o anel no dedo e sandálias nos pés e prepara uma festa para a família. Vai ao encontro do filho mais velho e tenta reconciliá-lo com o irmão caçula: “Tu estás sempre comigo”… Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado”. – A parábola do “filho pródigo” (melhor: “pai amoroso”) nos ensina a pedir perdão pelos nossos pecados e a perdoar nossos irmãos que pecam.


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Miséria e misericórdia

Frei Clarêncio Neotti

A palavra miséria (mísero, miserável) e a palavra misericórdia são parentes próximas. Em ambas, está a raiz latina miser (pobre, necessitado). Em misericórdia, acrescenta-se a palavra cor (coração). A palavra misericórdia sugere duas direções de sentido, ambas ativas. Primeira, misericórdia = um coração voltado para o necessitado. Segunda, misericórdia = um coração necessitado voltado para quem pode socorrê-lo. No primeiro sentido, tenho misericórdia, quando eu me abro e volto-me para o necessitado. No segundo sentido, há misericórdia quando eu, necessitado, volto-me para quem me pode socorrer. Isso significa que o egoísta (voltado para os seus interesses) e o orgulhoso (autossufidente) jamais compreenderão a misericórdia.

No primeiro sentido, Deus é o mais misericordioso de todos, chegando a amar os ingratos e os maus (Lc 6,35) e a ponto de se poder dizer: Deus é a misericórdia. Infinito é seu amor, infinita é sua misericórdia. Observe-se como na parábola de hoje ele sai ao encontro do filho. É verdade que o filho voltava arrependido. Mas o pai não lhe pede contas, não lhe impõe condições, não testa sua sinceridade, não se importa pelo que dirão ‘os outros’ (o filho mais velho é um exemplo de escandalizado). Simplesmente o abraça e, nesse abraço, acontece o perdão, lindamente simbolizado na “túnica mais preciosa” (v. 22), com que mandou vesti-lo, e a festa que mandou fazer.

No segundo sentido, a criatura humana é a mais beneficiada pela misericórdia, sempre que se põe em seu devido lugar de criatura dependente de Deus. A parábola de hoje ilustra bem a verdadeira misericórdia e seus contrários. Bastaria comparar a atitude do Pai com a do filho mais velho, cumpridor de todos os deveres e respeitoso do pai e de seus bens. Em outras palavras, não basta observar os mandamentos (os fariseus também os observavam). É preciso ter misericórdia. Talvez podemos dizer que o Antigo Testamento se fundamentava na observância da Lei, e o filho mais velho bem podia ser o exemplo dessa observância sincera. O Novo Testamento dá um largo passo avante: além de observar a lei, devemos ser “ricos em misericórdia” (Ef 2,4), e o pai da parábola de hoje é o grande e justo modelo. Foi o próprio Jesus quem disse: “Sede misericordiosos como o Pai do céu é misericordioso” (Lc 6,36).


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

A festa da volta

Parábola do pai bom

 Frei Almir Guimarães

A preocupação do pai é que seu filho se sinta bem novamente. Dá-lhe de presente o anel da casa e a melhor veste. Oferece uma festa a todo o povoado. Haverá banquete, música e danças. Junto ao pai, o filho deverá conhecer a festa boa da vida, não a diversão falsa que procurava entre as prostitutas pagãs.
José Antonio Pagola

♦ Vamos nos aproximando dos dias da semana santa. Estamos a realizar nosso retiro quaresmal. Tempo propício para uma mudança de vida, uma transformação do coração e ocasião para reconhecer a misericórdia de Deus a nos envolver.  Novamente a parábola do pai das misericórdias, do pai bom e da festa da volta.

♦ José Tolentino Mendonça assim resume a parábola que agora, pela enésima vez, acabamos de ouvir na liturgia deste domingo: “A parábola é uma história que nos apanha por dentro. E está tudo neste espelho: a necessidade de liberdade do filho mais novo, os seus sonhos sem sustentação, os passos em falso, a sua fantasia de onipotência, a sua incapacidade de sustentar desejo e lei. Com um desenlace que se podia esperar: o vazio e a solidão  a que ele se vê votado, quando sobrevém a hora da vulnerabilidade. Ele que primeiro teve tantos amigos, e um mundo à volta dele que parecia deslumbrante de promessa, ao chegar à desventura descobrir-se-á, afinal, completamente só”  (Elogio da sede, p.  109-110).

♦ O pai respeita a liberdade. O filho mais novo resolve fazer a vida a seu jeito. O pai não impede sua saída. Conhecemos o que aconteceu. O moço gasta os bens, vai se degradando a ponto de viver inominável solidão e ter que comer as vagens destinadas aos poucos. Conseguindo “libertar-se” da vida da casa paterna, cortando a dependência vital para com o pai e a família torna-se um trapo. Não se fica impune quando se rompe com um amor que nos cria e nos sustenta.

♦ Precisaria ele ter aprendido a arte do desejo. Ele substitui o pai pelos bens, coloca os bens materiais e seus desejos de coisas imediatas em lugar do pai. Um cinismo autista, autocentrado. “A sociedade de consumo, com suas ficções e vertigens, promete satisfazer tudo e todos, e falaciosamente identifica a felicidade com o estar saciado. Saciados, cheios, preenchidos, domesticados – resolvidas na festa do consumo as nossas necessidades  (ou que pensamos que sejam).  A saciedade que se obtém pelo consumo é uma prisão do desejo, reduzido a um impulso de satisfação imediata. O verdadeiro desejo, porém, é estruturalmente assinalado por uma falta, por uma insatisfação, por uma sede que se torna princípio dinâmico e projetivo. O desejo é literalmente insaciável porque aspira àquilo que não pode se possui: o sentido. Nesta linha, o desejo não se sacia, mas aprofunda-se” (Tolentino, idem, p.  113-114).

♦ O pai lançava seu olhar na direção do horizonte. Esperava a volta. Não podia fazer nada, a não ser esperar. Quando um vulto se desenha no fim do caminho ele desce escadas e ladeiras e literalmente se precipita para agarrar e abraçar o menino que volta. Não deixa que ele fale. Simplesmente está feliz porque ele voltou. Era preciso fazer festa.

♦ “Com tristeza o vê partir de casa, mas nunca o esquece. Aquele filho sempre poderá voltar para casa sem temor algum. Quando um dia o vê chegar faminto e humilhado o pai se “comove”, perde o controle e vai ao encontro do filho.  Esquece de sua dignidade de “senhor” da família e o abraça e o beija efetivamente como uma mãe. Interrompe a confissão do filho para poupar-lhe mais humilhações. Ele já sofreu bastante. Não precisa de explicações para acolhe-lo como filho. Não lhe impõe nenhum castigo. Não  exige dele um ritual de purificação. Nem sequer  parece sentir necessidade de manifestar o perdão. Não é necessário. Nunca deixou de amá-lo. Sempre procurou para ele o melhor” (Pagola, O caminho aberto por Jesus, Lucas p. 256). A misericórdia é a arte necessária para salvar a vida, a misericórdia é um caminho que todos nós precisamos aprender. Não existe misericórdia em excesso. Ela não tem limites. Misericórdia não é dar ao outro o que ele merece, mas precisamente o que ele não merece.  Dar além, ir mais longe.

♦ O filho mais velho também precisava aprender a lição da misericórdia. Ele havia permanecido perto do pai, fazendo o que era preciso fazer. Agora reclama do tratamento dado pelo pai ao pródigo. “O pai sai para convida-lo com o mesmo carinho com que acolheu o irmão. Não grita com ele nem lhe dá ordens.  Com amor humilde procura persuadi-lo a entrar na festa da acolhida. É então que o filho explode, deixando a descoberto todo o seu ressentimento. Passou toda a vida cumprindo as ordens do pai, mas não aprendeu a amar com ele ama. Só sabe exigir seus direitos e  denegrir o irmão” (Pagola, op. cit., p.261)

♦ O filho mais velho, com efeito, é aquele que fica junto do pai. Parece não ter a inconsistência do filho mais novo. Não conseguiu, no entanto, resolver a relação com o irmão que é de competitividade. Não é gratuito. Quer recompensa.  Lembra que o pai nunca lhe deu um cabrito. Falta-lhe, de fato, o sentido da gratuidade. A cólera e o ressentimento fazem com o rapaz não consiga olhar com compaixão e alegrar-se com a volta do tresloucado irmão.

♦ Sentimento de inveja: o outro deixa de ser um parceiro e torna-se um rival. Sentimento estranho esse da inveja infiltrado em toda parte, que queima por dentro, capaz de fazer em cacos ambientes familiares, locais de trabalho, e mesmo nossas comunidades cristãs.

Conclusão

♦ Uma parábola que retrata nossa história, história do mundo e a história da comunidade dos discípulos de Jesus. A Igreja é a hospedaria para onde podem voltar os que andaram se machucando na aventura da vida e nas estradas da existência. É possível voltar. Com o coração na mãos somos abraçados pelo Pai que não cessa de espreitar nossa volta.


Oração

SOU TEU FILHO PRÓDIGO

Filho pródigo, filho ingrato, rompi a relação contigo, meu Pai.
Quis fazer a vida sozinho. Inventar minha felicidade longe de ti.
Não compreendi a gratuidade de teu amor que era minha casa, minha riqueza e minha vida.
Quis apossar-me da herança imediatamente, para mim, só para mim.
Quis ficar com teus dons como se me fossem devidos, cego e inconsciente que eu estava.
Tu nada disseste: deixaste que eu partisse  para o distante país de meus sonhos  onde gastei  todos os bens.
Esta parcela de vida, esta parcela de amor, delapidei egoisticamente, gulosamente, bobamente.
E quando já havia gasto tudo, houve fome no meu coração.  O pecado é o pais da fome e do tédio, do desgosto e da privação.
Decepcionado, satisfeito, dei-me conta que me achava no vazio.
Mergulhando em mim mesmo, tive sede de outra coisa: lembrei-me de tua casa e decidi levantar-me e voltar.
De longe já me percebeste.
Andavas me esperando  na encruzilhada  de meus caminhos.
Correste em minha direção.
Me estreitaste em teus ombro e em teu peito enormes.
Estavas, efetivamente, mais emocionado do que eu.
Nada me perguntaste a respeito do que havia feito de minha vida.
Pressentias que eu vivera  experiências doloridas e doídas.
Tu me deste roupa nova, sandálias novas.
Mandaste que  fosse colocado mais um prato com talheres à mesa e disseste: “Comamos, festejemos:  meu filho está de volta”.
Muito obrigado, Senhor, tu és meu Pai, minha Casa, meu Amor, minha  Vida!
Não esquecerei nunca que não quiseste a humilhação de teu filho, porque queres que ele viva.

Michel  Hubaut


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

Reconciliação em Cristo, alegria da volta

Pe. Johan Konings

Antigamente, a proximidade da Páscoa causava, em alguns, nervosismo, em outros, piedosa alegria: era o momento de fazer a confissão pascal… A liturgia de hoje nos fala da alegria da volta e reconciliação. No quadro apresentado pela 1ª leitura, os hebreus chegam ao fim de sua peregrinação pelo deserto. Estão entrando na Terra Prometida e podem esquecer a vergonha de sua escravidão. Celebram a Páscoa, comendo o pão sem fermento dos primeiros frutos da terra recebido de Deus. O evangelho descreve filho pródigo que volta para seu pai, o qual o acolhe com uma alegria do tamanho do seu amor, pois seu filho “estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado”. Assim, a liturgia de hoje é uma grande exortação para que o pecador volte à alegria que Deus lhe destina. Basta que se entregue a Cristo, admitindo, no seu coração, que a morte de Jesus por amor nos reconciliou e que a vida dele nos indica o rumo a seguir.

Por que não dar ouvido a essa exortação? Aquele que vive estraçalhado por desejos egoístas, contraditórios e insaturáveis, por que não volta a viver a benfazeja doação da vida, a exemplo de Jesus? O que sente remorsos por estar injustiçando seus semelhantes, por que não repara sua injustiça para reencontrar a paz? Quem se deixou seduzir pelas drogas, consciente de estar num beco sem saída, por que não imita o exemplo do filho pródigo? Aquele que sabe que sua riqueza causa a pobreza de muitos, por que não se esforça para, em espírito de comunidade, criar estruturas de participação?

Se Jesus contou a parábola que hoje é apresentada, é porque sua missão serve para instaurar essa relação nova entre Deus e os homens. A fé, a união com Cristo implica essa nova relação com Deus, o encontro do arrependimento do pecador com a misericórdia de Deus, ao qual dizemos: “Volta-te para nós, para que voltemos a ti!” Pois o pai misericordioso já estava voltado para ele antes que ele voltasse … Basta aderir radicalmente a Cristo, na comunhão de sua Igreja, para encontrar o caminho da reconciliação, a alegria da volta, a Terra Prometida.

A Igreja recebeu de Cristo um sinal para marcar com sua garantia essa reconciliação: o sacramento da penitência ou da volta. Quem sinceramente se confessa, pode estar seguro de sua reconciliação com Deus. Este sacramento encontra muita resistência porque ninguém gosta de se sentir julgado. Mas o evangelho de hoje mostra exatamente que Deus não quer julgar o pecador, quer simplesmente apertá-lo nos braços. A confissão deve ser apresentada não como julgamento, mas como acolhida. O que importa não é o passado, a lista de pecados a apresentar, e sim, o futuro: o abraço acolhedor do Pai.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella