Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

3º Domingo do Tempo Comum

Terceiro Domingo do Tempo Comum

O primeiro olhar

 

José Antonio Pagola

O primeiro olhar de Jesus não se dirige ao pecado das pessoas, mas ao sofrimento que arruína suas vidas. A primeira coisa que toca seu coração não é o pecado, mas a dor, a opressão e a humilhação que homens e mulheres padecem. Nosso maior pecado consiste precisamente em fechar-nos ao sofrimento dos outros para pensar apenas em nosso próprio bem-estar.

Jesus se sente “ungido pelo Espírito” de um Deus que se preocupa com os que sofrem. É esse Espírito que o impele a dedicar sua vida inteira a libertar, aliviar, curar, perdoar: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu. Enviou-me para dar a Boa Notícia aos pobres, para anunciar aos cativos a liberdade e aos cegos a visão, para pôr em liberdade os oprimidos, para anunciar o ano de graça do Senhor”.

Este programa de Jesus nem sempre foi o dos cristãos. A teologia cristã dirigiu sua atenção mais ao pecado das pessoas do que ao seu sofrimento. O conhecido teólogo Johann Baptist Metz denunciou repetidamente este grave deslocamento: “A doutrina cristã da salvação dramatizou demasiadamente o problema do pecado, enquanto relativizou o problema do sofrimento”. É assim. Muitas vezes a preocupação com a dor humana ficou atenuada pela atenção à redenção do pecado.

Nós cristãos não cremos em qualquer Deus, mas no Deus atento ao sofrimento humano. Diante da “mística de olhos fechados”, própria da espiritualidade do Oriente, voltada sobretudo para a atenção ao interior, o seguidor de Jesus se sente chamado a cultivar uma “mística de olhos abertos” e uma espiritualidade de responsabilidade absoluta para atender à dor dos que sofrem.

O cristão verdadeiramente espiritual – “ungido pelo Espírito” – é encontrado, da mesma forma que Jesus, junto aos desvalidos e humilhados. O que o caracteriza não é tanto a comunicação íntima com o Ser supremo quanto o amor a um Deus Pai que o envia para os seres mais pobres e abandonados. Como recordou o cardeal Martini: nestes tempos de globalização, o cristianismo deve globalizar a atenção ao sofrimento dos pobres da Terra.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Leituras bíblicas deste domingo

PRIMEIRA LEITURA

Neemias 8,2-6.8-10

Leitura do livro de Neemias – Naqueles dias, 2o sacerdote Esdras apresentou a Lei diante da assembleia de homens, de mulheres e de todos os que eram capazes de compreender. Era o primeiro dia do sétimo mês. 3Assim, na praça que fica defronte da porta das Águas, Esdras fez a leitura do livro, desde o amanhecer até o meio-dia, na presença dos homens, das mulheres e de todos os que eram capazes de compreender. E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei. 4Esdras, o escriba, estava de pé sobre um estrado de madeira, erguido para esse fim. 5Estando num lugar mais alto, ele abriu o livro à vista de todo o povo. E, quando o abriu, todo o povo ficou de pé. 6Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus, e todo o povo respondeu, levantando as mãos: “Amém, amém!” Depois, inclinaram-se e prostraram-se diante do Senhor, com o rosto em terra. 8E leram, clara e distintamente, o livro da Lei de Deus e explicaram seu sentido, de maneira que se pudesse compreender a leitura. 9O governador Neemias e Esdras, sacerdote e escriba, e os levitas que instruíam o povo disseram a todos: “Este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus. Não fiqueis tristes nem choreis”, pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei. 10E Neemias disse-lhes: “Ide para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor. Não fiqueis tristes, porque a alegria do Senhor será a vossa força”.

Palavra do Senhor.


Sl: 18B(19)

Vossas palavras, Senhor, são espírito e vida!

1. A lei do Senhor Deus é perfeita, / conforto para a alma! / O testemunho do Senhor é fiel, / sabedoria dos humildes. – R.

2. Os preceitos do Senhor são precisos, / alegria ao coração. / O mandamento do Senhor é brilhante, / para os olhos é uma luz. – R.

3. É puro o temor do Senhor, / imutável para sempre. / Os julgamentos do Senhor são corretos / e justos igualmente. – R.

4. Que vos agrade o cantar dos meus lábios / e a voz da minha alma; / que ela chegue até vós, ó Senhor, / meu rochedo e redentor! – R.


SEGUNDA LEITURA

1 Coríntios 12,12-30 ou 12-14.27

[A forma breve está entre colchetes.]

Leitura da primeira carta de São Paulo aos Coríntios – [Irmãos, 12como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo. 13De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito. 14Com efeito, o corpo não é feito de um membro apenas, mas de muitos membros].

15 Se o pé disser: “Eu não sou mão, portanto não pertenço ao corpo”, nem por isso deixa de pertencer ao corpo. 16 E se o ouvido disser: “Eu não sou olho, portanto não pertenço ao corpo”, nem por isso deixa de pertencer ao corpo. 17 Se o corpo todo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se o corpo todo fosse ouvido, onde estaria o olfato? 18 De fato, Deus dispôs os membros, e cada um deles no corpo, como quis. 19Se houvesse apenas um membro, onde estaria o corpo? 20 Há muitos membros e, no entanto, um só corpo. 21 O olho não pode, pois, dizer à mão: “Não preciso de ti”. Nem a cabeça pode dizer aos pés: “Não preciso de vós”. 22 Antes, pelo contrário, os membros do corpo que parecem ser mais fracos são muito mais necessários do que se pensa. 23 Também os membros que consideramos menos honrosos, a estes nós cercamos com mais honra, e os que temos por menos decentes, nós os tratamos com mais decência. 24 Os que nós consideramos decentes não precisam de cuidado especial. Mas Deus, quando formou o corpo, deu maior atenção e cuidado ao que nele é tido como menos honroso, 25 para que não haja divisão no corpo e, assim, os membros zelem igualmente uns pelos outros. 26 Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; se é honrado, todos os membros se regozijam com ele.

[27 Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros desse corpo].

28 E, na Igreja, Deus colocou, em primeiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, os profetas; em terceiro lugar, os que têm o dom e a missão de ensinar; depois, outras pessoas com dons diversos, a saber: dom de milagres, dom de curas, dom para obras de misericórdia, dom de governo e direção, dom de línguas. 29 Acaso todos são apóstolos? Todos são profetas? Todos ensinam? Todos realizam milagres? 30 Todos têm o dom das curas? Todos falam em línguas? Todos as interpretam?

 Palavra do Senhor.


EVANGELHO

Lucas 1,1-4; 4,14-21

Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas – 1Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, 2como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra. 3Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo. 4Deste modo, poderás verificar a solidez dos ensinamentos que recebeste. Naquele tempo, 4,14Jesus voltou para a Galileia com a força do Espírito, e sua fama espalhou-se por toda a redondeza. 15Ele ensinava nas suas sinagogas, e todos o elogiavam. 16E veio à cidade de Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na sinagoga no sábado e levantou-se para fazer a leitura. 17Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito: 18″O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos 19e para proclamar um ano da graça do Senhor”. 20Depois fechou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. 21Então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”.

Palavra da salvação.

Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus

3º Domingo do Tempo Comum 

Oração: “Deus eterno e todo-poderoso, dirigi a nossa vida segundo o vosso amor, para que possamos, em nome do vosso Filho, frutificar em boas obras”.

  1. Primeira leitura: Ne 8,2-4a.5-6.8-10

Leram o Livro da Lei de Deus e explicaram seu sentido.

O contexto da leitura da Lei acontece em praça pública, para uma assembleia composta de homens e mulheres. Para a leitura foi preparado um estrado num ponto mais alto. Quando o leitor, o escriba Esdras, sobe ao estrado e abre o livro da Lei, o povo todo se levanta pronto para ouvir. Antes de começar a leitura, porém, Esdras põe-se a louvar a Deus. Não sabemos qual é o motivo deste louvor; talvez, para louvar e agradecer a Deus pelo dom da Lei. E o povo responde “Amém! Amém”, concorda com o convite e se prostra em adoração a Deus. Agora o povo está pronto para ouvir a palavra de Deus. Foi feita, então, de modo bem claro e audível a leitura da Lei e, depois, foi explicada para melhor compreensão. A leitura durou desde a manhã até o meio-dia. Deus conseguiu falar ao coração do povo, porque a leitura e a explicação da Lei foram feitas com clareza. O povo toma consciência de seus pecados, fica triste e chora arrependido. Os levitas, porém, convidam o povo a se alegrar, “porque este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus”. O governador Neemias pede ao povo que se alegre a faça festa, “porque a alegria do Senhor será a vossa força”. Nesta leitura e celebração da Palavra o povo teve uma experiência de Deus e saiu alegre e fortalecido para enfrentar a vida do dia a dia.

As celebrações da Palavra de Deus, a homilia e a celebração da Eucaristia proporcionam um encontro real dos fiéis com Deus?

Salmo responsorial

Vossas palavras, Senhor, são espírito e vida!

  1. Segunda leitura: 1Cor 12,12-30

Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo e,

individualmente, sois membros desse corpo.

Paulo continua a falar sobre os dons do Espírito Santo. Agora dá o exemplo do corpo e seus membros. Batizados e alimentados pelo mesmo Espírito, fazemos o corpo de Cristo. O Espírito Santo faz que judeus e gregos, escravos e livres vivam em harmonia neste mesmo corpo de Cristo. Deus distribui seus dons a cada membro da comunidade conforme ele quer. Todos os membros de um corpo são importantes, cada qual com sua função específica em vista do bem do corpo todo. Assim deve ser a comunidade cristã, animada pelo mesmo Espírito do Senhor, que nos mantém unidos para o bem comum.

Aclamação ao Evangelho: Lc 4,18

Foi o Senhor quem me mandou, boas notícias anunciar;

ao pobre, a quem está no cativeiro, libertação eu vou proclamar.

Evangelho: Lc 1,1-4; 4,14-21

Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura.

Hoje ouvimos a introdução do Evangelho de Lucas, onde ele explica como escreveu seu livro, para quem escreveu e o que pretende com seu evangelho (1,1-4); em seguida, narra-se a visita de Jesus a Nazaré, onde fora criado (4,14-21). Na introdução, Lucas lembra que, antes dele, outros já tentaram escrever a “história” do que aconteceu “entre nós”. Ele também quer escrever o que recebeu da tradição, por meio de testemunhas oculares e ministros da palavra (pregadores). Portanto, não deseja fazer um simples relato dos fatos acontecidos, mas apresentar a mensagem de Jesus, bem como o que dele falaram os ministros da palavra. Fez uma cuidadosa investigação “de tudo o que aconteceu desde o princípio”, para os destinatários conhecerem a firmeza da doutrina na qual foram instruídos. Teófilo (“amigo de Deus”), a quem dedica seu livro, pode ser tanto uma pessoa ou todos os “amigos de Deus”, os cristãos que receberam a primeira instrução.

Após ser batizado por João, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, onde foi tentado. Em seguida, com a força do Espírito Santo, voltou para a Galileia e começou a ensinar nas sinagogas (4,14-15); sua fama espalhou-se por toda a parte e era elogiado. É com esta fama que Jesus entra na sinagoga de Nazaré. Ao saber que Jesus estava na sinagoga, todo mundo acorreu, talvez, mais por curiosidade do que para ouvir a Palavra de Deus. Para ter um verdadeiro encontro com Deus é preciso estar preparado, disposto a ouvir a sua Palavra (1ª leitura). Dentro do rito de um culto na sinagoga havia um momento em que se lia um trecho do livro previsto para o dia. Qualquer homem adulto podia ser convidado, ou apresentar-se, para a leitura. Jesus não perdeu a ocasião de apresentar-se para fazer a leitura e explicar o texto, “como era seu costume” (v. 15). O chefe da sinagoga ofereceu-lhe o rolo do livro de Isaías. Jesus ocupou o estrado, desenrolou o livro até encontrar o texto que desejava ler. Terminada a leitura, enrolou de novo o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se. Era a posição para ensinar, no caso, explicar o texto lido. Todo o mundo estava atento ao que iria dizer sobre o texto. Jesus apenas diz: “Hoje se cumpriu esta passagem que acabais de ouvir”. Em vez de dizer o que os ouvintes deveriam fazer, Jesus aplica o texto a si mesmo e se pergunta “o que Deus quer que eu faça” e encontrou a resposta no texto de Isaías. Sua resposta ao Pai é adotar o texto lido como programa de sua missão: a) sente-se movido pelo Espírito do Senhor, que sobre ele repousou no batismo (3,21-22); b) sua missão é anunciar a boa-nova aos pobres; c) libertar os aprisionados; d) devolver a visão aos cegos; e) libertar os oprimidos; f) proclamar o ano da “graça” do Senhor, isto é, um ano do perdão de todas as dívidas, de modo que os insolventes aprisionados sejam libertados. Jesus dirige sua mensagem aos pobres, anuncia um ano do perdão das dívidas, da misericórdia divina. Não quer apenas levar as pessoas a Deus, mas trazer o Reino de Deus até as pessoas. Quer estabelecer uma sociedade justa e fraterna, devolver a dignidade humana a todos os injustiçados. Jesus entendeu que, no texto, Deus lhe falava e deu sua resposta.


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Encontrar o perdido

Frei Clarêncio Neotti

Diz-nos Lucas que Jesus tinha o costume de frequentar, todos os sábados, a sinagoga (v. 16). É um dos traços fundamentais, segundo Lucas, de Jesus: um homem de oração. Essa característica de Jesus vem acentuada muitas vezes. Outra marca visível de Jesus, no Evangelho de Lucas, é a sua misericórdia. Para o Evangelista, Jesus é a encarnação da misericórdia divina, já anunciada no trecho de hoje (v. 18). Um terceiro traço, bastante forte e decisivo, é a universalidade da salvação trazida por Jesus. Ele não veio para um grupo de observantes da lei, de penitentes, de privilegiados. Veio para todos e para todas as categorias de pessoas. Ele é “a luz que ilumina (isto é: salva) todas as nações” (Lc 2,32). No Evangelho de Lucas, Jesus morre, abrindo as portas do céu a um ladrão arrependido (Lc 23, 42-43), porque viera “procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10).

No Evangelho de Lucas, a missão de Jesus se desenvolve dentro de uma grande normalidade: ele tem uma família, um emprego, tem amigos, adapta-se à geografia, à cultura e à sociedade locais e frequenta a sinagoga. Mas difere de todos, porque estava, desde o início, possuído pelo Espírito Santo.


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

Fala, Senhor!

Escutando os sons da sinagoga de Nazaré

Frei Almir Guimarães

Os pobres são o grande desafio para nós que somos seguidores de Jesus. Podemos continuar discutindo sobre a moral sexual, os preservativos ou o sacerdócio da mulher. Mas o Espírito de Jesus continuará nos interpelar a todos nós a partir do sofrimento dos desempregados, dos pobres e dos famintos. Só ele nos pode sacudir de nossas fáceis “ortodoxias” de direita ou de esquerda.
José Antonio Pagola
O caminho aberto por Jesus, Lucas; Vozes, p. 83

>> “E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da lei”. Um domingo que fala da escuta, da necessidade de fazer com que nossos ouvidos externos e internos prestem atenção às falas essenciais da vida. Ouvimos a voz dos outros, a leitura de declarações e documentos de manifestos reivindicativos , o alarido das praças públicas, os vídeos enviados para nossos celulares. Ouvimos a voz das pessoas à nossa volta. Até que ponto somos capazes de ouvir o som das vozes dos outros e os gritos sem som estampados nos rostos das pessoas, o brado da terra que foi se tornando árida e leitos dos rios nada mais que caminhos transitáveis a pé enxuto A grande pergunta que se faz hoje em nossa liturgia é: “Estamos em condições de ouvir a voz do mundo e a voz do Senhor?” A liturgia nos fala do reencontro do Livro do Lei. “E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei”. Os frequentadores da sinagoga de Nazaré, por sua vez, ouviram o programa da missão de Jesus, programa repetido hoje aos nossos ouvidos.

>> Escutar… a audição é uma atitude profundamente humana. Não vivemos sozinhos. Formamos uma comunidade de vida. Ouvimos a expressão das necessidades dos outros. Acolhemos suas palavras de apoio, de encorajamento, de dor, de alegria. Somente assim criamos laços. Os sons penetram em nosso ser e se transformam em atenção, delicadeza, ajuda, jubilo. Escutar é mais do que ouvir fonemas. “A escuta talvez seja o sentido de verificação mais adequado para acolher a complexidade do que uma vida é. Contudo escutamo-nos tão pouco e, dentre as competências que desenvolvemos raramente está a arte de escutar. Na Regra de São Bento há uma expressão essencial, se queremos perceber como se ativa uma escuta autêntica. “Abre o ouvido do teu coração”. Quer dizer a escuta não se faz apenas com o ouvido exterior, com o sentido do coração. A escuta não é apenas a recolha do discurso sonoro. Antes de tudo é atitude, é inclinar-se para o outro, é disponibilidade para acolher o dito e o não dito, o entusiasmo da história ou o seu avesso, a sua dor” (José Tolentino Mendonça, A mística do instante, Paulinas, p. 107).

>> Somos sempre convidados a ouvir a Palavra da Escritura. Veneramos os textos tanto do Antigo quanto do Novo testamento. Ao longo de milênios os fiéis se reúnem em torno do Livro que tem vida, livro de vida.. Não se trata apenas de uma leitura ilustrativa e curiosa de belos ou de intrincados textos. Trata-se de captar como os escritores sacros colocaram por escrito uma leitura de fé dos acontecimentos. Lemos as Escrituras em nossas casas, ouvimos trechos dos profetas, dos sábios, de historiadores onde aparecem intervenções do Senhor ontem e que podem ser aplicadas aos nosso tempos. À luz do Espírito são dirigidas a nós as palavras de Ezequiel sobre os bons e maus pastores, os lamentos de Jó e a imensa alegria do Pai do filho pródigo.

>> Em nossos tempos se insiste na Leitura orante da Bíblia (lectio divina). “Audição” em particular, mas de modo especial esse exercício comunitário de ouvir juntos Palavra. Palavra ouvida e explicada no seio da celebração eucarística. Palavra que acompanha o ritual dos sacramentos. Ela mesma nos pede que não fechemos o nosso coração. A Palavra assimilada, desejada, buscada ilumina os nossos passos. Belas as posturas do autor do salmo 118 que elogia a Palavra. Até que ponto ao longo de nossa vida estamos adquirindo uma familiaridade com a Palavra?

>> Na leitura do evangelho deste domingo Jesus vai á sinagoga de sua terra. Pedem-lhe que faça a leitura. Eles escolhe uns versículos de Isaías. Fala-se de um personagem consagrado para anunciar a boa nova aos pobres, libertar os cativos, abrir a vista dos cegos e dar firmeza às pernas dos trôpegos. Terminada a leitura Jesus senta-se. Os olhos de todos estão fixos nele. Guardamos sempre na memória e no coração as palavras de Jesus: “Hoje se cumpriu esta passagem das Escrituras que acabaste de ouvir”.

>> O projeto de Jesus é anunciar um caminho novo de vida a todos. Uma força do alto toma conta dele. No seu Batismo uma voz irrompera dos céus e dissera: “Este é o meu Filho amado, escutai-o”. Jesus não cessará de falar, de proclamar os desejos do Pai, de indicar as linhas da construção de um mundo novo. O que ele deseja é que seus ouvintes tenham vontade de ouvir e não se fechem. Quando o som chega até nossos ouvidos podemos nos desinteressar e ouvir sem ouvir. Domingo após domingo chega até nós Evangelho da missa, difícil ou fácil, mas palavra de Jesus que nos é dirigida para iluminar os passos que temos que dar na arte de existir aqui e agora.

>> Quando Jesus terminou de ler a passagem de Isaías afirma que nele se realiza a palavra do Profeta. Jesus e seus discípulos andarão mundo a fora a buscar os mais sofridos pela vida, os que nada possuem senão o desejo de sobreviver um pedaço de pão e um prato de feijão. O projeto de Jesus é abrir os olhos dos cegos, dar luz a uns e outros para enxerguem o sentido da vida. Convida os seus a se serem libertadores de amarras na maneira de viver o casamento e a família, a anunciarem uma luz nova na maneira de usar e de partilhar os bens, na busca de uma justiça verdadeira que faça do mundo um espaço de fraternidade. Jesus veio para isso e os olhos de todos se fixaram nele.

>> “O sentido da escuta tem a ver com prontidão. Aquele que escuta constrói uma vigilância interior que lhe permite atuar com diligência que não deixa de surpreender. É essa a imagem dos atletas, no início da partida, prontos à espera do sinal. A qualidade da escuta determina a qualidade da resposta” (José Tolentino Mendonça, op. cit. p. 117).


Oração

Jesus, Senhor do amor e da ternura,
fala-nos mais uma vez deste projeto
que tu chamas Reino de Deus.
Diz-nos que ele existe,
que ele está aqui,
ainda que seja singelo,
ainda que seja pequeno
como um grão de mostarda.
Dize-nos que o Reino
é a coisa mais limpa e bela
que podemos sonhar,
que ali não haverá pranto nem pobreza,
nem enganos, nem opressão.
Dize-nos que o reino
é a utopia realizada,
o cumprimento de tudo o que se deseja
o coração humano.
E ensina-nos também
o caminho que leva a ele.
Dize-nos mais uma vez
que Tu és o caminho
dos pobres e dos humildes,
da solidariedade e da misericórdia
da não violência e do amor.
Repete-nos mais uma vez
que todos os caminhos
são um só caminho


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

Pastoral orgânica e libertadora

Pe. Johan Konings

A Igreja, ensina Paulo na 2ª leitura, é corpo, organismo composto de diversos órgãos. Para poder agir como convém, é preciso que todos os órgãos do organismo colaborem. O pé não pode desprezar a mão,nem ocupar seu espaço. Este ideal (de constituir um corpo com todos os seus órgãos bem coordenados) é o que hoje se chama a “pastoral orgânica”. Não fria organização, mas amor e carinho agindo harmoniosa e organicamente – amor que tenha cabeça!

Esta pastoral orgânica, este formar corpo é indispensável para que a Igreja continue a fazer aquilo que Jesus, no evangelho, proclama ser sua missão: anunciar a boa-nova aos pobres e oprimidos. Pois uma Igreja dividida, entregue ao jogo da ambição e do poder, como poderia ela priorizar os que não têm nada a oferecer e optar verdadeiramente pelos pobres e oprimidos? A opção pelos pobres, ao modelo de Jesus, e a coerência da Igreja na sua vida e pastoral são inseparáveis. Quem recebeu o dom do saber – os teólogos e professores – tem de colocá-lo a serviço dos simples, para que entendam a vida da Igreja e participem dela como sujeitos conscientes. Quem tem o dom da administração deve fazer com que as possibilidades econômicas dos ricos estejam à disposição dos necessitados.

Quem tem o dom de governar – a hierarquia – deve usá-lo para animar e exortar, e não para impor decisões autoritárias. Os que muito podem, material ou socialmente, devem formar organismo único com os que pouco podem. Os que pouco podem devem se empenhar como sujeitos para criar a comunidade fraterna em que todos vivem solidários. Organicidade pastoral é isso aí: que todas as possibilidades e funções estejam bem unidas em tomo do “alegre anúncio” que por Jesus foi dirigido em primeiro lugar aos pobres e oprimidos, anunciando a sua libertação como sinal de um novo tempo, de uma nova realidade. Para isso, a Igreja deve ser comunidade de amor “em e de verdade” (lJo 3,18). Ela é o corpo, a presença atuante do próprio Cristo, levando adiante a sua missão.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella