Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

33º Domingo do Tempo Comum

33º Domingo do Tempo Comum

“Não ficará pedra sobre pedra”: O desafio de ser Igreja na “era dos escombros”

 

Frei Gustavo Medella

“Em nome do Senhor Jesus Cristo, ordenamos e exortamos a estas pessoas que, trabalhando, comam na tranquilidade o seu próprio pão” (2Ts 3,12). No Brasil de hoje, atender ao apelo de São Paulo na Segunda Carta aos Tessalonicenses soa como privilégio. Já são quase 30 milhões de brasileiros desempregados ou subempregados sem nenhuma garantia ou segurança em relação ao trabalho. A situação de desalento e desamparo de quem não tem trabalho é mencionada pelo Papa Francisco,  quando o Santo Padre escreve: “Qualquer possibilidade que eventualmente lhes seja oferecida, torna-se um vislumbre de luz; e mesmo nos lugares onde deveria haver pelo menos justiça, até lá muitas vezes se abate sobre eles violentamente a prepotência. Constrangidos durante horas infinitas sob um sol abrasador para recolher a fruta da época, são recompensados com um ordenado irrisório; não têm segurança no trabalho, nem condições humanas que lhes permitam sentir-se iguais aos outros. Para eles, não existe fundo de desemprego, liquidação nem sequer a possibilidade de adoecer”.

Neste contexto, no Domingo em que se celebra a solidariedade e a partilha com aqueles que nada têm, às vésperas da Solenidade de Cristo Rei (20 de novembro), que encerra o ciclo do Ano Litúrgico, a Igreja tem o compromisso de se reafirmar como porta-voz da esperança desta multidão desassistida, garantido a eles a certeza de que devem “permanecer firmes a fim de ganhar a vida” (Cf. Lc 25,19).

No entanto, levar esta garantia é tarefa séria e exigente que demanda mais do que palavras bem elaboradas e discursos corretos e adequadamente fundamentados. Quando se depara com a admiração de seus conterrâneos diante de imponência e da beleza do Templo, Jesus os adverte: “Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído” (Lc 25,6). Não foi compreendido em sua provocação e, no decorrer do diálogo, chegaram a dele duvidar e debochar.

Nos dias do hoje, talvez tenhamos já chegado à “era dos escombros”. Pelo menos é o que se pode imaginar diante de tantos sinais de morte que se apresentam com insistência diante de nossos olhos. Levar esperança neste cenário exige desapego e coragem da parte da Igreja, que é a família dos filhos e filhas de Deus. É urgente o abandono de qualquer tentação ao triunfalismo ou ao apego a um status de poder e destaque que a alienam e a afastam da fidelidade ao Evangelho. É hora de sair pelas ruas, entre os escombros, sem medo, erguendo os caídos e consolando os aflitos. O momento é de deixar de lado todo e qualquer preciosismo, assim como os apegos mundanos e, a partir da pouca argamassa de esperança que ainda resta, reconstruir tantas casas que jazem feridas, desrespeitadas e ameaçadas: desde nossa Casa Comum à casa da humanidade que sente na pele as dores de um mundo que, parece, está desaprendendo a amar.


FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Textos bíblicos para este domingo

Primeira Leitura: Ml 3,19-20a

19Eis que virá o dia, abrasador como fornalha, em que todos os soberbos e ímpios serão como palha; e esse dia vindouro haverá de queimá-los, diz o Senhor dos exércitos, tal que não lhes deixará raiz nem ramo.20aPara vós, que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, trazendo salvação em suas asas.


Responsório: Sl 97

— O Senhor virá julgar a terra inteira; com justiça julgará.

— O Senhor virá julgar a terra inteira; com justiça julgará.

— Cantai salmos ao Senhor ao som da harpa/ e da cítara suave!/ Aclamai, com os clarins e as trombetas,/ ao Senhor, o nosso Rei!

— Aplauda o mar com todo ser que nele vive,/ o mundo inteiro e toda gente!/ As montanhas e os rios batam palmas/ e exultem de alegria.

— Exultem na presença do Senhor, pois ele vem,/ vem julgar a terra inteira./ Julgará o universo com justiça/ e as nações com equidade.


Segunda Leitura: 2Ts 3,7-12

Irmãos: 7Bem sabeis como deveis seguir o nosso exemplo, pois não temos vivido entre vós na ociosidade. 8De ninguém recebemos de graça o pão que comemos. Pelo contrário, trabalhamos com esforço e cansaço, de dia e de noite, para não sermos pesados a ninguém. 9Não que não tivéssemos o direito de fazê-lo, mas queríamos apresentar-nos como exemplo a ser imitado.

10Com efeito, quando estávamos entre vós, demos esta regra: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer”.

11Ora, ouvimos dizer que entre vós há alguns que vivem à toa, muito ocupados em não fazer nada. 12Em nome do Senhor Jesus Cristo, ordenamos e exortamos a estas pessoas que, trabalhando, comam na tranquilidade o seu próprio pão.


O fim ainda não chegou

Evangelho: Lc 21, 5-19

* 5 Algumas pessoas comentavam sobre o Templo, enfeitado com pedras bonitas e com coisas dadas em promessa. Então Jesus disse: 6 «Vocês estão admirando essas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.» 7 Eles perguntaram: «Mestre, quando vai acontecer isso?

Qual será o sinal de que essas coisas estarão para acontecer?» 8 Jesus respondeu: «Cuidado para que vocês não sejam enganados, porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu!’ E ainda: ‘O tempo já chegou’. Não sigam essa gente. 9 Quando vocês ouvirem falar de guerras e revoluções, não fiquem apavorados. Primeiro essas coisas devem acontecer, mas não será logo o fim.» 10 E Jesus continuou: «Uma nação lutará contra outra, um reino contra outro reino. 11 Haverá grandes terremotos, fome e pestes em vários lugares. Vão acontecer coisas pavorosas e grandes sinais vindos do céu.»

12 «Mas, antes que essas coisas aconteçam, vocês serão presos e perseguidos; entregarão vocês às sinagogas, e serão lançados na prisão; serão levados diante de reis e governadores, por causa do meu nome. 13 Isso acontecerá para que vocês deem testemunho. 14 Portanto, tirem da cabeça a ideia de que vocês devem planejar com antecedência a própria defesa; 15 porque eu lhes darei palavras de sabedoria, de tal modo que nenhum dos inimigos poderá resistir ou rebater vocês. 16 E vocês serão entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vocês. 17 Vocês serão odiados por todos, por causa do meu nome. 18 Mas não perderão um só fio de cabelo. 19 É permanecendo firmes que vocês irão ganhar a vida!»

* 5-11: Cf. nota em Mc 13,1-8.[ * 13,1-8: Jesus anuncia a destruição do Templo de Jerusalém, acontecida no ano 70, e as batalhas que se verificaram entre os anos 66 e 70. O Templo era o símbolo da relação de Deus com o povo escolhido. Jesus salienta que o fim de uma instituição não significa o fim do mundo e nem o fim da relação entre Deus e os homens.]

* 12-19: A relação entre Deus e os homens continua através dos discípulos, que devem prosseguir a missão de Jesus pelo testemunho. Contudo, assim como Jesus encontrou resistência, também eles: serão perseguidos, presos, torturados, julgados e até mesmo mortos por continuarem a ação de Jesus. Mas não devem ficar preocupados com a própria defesa. O importante é a coragem de permanecer firmes até o fim.

Bíblia Sagrada – Edição Pastoral

Reflexões do exegeta Frei Ludovico Garmus

33º Domingo do Tempo Comum, ano C

Oração: “Senhor nosso Deus, fazei que nossa alegria consista em vos servir de todo o coração, pois só teremos felicidade completa, servindo a vós, o Criador de todas as coisas”.

  1. Primeira leitura: Ml 3,19-20a

Nascerá para vós o sol da justiça.

Na primeira leitura, um trecho do profeta Malaquias, o último livro do Antigo Testamento. Malaquias é um profeta anônimo que atuou em Jerusalém por volta do ano 460 a.C. O Templo já estava reconstruído, mas Jerusalém vivia sob o domínio Persa e da província de Samaria. Havia conflitos internos e com os samaritanos. O texto nos fala do dia do Senhor, ou dia do julgamento divino. É um tema comum aos profetas pré-exílicos, que exortavam o povo de Deus à conversão e anunciavam o juízo divino para os pecadores. Este julgamento divino aconteceu com a destruição de Samaria, capital do Reino de Israel, e de Jerusalém, capital do Reino de Judá, selando o fim dos dois reinos. Agora, o profeta anuncia o juízo de Deus para os ímpios e para os justos, para os que praticam o mal e os que procuram fazer o bem, mantendo-se fiéis à aliança do Senhor. A tentação permanente dos justos é passar para o lado dos ímpios; estes parecem ser mais felizes, porque vivem na riqueza, enquanto os justos sofrem a pobreza, a violência e o desprezo (cf. Ml 3,13-16; Sl 1; 73). Malaquias afirma que os ímpios serão erradicados e queimados como palha, enquanto para os justos nascerá o “sol da justiça, trazendo a salvação”. Sol da justiça significa a vitória do bem sobre o mal (cf. Is 41,1). Nas festas litúrgicas do Natal e da Epifania o título “Sol de Justiça” é aplicado a Jesus Cristo.

Salmo responsorial: Sl 97

          O senhor virá julgar a terra inteira;

             com justiça julgará.

  1. Segunda leitura: 2Ts 3,7-12

Quem não quer trabalhar, também não deve comer.

O apóstolo Paulo vivia na expectativa da vinda iminente de Cristo ressuscitado como juiz dos vivos e dos mortos. Esperava que isso acontecesse estando ele ainda vivo. Dizia que quando Cristo vier, primeiro ressuscitarão os mortos. “Depois nós, os vivos, que ainda na terra, seremos arrebatados juntamente com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor nos ares” (1Ts 4,17). Em Tessalônica e em outras comunidades que liam as cartas de Paulo, havia cristãos que tinham concluído: já que Cristo vai voltar logo, para que trabalhar? E viviam “à toa, muito ocupados em não fazer nada” (2Ts 3,11), à custa dos outros. No texto de hoje, Paulo se apresenta como modelo. Ele, como apóstolo e missionário, recusava-se a viver à custa de outros e sempre viveu do próprio trabalho para se sustentar. E estabelece uma regra de vida para todos: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer”. Por fim, em nome do Senhor, exorta e ordena que todos “trabalhem e comam com tranquilidade o seu próprio pão”. A vida cristã não consiste apenas em esperar a vinda do Filho do Homem. Inclui também a fé prática, o trabalho tranquilo, a vivência do Evangelho e a missão. Quando Cristo vier, quer nos encontrar vivendo o Evangelho, sem o pavor do fim (Evangelho).

Aclamação ao Evangelho: Lc 21,18

            Levantai vossa cabeça e olhai,

            pois a vossa redenção se aproxima.

  1. Evangelho: Lc 21,5-19

É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!

Certa ocasião, estando Jesus no monte das Oliveiras, um dos discípulos lhe disse: “Mestre, olha que pedras e que construções” (Mc 13,1)! E Jesus disse aos discípulos: “Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído”. Então Jesus começou a anunciar a vinda do Senhor, no dia do juízo final. A expectativa da vinda iminente de Jesus Cristo era comum entre os primeiros cristãos. O apóstolo Paulo, por exemplo, esperava que a vinda do Senhor acontecesse enquanto vivo (1Ts 4,13-18). Mas a vinda do Senhor se protelava e Paulo teve que reconsiderar esta expectativa, pois havia cristãos que não trabalhavam mais porque o Senhor viria logo (2ª leitura). Quando Lucas escreve, o Templo já tinha sido destruído (Lc 21,5-9.20-24) e não havia mais a preocupação com a vinda imediata do Senhor (v. 9). Lucas reafirma a esperança na vinda do Senhor; no entanto, pede que não fiquem parados, mas voltem a Jerusalém para receber o Espírito Santo e partir em missão pela Judeia, Samaria e até os confins da terra (At 1,6-11).

No Evangelho de hoje, os discípulos perguntam duas coisas a Jesus: “Quando acontecerá isto” e “qual o sinal de que estas coisas vão acontecer”? Jesus responde à segunda pergunta: a) Não se deixem enganar com falsos anúncios ‘sou eu’ ou ‘o tempo está próximo’; b) não se deixem enganar pelos sinais, como: guerras, revoluções, terremotos, fomes e pestes ou outros sinais pavorosos. E conclui: “É preciso que estas coisas aconteçam, mas não será logo o fim”; c) os cristãos serão presos e perseguidos, condenados por reis e governadores, “por causa do meu nome”. Jesus não responde sobre o “quando acontecerá isso”. Exorta-nos, contudo, a permanecermos fiéis à nossa missão de anunciar e viver o Evangelho: “É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida”. É com esta fé e esperança que devemos ganhar o próprio pão (2ª leitura) e anunciar o evangelho do reino de Deus (Lc 16,16). Mateus afirma que o evangelho do Reino será pregado a todas as nações, antes que venha o fim do mundo (Mt 24,14).

Mesmo assim, gostaríamos de saber quando essas coisas acontecerão. Para nosso consolo, o próprio Jesus disse que não sabia: “Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas somente o Pai” (v. 36). Apenas afirmou que a vinda do Filho do Homem será inesperada e repentina como um relâmpago (v. 27).


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Um estilo para uma lição

Frei Clarêncio Neotti

Lembremos que o Evangelho de hoje está escrito dentro de um estilo chamado ‘apocalipse’, bastante comum desde dois séculos antes de Cristo até um século depois. Assim como podemos passar uma mensagem por meio de poesia, teatro, novela, os povos antigos passavam uma mensagem também por meio do apocalipse. Era um gênero literário, que lançava mão de imagens fortes, como o cair do sol, maremotos, feras, montanhas que se derretem como água, visões de anjos.

Esse gênero literário era usado para ensinar uma lição sobre o futuro, especialmente o possível fim dos tempos, tema que preocupava todas as culturas, inclusive a bíblica. Ao lê-lo, portanto, não devemos ir atrás de seu sentido literal, mas procurar qual o significado do símbolo. Por exemplo, pode estar escrito sol. Mas sol significa luz; luz significa segurança (porque no escuro facilmente se tropeça). Cair o sol, então, significa não ter mais nenhuma segurança. Levado à linguagem religiosa, que descreve o fim dos tempos – a morte -, cair o sol vai significar que, na hora da morte, estamos sem nenhuma das proteções que tivemos em vida (riquezas, amigos, glória). Estaremos sós, sem contar com ninguém, a não ser Deus; nele devemos confiar, porque Deus nos será a única segurança, quando a morte chegar.


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

As turbulências se tornaram frequentes

Esses tempos difíceis

 Frei Almir Guimarães

A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior se apaga. E o que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais.

José Tolentino Mendonça

Libertar o Tempo, p.29

Os tempos difíceis não devem ser tempos para as lamentações, a nostalgia ou o desânimo. Não é hora da resignação, da passividade ou da omissão. A ideia de Jesus é outra: em tempos difíceis “tereis ocasião de dar testemunho”. É precisamente agora que precisamos reavivar entre nós o chamado a ser testemunhas humildes, mas convincentes, de Jesus, de sua mensagem e de seu projeto.

Pagola, Lucas, p. 326-327

♦ Chegamos ao final do ano litúrgico de 2019. No primeiro domingo de dezembro voltaremos a percorrer as sendas do advento que nos levarão ao presépio do Menino das Palhas e à contemplação do maravilhoso mistério da encarnação do Verbo de Deus. As leituras deste domingo falam de perseguições, de tempos difíceis, de turbulências. Estamos sendo convidados a refletir sobre o final dos tempos e as anunciadas tribulações descritas num estilo apocalíptico. Ficamos cheios de consolo, no entanto, quando ouvimos dizer que, em momentos de desafio e de perseguição por causa de nossas convicções, o Senhor há de nos dar palavras acertadas. Não perderemos um só fio de cabelo. Somos convidados a perseverar e ter paciência.

♦ Não podemos aqui elencar todas as transformações, mudanças, mutações e turbulências que estão a nos afetar de modo especial nas últimas décadas. Os que fizemos boa parte do caminho temos a impressão que as coisas se aceleraram. Tudo muda e se transforma loucamente em termos de tecnologia, na busca da identidade do ser homem e ser mulher, na educação dos filhos, na concepção dos valores, no jeito de educar, no casamento. Nós, cristãos, ficamos preocupados com a transmissão da fé às novas gerações e com a distância que muitos foram tomando da fé cristã e, ao mesmo tempo com desvios morais mais ou menos graves, tomadas de posição de ultradireita ou de ultraesquerda.  Parecem terremotos como aqueles descritos nas páginas dos Evangelhos agora proclamados.

♦ Que fazer? Ter espírito crítico. Cultivar o hábito de discernir. Nada de embarcar em canoas que possam estar furadas. Não alimentar nostalgia do passado que pôde também ter tido deficiências, nem querer começar tudo de zero. Em todos os campos. Não andar atrás da primeira novidade que aparece. Nada de ingenuidade. Discernir. Tentar descobrir aquilo que constrói o ser humano, o que respeita sua dignidade, o que contribui para diminuir desigualdades, o que minora as dores, o que nos permite saborear o fato de viver, o que nos torna santos.

♦ Focando mais de perto a questão da vivência cristã parece importante fixarmo-nos no essencial, como em tudo aliás. O essencial não são tradições, costumes e visões que nos apequenam. Sair da superfície e chegar ao fundo. Muitos, em nossos dias, vivendo e participando das turbulências se dizem perdidos e com vontade de tudo abandonar. Então:

>>Nada de uma religião cerebral, busca de um Deus frio. Antes de mais nada prestar atenção nessa legítima saudade de Deus que experimentamos. Essa sede de plenitude. Essa vontade de achegarmo-nos a um Tu que nos ama, nos atrai, solicita uma resposta pessoal. Buscar áreas verdes. Desvencilharmo-nos de nós mesmos. Karl Ranher advertia, em meados do século  passado, que o cristão do amanhã seria um místico ou nada;

>>Rever a maneira como rezamos. O movimento dos lábios precisa acompanhar os reclamos de um ser pobre que se lança no Mistério. Positivamente precisamos nos tornar amigos de Deus, para além das prescrições e observância dos ritos.

>> Procurar reencontrar nosso eu mais profundo, nosso interior, a plataforma interior a partir da qual se constrói a pessoa. Milan Kundera: “Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo”. Tolentino fala da necessidade de resgatar nossa relação com o tempo. Precisamos reaprender o aqui e agora da presença.

>> Concentrar-se no essencial. Cada geração cristã tem seus próprios problemas, dificuldades e buscas. Não devemos perder a calma, mas assumir nossa responsabilidade. Não se pede nada que esteja acima de nossas forças. O essencial continua sendo um imenso senso de solidariedade e bondade e um decidido empenho de ouvir a voz do Senhor.  Nos dias de claridade e nas noites escuras sem estrelas.

>> O trecho do Evangelho hoje proclamado fala de perseverança e paciência. Os pais precisam paciência para entender as opções que filhos parecem assumir, os sacerdotes necessitam  descobrir um meio de fazer com seus fiéis cresçam de fato e não enveredem pela trilha do intimismo e das emoções ditas místicas; os governantes haverão de  paciente e perseverantemente   descobrir meios para que não falte trabalho, especialmente para  os jovens. Dar tempo ao tempo.  Apressado come cru. Perseverança e paciência.

>> Ser capaz de acolher as surpresas do Senhor. Vivíamos a vida de um jeito, numa Igreja diferente, nos tempos das coisas antigas. Deus se nos manifestava numa certa estabilidade, talvez meio parada.  Hoje ele nos surpreende na globalização, na necessidade acolher os refugiados, no sermos uma Igreja em saída, num mundo que não esperávamos viver.

>> Pode-se dizer que o antídoto da crise civilizatória que vivemos é o empenho de humanizar os humanos que, aos poucos, foram perdendo sua essência: a alegria de viver, a redescoberta da confiança, o cuidado de escutar e enxergar.  Precisamos, novamente, fazer a experiência do espanto diante das coisas simples:  um jantar em família, atenção para um colega de trabalho revoltado com a vida, da alegria um cafezinho tomado com um pessoa que mal conhecemos  no instante.

>> Cristãos que somos necessitamos urgentemente de ler e reler, meditar e viver o Sermão da Montanha de Mateus (5-7). Revestirmo-nos dos sentimentos que animaram o Senhor Jesus.


Texto seleto

Os tempos estão mudando. E os tempos de mudança são inspiradores, não o esqueçamos. O inverno conspira para que surjam inesperadas flores. “O que está sendo dito para nós?” é a pergunta necessária. O que esta avalanche cultural nos revela? De fato, a grande crise, a mais aguda, não é sequer os acontecimentos, decisões e deserções que nos trouxeram aqui. Dia a dia sobrepõe-se um problema maior:  a crise da interpretação.  Isto é, a falta de um saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar,  para cada um enquanto indivíduo e para todos  enquanto comunidade, os modos possíveis de nos reinventarmos (Tolentino, A Mística do Instante, p. 123)


Oração

Confiarei…

ainda que me perca em teus caminhos,

ainda que não encontre meu destino,

confiarei…

Confiarei…

ainda que não entenda tuas palavras,

ainda que teu olhar me queime,

confiarei…

Eu te seguirei,

duvidando e andando ao mesmo tempo

e te amarei,

tremendo e amando ao mesmo tempo.


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

Dar por terminado

José Antonio Pagola

É a última visita de Jesus a Jerusalém. Alguns dos que o acompanham admiram-se ao contemplar “a beleza do templo”. Jesus, pelo contrário, sente algo muito diferente. Seus olhos de profeta veem o templo de maneira mais profunda: naquele lugar grandioso não se está acolhendo o reino de Deus. Por isso, Jesus o dá por terminado: “Quanto a estas coisas que contemplais, virão dias em que não ficará pedra sobre pedra: tudo será destruído”.

De repente, as palavras de Jesus dissiparam o autoengano que se vive em torno do templo. Aquele edifício esplêndido está alimentando uma ilusão falsa de eternidade. Aquela maneira de viver a religião sem acolher a justiça de Deus nem ouvir os que sofrem é enganosa e perecível: “Tudo isso será destruído”.

As palavras de Jesus não nascem da ira. Menos ainda do desprezo ou do ressentimento. O próprio Lucas nos diz um pouco antes que, ao aproximar-se de Jerusalém e ver a cidade, Jesus “pôs-se a chorar”. Seu pranto é profético. Os poderosos não choram. O profeta da compaixão sim.

Jesus chora diante de Jerusalém porque ama a cidade mais que ninguém. Chora por uma “religião velha” que não se abre ao reino de Deus. Suas lágrimas expressam sua solidariedade com o sofrimento de seu povo e, ao mesmo tempo, sua crítica radical àquele sistema religioso que põe obstáculo à visita de Deus: Jerusalém – a cidade da paz! – “não conhece o que leva à paz”, porque “está oculto aos seus olhos”.

A atuação de Jesus lança não pouca luz sobre a situação atual. Às vezes, em tempos de crise, como os nossos, a única maneira de abrir caminhos à novidade criadora do reino de Deus é dar por terminado aquilo que alimenta uma religião caduca, sem produzir a vida que Deus quer introduzir no mundo.

Dar por terminado algo que foi vivido de maneira sagrada durante séculos não é fácil. Não se faz isso condenando os que querem conservá-lo como eterno e absoluto. Faz-se “chorando”, porque as mudanças exigidas pela conversão ao reino de Deus trazem sofrimento a muitos. Os profetas denunciam o pecado da Igreja chorando.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.

O fim de uma era

Pe. Johan Konings

Com o ano 2000, o fim do mundo não chegou… Nem com o ataque contra o centro comercial de Nova York em 2001. No evangelho, Jesus anuncia a destruição de Jerusalém e do seu magnífico templo. Para muitos judeus, dizer isso era a mesma coisa que anunciar o fim do mundo. Jesus, porém, não considera isso o fim do mundo, mas um sinal de que tudo passa, mesmo o sistema religioso mais venerado, a civilização mais preciosa. Só não passa o que ele ensina por sua vida e sua palavra. “Minha palavra não passará”. Para os cristãos, as vicissitudes da queda de Jerusalém significam um tempo de provação, mas também de testemunho. Na firmeza da fé, ganharão a vida eterna.

Ora, não podemos negar que estamos seriamente confrontados com a possibilidade do fim de uma civilização. As armas de guerra, a poluição, a depredação da natureza, a incontrolabilidade da própria ciência… são bombas-relógio que podem explodir a qualquer hora. Contudo, não são razão de desespero. O cristão há de ver em tudo isso um desafio para a sua firmeza. “O mundo pode cair aos pedaços, mas eu não vou desistir daquilo que Jesus me ensinou”, assim é que devemos falar.

Certos cristãos, de mentalidade muito individualista, dizem: “A sociedade como tal já não pode ser salva; o único que podemos fazer é cada qual salvar sua alma”. Tal atitude é irresponsável. Exatamente diante da ameaça do colapso de nossa civilização é que devemos engajar-nos para construir desde já o início de uma nova civilização, mais justa e mais fraterna, mais respeitosa também para com as possibilidades que Deus colocou nas mãos do ser humano. Assim fizeram os primeiros cristãos. Diante dos ameaçadores sinais dos tempos, não cruzaram os braços (cf. a 2ª leitura), mas construíram as suas comunidades que, depois da desintegração do mundo de então, se tornaram semente de uma nova era aqui na terra, além de abrirem as portas para a vida com Deus na eternidade.

Conta-se de S. João Berchmans o seguinte: enquanto, numa hora de recreio, estava jogando bilhar, perguntaram-lhe o que faria se um anjo o avisasse de que iria morrer já.

Respondeu: “Continuar jogando”. Do mesmo modo devemos continuar a construção do Reino de Deus encarnado em nossa história, mesmo se existem sinais de que nosso mundo pode estar chegando ao fim. Seja como for, aconteça o que acontecer, Deus quer nos encontrar ocupados com seu Reino neste mundo e firmes no testemunho de Jesus.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

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