Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

3º Domingo da Quaresma

3º Domingo da Quaresma

Vida estéril

 

José Antonio Pagola

O risco mais grave que nos ameaça a todos é acabar vivendo uma vida estéril. Sem dar-nos conta, vamos reduzindo a vida ao que nos parece importante: ganhar dinheiro, não ter problemas, comprar coisas, saber divertir-nos … Passados alguns anos, podemos encontrar-nos vivendo sem outro horizonte e sem outro projeto.

É o mais fácil. Pouco a pouco vamos substituindo os valores que poderiam alentar nossa vida por pequenos interesses que nos ajudam a “ir levando”. Não é muito, mas nos contentamos com “sobreviver” sem maiores aspirações. O importante é “sentir-nos bem”.

Estamos nos instalando numa cultura que os entendidos chamam de “cultura da intrascendência” Confundimos o valioso com o útil, o bom com o que nos apetece, a felicidade com o bem-estar. Sabemos que isso não é tudo, mas procuramos convencer-nos de que nos basta.

No entanto, não é fácil viver assim, repetindo-nos sempre de novo, alimentando- nos sempre da mesma coisa, sem criatividade nem compromisso algum, com essa sensação estranha de estagnação, incapazes de assumir nossa vida de maneira mais responsável.

A razão última desta insatisfação é profunda. Viver de maneira estéril significa não entrar no processo criador de Deus, permanecer como espectadores passivos, não entender o que é o mistério da vida, negar em nós o que nos torna mais semelhantes ao criador: o amor criativo e a entrega generosa.

Jesus compara a vida estéril de uma pessoa a uma “figueira que não produz frutos”. Para que há de ocupar um terreno inutilmente? A pergunta de Jesus é inquietante. Que sentido tem viver ocupando um lugar no conjunto da criação, se nossa vida não contribui para construir um mundo melhor? Contentamo-nos com passar por esta vida sem torná-la um pouco mais humana?

Criar um filho, construir uma família, cuidar dos pais idosos, cultivar a amizade ou acompanhar de perto uma pessoa necessitada … não é “desperdiçar a vida”. mas vivê-la a partir de sua verdade mais plena.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Se não agora, na próxima safra, quem sabe?

 Frei Gustavo Medella

Atribuir a tragédias ou a grandes infortúnios o rótulo de castigo divino por conta dos pecados da própria pessoa atingida ou de seus antepassados era comum na tradição judaica. E, infelizmente, continua sendo entre diversos que insistem em se autodenominar cristãos. Há líderes religiosos, inclusive, que gostam de listar as desgraças que se abateram sobre seus supostos desafetos. Triste imaginar que ainda existam pessoas capazes de usar o nome de Deus de forma tão banal, enganosa e mesquinha.

No Evangelho deste 3º Domingo da Quaresma (Lc 13,1-9), Jesus tira de Deus o peso de qualquer suposto castigo e entrega nas mãos de cada um de seus seguidores a responsabilidade pela própria caminhada. A partir daí a situação muda de figura e fica mais séria. O ser humano, em sua liberdade, passa também a ser protagonista na construção de seu caminho. Buscar a conversão sincera que conduz à salvação é tarefa pessoal e intransferível. Não significa que, então, Deus aposte num seguimento onde o que importa é o “cada um por si”. Ao contrário: o próprio movimento de conversão naturalmente leva aquele que crê a derrubar os muros do próprio individualismo para construir pontes de solidariedade e partilha com os irmãos e irmãs.

E Deus, como fica nesta história? Ele faz as vezes do vinhateiro. Em sua paciência infinita e perseverante não cansa de adubar a figueira (que somos nós) para que ela produza, se não agora, na próxima safra, saborosos frutos de conversão.


FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011. 

Leituras bíblicas para este domingo

Primeira Leitura: Êx 3,1-8a.13-15

Naqueles dias, 1Moisés apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã. Levou, um dia, o rebanho deserto adentro e chegou ao monte de Deus, o Horeb.

2Apareceu-lhe o anjo do Senhor numa chama de fogo, do meio de uma sarça. Moisés notou que a sarça estava em chamas, mas não se consumia, e disse consigo: 3“Vou aproximar-me desta visão extraordinária, para ver por que a sarça não se consome”.

4O Senhor viu que Moisés se aproximava para observar e chamou-o do meio da sarça, dizendo: “Moisés! Moisés!” Ele respondeu: “Aqui estou”. 5E Deus disse: “Não te aproximes! Tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás é uma terra santa”.

6E acrescentou: “Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”.

Moisés cobriu o rosto, pois temia olhar para Deus.

7E o Senhor lhe disse: “Eu vi a aflição do meu povo que está no Egito e ouvi o seu clamor por causa da dureza de seus opressores. Sim, conheço os seus sofrimentos. 8aDesci para libertá-los das mãos dos egípcios, e fazê-los sair daquele país para uma terra boa e espaçosa, uma terra onde corre leite e mel”.

13Moisés disse a Deus: “Sim, eu irei aos filhos de Israel e lhes direi: ‘O Deus de vossos pais enviou-me a vós’. Mas, se eles perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’, o que lhes devo responder?”

14Deus disse a Moisés: “Eu Sou aquele que sou”. E acrescentou: “Assim responderás aos filhos de Israel: ‘Eu Sou’ enviou-me a vós’”.

15E Deus disse ainda a Moisés: “Assim dirás aos filhos de Israel: ‘O Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó enviou-me a vós’. Este é o meu nome para sempre, e assim serei lembrado de geração em geração”.


Responsório: Sl 102

— O Senhor é bondoso e compassivo.

— O Senhor é bondoso e compassivo.

— Bendize, ó minha alma, ao Senhor,/ e todo o meu ser, seu santo nome!/ Bendize, ó minha alma, ao Senhor,/ não te esqueças de nenhum de seus favores!

— Pois ele te perdoa toda culpa,/ e cura toda a tua enfermidade;/ da sepultura ele salva a tua vida/ e te cerca de carinho e compaixão.

— O Senhor é indulgente, é favorável,/ é paciente, é bondoso e compassivo./ Quanto os céus por sobre a terra se elevam,/ tanto é grande o seu amor aos que o temem.


Segunda Leitura: 1Cor 10,1-6.10.12

1Irmãos, não quero que ignoreis o seguinte: Os nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem e todos passaram pelo mar; 2todos foram batizados em Moisés, sob a nuvem e pelo mar; 3e todos comeram do mesmo alimento espiritual, 4e todos beberam da mesma bebida espiritual; de fato, bebiam de um rochedo espiritual que os acompanhava — e esse rochedo era Cristo —.

5No entanto, a maior parte deles desagradou a Deus, pois morreram e ficaram no deserto. 6Esses fatos aconteceram para serem exemplos para nós, a fim de que não desejemos coisas más, como fizeram aqueles no deserto. 10Não murmureis, como alguns deles murmuraram, e, por isso, foram mortos pelo anjo exterminador. 12Portanto, quem julga estar de pé tome cuidado para não cair.


Evangelho: Lc 13, 1-9

* 1 Nesse tempo, chegaram algumas pessoas levando notícias a Jesus sobre os galileus que Pilatos tinha matado, enquanto ofereciam sacrifícios. 2 Jesus respondeu-lhes: «Pensam vocês que esses galileus, por terem sofrido tal sorte, eram mais pecadores do que todos os outros galileus? 3 De modo algum, lhes digo eu. E se vocês não se converterem, vão morrer todos do mesmo modo. 4 E aqueles dezoito que morreram quando a torre de Siloé caiu em cima deles? Pensam vocês que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? 5 De modo algum, lhes digo eu. E se vocês não se converterem, vão morrer todos do mesmo modo.» 6 Então Jesus contou esta parábola: «Certo homem tinha uma figueira plantada no meio da vinha. Foi até ela procurar figos, e não encontrou. 7 Então disse ao agricultor: ‘Olhe! Hoje faz três anos que venho buscar figos nesta figueira, e não encontro nada! Corte-a. Ela só fica aí esgotando a terra’. 8 Mas o agricultor respondeu: ‘Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e pôr adubo. 9 Quem sabe, no futuro ela dará fruto! Se não der, então a cortarás’.»

* 13,1-9: No caminho da vida há acontecimentos trágicos. Estes não significam que as vítimas são mais pecadoras do que os outros. Ao contrário, são convites abertos para que se pense no imprevisível dos fatos e na urgência da conversão, para se construir a nova história. A parábola (vv. 6-9) salienta que, em Jesus, Deus sempre dá uma última chance.

Bíblia Sagrada – Edição Pastoral

Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus

3º Domingo da Quaresma

Oração: “Ó Deus, fonte de toda misericórdia e de toda bondade, vós nos indicastes o jejum, a esmola e a oração como remédio contra o pecado. Acolhei esta confissão da nossa fraqueza para que, humilhados pela consciência de nossas faltas, sejamos confortados pela vossa misericórdia”.

  1. Primeira leitura: Ex 3,1-8a.13-15

O “Eu sou” enviou-me a vós.

Moisés, nascido numa família de hebreus, foi adotado e educado pela filha do faraó. Mas, ao perceber como os hebreus, seus irmãos de sangue, sofriam pela dura escravidão, revoltou-se e propôs-se a libertá-los. Na tentativa de socorrer seu povo, acabou assassinando um egípcio e teve que fugir para o deserto. Casou-se, então, com uma das filhas de Jetro e cuidava do rebanho de seu sogro. A vida Moisés de parecia resolvida, pois tinha família e trabalho. Mas seus irmãos de sangue continuavam escravos no Egito. Sem dúvida, enquanto cuidava do rebanho, lembrava-se do sofrimento de seu povo. Numa destas andanças pelo deserto ficou surpreso ao ver um espinheiro que ardia em chamas, mas sem se consumir. Na chama de fogo aparece-lhe “o anjo do Senhor”. Curioso, aproxima-se e logo ouve a voz do Senhor: “Não te aproximes! Tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás é uma terra santa”. Deus então se apresenta como o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus dos antepassados. E apresenta-se como um Deus misericordioso, que vê a aflição do seu povo, ouve seu clamor e conhece seu sofrimento e desce para libertá-lo. Deus então chama Moisés para tornar visível a misericórdia divina, porque Moisés também viu a aflição, ouviu o clamor e conheceu o sofrimento dos israelitas. Moisés, porém, perseguido de morte, temia enfrentar o faraó. No entanto, o mais difícil era convencer seu povo do projeto divino de libertação e ter autoridade para agir em nome de Deus. Por isso pergunta pelo nome de quem o enviava para esta missão. E o Senhor lhe responde: “Eu sou aquele que sou”. “Se lhe perguntarem, dirás ‘Eu sou’ enviou-me a vós”. Deus é Aquele que está aqui, está ao lado de Moisés, ao lado dos hebreus oprimidos, ao nosso lado, para nos libertar e salvar, porque é misericordioso. – Deus vê a aflição do povo, ouve os gritos de socorro dos que são oprimidos, conhece/sabe o quanto eles sofrem, desce para libertá-los e lhes dar a terra prometida. Hoje, Deus ouve os clamores e vê a aflição dos pobres oprimidos quando nós os ouvimos; conhece os sofrimentos dos excluídos quando no tornamos um “Igreja em saída” e nos colocamos a seu lado para socorrê-los.

Salmo responsorial: Sl 102

O Senhor é bondoso e compassivo.

  1. Segunda leitura: 1Cor 10,1-6.10-12

A vida do povo com Moisés no deserto foi escrita para ser exemplo para nós.

Na 1ª carta à comunidade de Corinto Paulo apresenta-se como modelo a ser seguido. Ele é como um atleta de Cristo (cf. 1Cor 9,24-27). Tem como meta definida anunciar a boa-nova de Cristo e levar todos os recém-convertidos à união definitiva com o Senhor. Num estádio – diz Paulo – muitos são os atletas que correm, e apenas um deles conquista a vitória. Para conquistar a vitória, o atleta deve ter a meta bem definida e preparar-se para alcançá-la. O desejo de Paulo é que todos os batizados a alcancem. No texto que ouvimos o Apóstolo adverte os cristãos de Corinto a não desistirem da corrida apenas iniciada com o batismo. Como argumento, faz uma leitura “espiritual”, isto é, cristã do evento do êxodo do Egito. No relato do êxodo, a nuvem era o símbolo da presença do Deus libertador. A “nuvem” estava presente na saída do Egito, na travessia do mar Vermelho e na caminhada pelo deserto, rumo à terra prometida. Sob a proteção da nuvem “todos passaram pelo mar, e todos foram batizados em Moisés, sob a nuvem e pelo mar” (alusão ao batismo em Cristo). Foram alimentados pelo maná (Ceia do Senhor), todos beberam da mesma água tirada do rochedo espiritual – “esse rochedo era o Cristo” –, que os acompanhava no deserto (cf. Mt 16,18; Jo 4,14). No entanto, diz Paulo, a maior parte deles morreu no deserto, não chegou à terra prometida. E comenta: “Esses fatos aconteceram para servirem de exemplo para nós”. O batismo é apenas o início de uma caminhada. Não podemos retroceder ou ficar parados. É preciso seguir o exemplo de Paulo, o atleta de Cristo. Somos “Igreja em saída”, diz o Papa Francisco, uma Igreja que, animada pelo Espírito Santo, caminha com Cristo e em Cristo para a união definitiva com Deus.

Aclamação ao Evangelho

Glória e louvor a vós, ó Cristo.

Convertei-vos, nos diz o Senhor, porque o Reino dos céus está perto.

  1. Evangelho: Lc 13,1-9

Se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo.

Jesus estava a caminho de Jerusalém. Ia acompanhado pelos discípulos e pelo povo que vinha da Galileia, para a festa da Páscoa. No caminho, duas vezes havia anunciado aos discípulos que em Jerusalém seria entregue pelos chefes do povo para ser condenado à morte. Durante a viagem contaram a Jesus que em Jerusalém Pilatos acabara de matar um grupo de galileus, enquanto ofereciam sacrifícios no Templo. A grande afluência de povo para a festa da Páscoa era ocasião para revoltas populares de caráter político, contra a dominação romana. E os romanos intervinham com violência para coibir qualquer tentativa nesse sentido. Esse deve ter sido o motivo da intervenção sangrenta de Pilatos. Na boca do povo a avaliação do acontecido: esses galileus morreram porque eram pecadores. Ao receber a notícia do massacre, Jesus aproveita a oportunidade para convidar os discípulos e o povo à conversão. Em vez de condenar como pecadores os que sofreram a desgraça, diz Jesus, todos deviam examinar seus pecados e converter-se: “se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”. Como exemplo, lembra o acidente em que morreram 18 pessoas enquanto construíam a torre de Siloé. Em ambos os casos Jesus não vê o pecado como causa da desgraça, e sim, a desgraça como oportunidade de conversão.

Em seguida, na parábola da figueira estéril, Jesus deixa claro que a misericórdia divina antecede à sua justiça. A vinha era uma espécie de pomar e simboliza o povo de Israel (cf. Is 5,1-7). Na vinha eram plantadas não apenas videiras, mas também outras árvores frutíferas, como a figueira, a oliveira e até mesmo cereais. Deus é o dono que plantou a vinha (Israel) e confiou-a aos cuidados do jardineiro, que é Jesus. Na parábola, o dono, de tempos em tempos, visitava a vinha para conferir a quantidade e qualidade da produção. Ao examinar a figueira, diz ao jardineiro: “Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro”. E mandou cortar a figueira. O jardineiro, porém, pediu ao dono que desse mais um tempo. Ele iria redobrar os cuidados com a figueira. Pode ser – dizia ele – que venha a dar frutos –. Se no ano seguinte o patrão não encontrasse os frutos esperados, poderia mandar cortar a figueira. Jesus “não quebra o caniço rachado, nem apaga o pavio que ainda fumega” (Mt 12,20). Deus dá um tempo ao pecador, na esperança que se converta. Mas este tempo tem como limite a vida presente. Por isso, Jesus chora sobre a cidade: “Jerusalém! Jerusalém! … Quantas vezes eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne os pintinhos debaixo das asas, e tu não quiseste” (Lc 13,34)! A Quaresma é “o tempo de conversão, o dia da salvação”, que Deus nos dá!


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Crime, sacrilégio e fatalidade

Frei Clarêncio Neotti

É conhecida a crueldade de Pilatos, atestada também por historiadores profanos, como Flávio Josefo, nascido em Jerusalém e falecido em Roma (+ 100). E conhecida era a antipatia de Pilatos pelos galileus, dos quais desconfiava sempre que estivessem tramando algum motim. E os galileus tinham razão para viverem em pé de revolta: eram explorados quase como escravos, ora a serviço dos sírios, que possuíam a maior parte das terras boas, ora pelos romanos, que cobravam altíssimos impostos. Por isso mesmo, pode-se compreender a violência de Pilatos com o grupo de galileus que, no templo, ofereciam sacrifícios e que, aos olhos de Pilatos, se aproveitavam do lugar sacro para conspirações.

Mas a chacina praticada por Pilatos, aos olhos do povo, era um imperdoável escândalo: primeiro pelo massacre em si, que era nítido crime e grave sacrilégio. Depois, por ter Deus permitido que morressem no momento em que prestavam culto, massacrados de tal modo que o sangue dos animais sacrificados e o deles se misturaram no chão do templo. Na mentalidade do povo, se eles foram mortos na hora em que praticavam o bem, deveriam estar cobertos de pecados. Caso
contrário, Deus devia tê-los livrado da desgraça. Essa ligação entre castigo e pecado persiste ainda hoje em muita gente. Justifica-se a explicação que querem de Jesus, o novo Mestre.


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

Três belas lições para o tempo da Quaresma

Frei Almir Guimarães

“Deixa ainda a figueira este ano.., pode ser que ainda dê fruto”

Continuamos nossa grande revisão de vida no tempo quaresmal. Mesmo na agitação de cada um desejamos que a Quaresma seja retiro do povo que quer ser do Senhor. Tempo de busca do deserto, do silêncio, de pedir ao Senhor que nos perdoe, tempo de pedir-lhe que nos dê ainda um tempo para frutificar. Um coração contrito e humilhado Deus não rejeita.

Tira as sandálias dos teus pés porque esta terra é santa.

♦ O Senhor apareceu a Moisés. O Senhor é esse Mistério que procuramos, que nos envolve. Chamamo-lo de Deus, Altíssimo, Magnifico, Magnânimo. É o Senhor, aquele que não cabe em nossos conceitos. Não é uma ideia, um primeiro motor. Um oceano de beleza. Um borbulhar de vida.

♦ Um arbusto ardia e ardia sem parar. Um fogo que não se consumia. Um amor ardente. Uma beleza santa. Uma presença que pedia amoroso respeito e prostração de nossas entranhas. Não podemos nos aproximar desse fogo com empáfia, cobranças e posturas de autossuficiência. Somos convidados a tirar as sandálias dos pés. Ele será nossa proteção. Tirar as sandálias. Apresentar-se diante dele em nossa nudez primigênia.

♦ “Eu sou o Deus de teus pais, desde sempre caminho junto de teus ancestrais”. Descalços aproximamo-nos desse que é fornalha. “Moisés cobriu o rosto, pois temia olhar para Deus”. Ouvira mesmo dizer que não se pode ver a Deus e continuar a viver.

♦ Um Deus que ouve o clamor dos oprimidos. Aquele que se chama “eu sou” diz a Moisés. “Ouvi o clamor do povo. Estou perto. Tu, Moisés, vais tirar minha gente da escravidão. Tu vais preparar a saída do povo da terra estrangeira. Tu lhes dirás a meu respeito: Eu sou enviou-me a voz”. O nome de Deus é eu sou. Moisés experimenta Deus e é convidado a ser guia do povo para um mundo novo.

♦ Paulo escrevendo aos coríntios lembra que na travessia do deserto houve muita murmuração. A viagem da vida é longa. A travessia não é fácil. Travessia daquele povo e nossa travessia.

♦ A nuvem, quer dizer, o Altíssimo, acompanhava o povo. Bebiam e comiam à mesa servida por Deus. Maná, água do rochedo. Um Deus presente, embora aparentemente ausente, esperando fé e confiança em sua ação.

♦ Alguns murmuraram e não chegaram a bom termo. Como em nossa trajetória existencial e cristã. A vida é movimento. Nada é definitivo. Tudo está em vir a ser. A gente escuta o Evangelho, começa a viver segundo seus ditames… mas há o cansaço. Desânimo, rotina, Deus parece distante, fica difícil caminhar sempre na noite de nossas dúvidas. Crescemos exteriormente e não atentamos que interiormente deveríamos também crescer, estar atentos às transformações. Não esquecer nosso esforço. Não será sinal de maturação, reclamar e murmurar contra Deus. “Quem julga estar de pé, cuide para não cair.

♦ Até que ponto confiamos nossa vida ao Senhor? Lutamos em nossos serviços pastorais para que as pessoas não percam a esperança? Por que lá por dentro de nós, não poucas vezes, há tanta falta desconfiança da ação de Deus? Olhai os lírios dos campos… Mesmo na noite escura não esquecer que estamos nas pupilas dos olhos do Senhor.

Tempo de cavar em volta da figueira

♦ Vida, vida de todos os dias. Casados, solteiros, marido e mulher, filhos e pais, padeiros, balconistas, advogados e vereadores. Nós e muitos “vocês”. Sorrisos, mesa de refeições, cansaço, férias, missa de domingo. Tudo isso e tanto mais. Somos uma figueira plantada no mundo. Corpo, inteligência, vontade, desejos, sonhos… Fomos plantados na terra dos homens para frutificar, ser para, levantar os caídos à beira do caminho, destruir o ídolo que vive dentro de nós que se chama “eu e sempre eu”. Sacerdotes, homens, mulheres, jovens e idosos: que frutos andamos produzindo? O tempo da vida é curto. O tempo da Quaresma nos convida a uma transformação interior. Tempo de capinar os campos, limpar a estrada, tirar os entulhos para que a voz do Senhor possa ecoar entre nós e fazer de nós criaturas plasmadas pelo Mistério, seres densos, seres santos, sal da terra, luz do mundo e fermento na massa. “Se não vos converterdes, todos vós perecereis”. Fazemos nosso o pedido do dono da figueira: “Senhor, deixa a figueira ainda esse ano. Vou cavar envolta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tua a cortarás”.

♦ Meu Deus, o que podemos fazer para que figueira da vida dê frutos:

◊ Será preciso que desvencilhemo-nos de nós mesmos. Que tenhamos a coragem de descer do trono. Deixar de cultuar-nos a nós mesmos.

◊ Será fundamental bater à porta de Deus, pedir que abra, que nos escute, que nos levante, que acolha nosso grito e a imensa alegria. Perseverar na oração, na busca do Senhor, persistentemente. Uma postura diária de entrega. E sempre repetir a pergunta: “O que queres de mim, Senhor?”

◊ Prestar atenção aos caídos à beira do caminho. Com o Papa Francisco vivemos uma Igreja em saída, que deixa o cercado quente de nosso mundo paroquial, de vida nos movimentos.

◊ Prestar atenção nos caídos quer dizer amar, dar tempo aos outros, escutar as batidas dos corações dos irmãos.

◊ O que nos liberta é a verdade. Transparência na fala, nas intenções, pureza de coração. Rezar em espalhafata. Excluir comportamentos e posturas falsas, farisaicas.

◊ Perseverar mesmo durante a noite. Nada de desespero. Nada de deixar cair o ânimo, na secura da oração, nas provações de todos os dias (doença, filhos nas drogas e encarcerados, falta de transparência mesmo no seio de nossas comunidades). Caminhar com pé firme mesmo no escuro.

Oração

Converte-me primeiro a mim

para que eu comunique a outros a Boa Notícia.

Dá-me audácia.

Neste mundo cético e autossuficiente

tenho vergonha e medo.

Dá-me esperança.

Nessa sociedade receosa e fechada,

eu também tenho pouca confiança nas pessoas.

Dá-me amor.

Nesta terra insolidária e fria,

eu também sinto pouco amor.

Dá-me constância.

Nesse ambiente cômodo e superficial,

eu também me canso facilmente.

Converte-me primeiro a mim

para que eu comunique a Boa Notícia.

P.Loidi


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

O Deus Libertador e nossa conversão

Pe. Johan Konings

Na Quaresma, subida para a Páscoa e caminho de renovação de nossa fé, são apresentados os grandes paradigmas da fé já no tempo do Antigo Testamento. No 1 ° domingo foi o “credo do israelita”; no 2°, a promessa de Deus que Abraão recebe na fé. No 3° domingo, hoje, a 1ª leitura oferece mais um paradigma da fé: o encontro de Moisés com Deus, manifestando-se na sarça ardente. Este paradigma pode ser contemplado como a grande manifestação do Deus que liberta os hebreus do Egito, terra da escravidão. Deus, na sarça ardente, aparece a Moisés, para lhe dizer que ele escutou o clamor do povo. Ele manda Moisés empreender a luta da libertação do povo e revela-lhe o seu nome: Javé, “eu sou, eu estou aí”. Deus está com o seu povo, na luta. Paulo, na 2ª leitura, nos lembra que isso não impediu que Javé retirasse sua proteção quando o povo pecou pela cobiça e o descontentamento. Jesus, no evangelho, ensina aos judeus que eles não devem pensar que os pecadores são os que morreram vítimas de repressão policial ou catástrofe natural: os mesmos que se consideram justos é que devem se converter, e Deus há de exigir deles os frutos da justiça.

Na Igreja, hoje, escutamos um clamor pela “libertação” dos oprimidos, dos discriminados, dos excluídos, dos iludidos … Esse clamor é um eco da missão que Deus confiou a Moisés. Mas, ao mesmo tempo, vemos que muitos cristãos ficam insensíveis ao apelo da conversão, não voltam seu coração para Deus. E mesmo os que lutam pela libertação se deixam envolver pelo ativismo e pelo materialismo, a ponto de acabarem lutando apenas por mais bem-estar, esquecendo que o mais importante é o coração reto e fraterno, raiz profunda e garantia indispensável da justiça. Aliás, a Campanha da Fraternidade nos faz perceber a profunda interação de fatores pessoais e socioestruturais. Por isso é tão importante que nosso coração se deixe tocar no nível mais profundo, para ser sensível ao nível mais profundo do apelo de nossos irmãos.

Deus se revela a Moisés num fogo que não se consome – imagem de sua santidade, que nos atrai, mas também exige de nós pureza de coração e eliminação do orgulho, ambição, inveja, exploração, intenções ambíguas, traição e todas estas coisas que mancham o que somos e o que fazemos. Sem corações convertidos, o Reino, o “regime de Deus” não pode vingar. Se o Deus libertador nos convoca para a luta da libertação, ele não nos dispensa de sempre voltarmos a purificar o nosso coração de tudo o que não condiz com sua santidade e seu amor infinito.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella