Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

27º Domingo do Tempo Comum

27º Domingo do Tempo Comum

“Para ser grande, sê inteiro”

 

Frei Gustavo Medella

“Para ser grande, sê inteiro” (Ricardo Reis – Heterônimo de Fernando Pessoa). O tema da integridade mobiliza a reflexão e a produção de teólogos, filósofos, poetas e artistas de todos os tempos. Entregar-se por inteiro a uma causa, a uma relação, a uma tarefa ou a uma missão costuma ser fato admirável na vida de quem consegue se lançar inteiramente numa proposta. O pai que se faz integralmente pai, a mãe que se dedica por inteiro à maternidade e o médico mergulhado de verdade no ofício ao qual se consagrou apresentam testemunhos que edificam não só a vida deles, mas influenciam positivamente os que estão à sua volta, transformam o mundo.

No Evangelho deste domingo (Mc 10,12-16), dentre as qualidades da criança, certamente Jesus desejou também destacar a inteireza da entrega. Quando brincam, os pequenos brincam de verdade, de corpo e alma. Para a criança, brincadeira é coisa séria. Jesus Cristo, na fidelidade da missão que o Pai lhe confiara, também foi todo entrega. Acolheu, ouviu, curou, ensinou, ergueu e serviu sem reservas, sem guardar nada para si.

Seguir por este caminho é o grande convite que Ele faz a seus discípulos. Quem se doa com intensidade, não está livre de problemas e desafios, mas, certamente, terá chance muito mais significativa de se tornar uma pessoa completa e feliz. “Dai-nos, Senhor, o mesmo espírito de inteireza de nossas queridas crianças”.


FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Leituras bíblicas para este domingo

Primeira Leitura: Gênesis 2,18-24

Leitura do livro do Gênesis – 18O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele”. 19Então o Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu e trouxe-os a Adão, para ver como os chamaria; todo ser vivo teria o nome que Adão lhe desse. 20E Adão deu nome a todos os animais domésticos, a todas as aves do céu e a todos os animais selvagens; mas Adão não encontrou uma auxiliar semelhante a ele. 21Então o Senhor Deus fez cair um sono profundo sobre Adão. Quando este adormeceu, tirou-lhe uma das costelas e fechou o lugar com carne. 22Depois, da costela tirada de Adão, o Senhor Deus formou a mulher e conduziu-a a Adão. 23E Adão exclamou: “Desta vez, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem”. 24Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne.

Palavra do Senhor.


Salmo Responsorial: 127(128)

O Senhor te abençoe de Sião cada dia de tua vida.

1. Feliz és tu se temes o Senhor / e trilhas seus caminhos! / Do trabalho de tuas mãos hás de viver, / serás feliz, tudo irá bem! – R.

2. A tua esposa é uma videira bem fecunda / no coração da tua casa; / os teus filhos são rebentos de oliveira / ao redor de tua mesa. – R.

3. Será assim abençoado todo homem / que teme o Senhor. / O Senhor te abençoe de Sião / cada dia de tua vida. –R.

4. Para que vejas prosperar Jerusalém / e os filhos dos teus filhos. / Ó Senhor, que venha a paz a Israel, / que venha a paz ao vosso povo! – R.


Segunda Leitura: Hebreus 2,9-11

Leitura da carta aos Hebreus – Irmãos, 9Jesus, a quem Deus fez pouco menor do que os anjos, nós o vemos coroado de glória e honra, por ter sofrido a morte. Sim, pela graça de Deus em favor de todos, ele provou a morte. 10Convinha, de fato, que aquele por quem e para quem todas as coisas existem, e que desejou conduzir muitos filhos à glória, levasse o iniciador da salvação deles à consumação, por meio de sofrimentos. 11Pois tanto Jesus, o santificador, quanto os santificados são descendentes do mesmo ancestral; por essa razão, ele não se envergonha de os chamar irmãos.

Palavra do Senhor.


“O que Deus uniu, o homem não deve separar”
Evangelho: Mc 10,2-16

2 Alguns fariseus se aproximaram deJesus. Queriam tentá-lo e lhe perguntaram se a Lei permitia um homem se divorciar da sua mulher. 3 Jesus perguntou: «O que é que Moisés mandou vocês fazer?» 4 Os fariseus responderam: «Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e depois mandar a mulher embora.» 5 Jesus então disse: «Foi por causa da dureza do coração de vocês que Moisés escreveu esse mandamento. 6 Mas, desde o início da criação, Deus os fez homem e mulher. 7 Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, 8 e os dois serão uma só carne. Portanto, eles já não são dois, mas uma só carne. 9 Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar.»

10 Quando chegaram em casa, os discípulos fizeram de novo perguntas sobre o mesmo assunto. 11 Jesus respondeu: «O homem que se divorciar de sua mulher e se casar com outra, cometerá adultério contra a primeira mulher. 12 E se a mulher se divorciar do seu marido e se casar com outro homem, ela cometerá adultério.»

O Reino pertence aos pobres -* 13 Depois disso, alguns levaram crianças para que Jesus tocasse nelas. Mas os discípulos os repreendiam. 14 Vendo isso, Jesus ficou zangado e disse: «Deixem as crianças vir a mim. Não lhes proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas. 15 Eu garanto a vocês: quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele.» 16 Então Jesus abraçou as crianças e abençoou-as, pondo a mão sobre elas.

* 10,1-12: Jesus recusa ver o matrimônio a partir de permissões ou restrições legalistas. Ele reconduz o matrimônio ao seu sentido fundamental: aliança de amor e, como tal, abençoada por Deus e com vocação de eternidade. Diante desse princípio fundamental, marido e mulher são igualmente responsáveis por uma união que deve crescer sempre, e os dois se equiparam quanto aos direitos e deveres.

* 13-16: Aqui a criança serve de exemplo não pela inocência ou pela perfeição moral. Ela é o símbolo do ser fraco, sem pretensões sociais: é simples, não tem poder nem ambições. Principalmente na sociedade do tempo de Jesus, a criança não era valorizada, não tinha nenhuma significação social. A criança é, portanto, o símbolo do pobre marginalizado, que está vazio de si mesmo, pronto para receber o Reino.

Bíblia Sagrada – Edição Pastoral

Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus

27º Domingo do Tempo Comum

Oração: “Ó Deus eterno e todo-poderoso, que nos concedeis no vosso imenso amor de Pai mais do que merecemos e pedimos, derramai sobre nós a vossa misericórdia, perdoando o que nos pesa na consciência e dando-nos mais do que ousamos pedir”.

  1. Primeira leitura: Gn 2,18-24

E eles serão uma só carne. 

Na Bíblia temos duas narrativas da criação do ser humano (Adam). A primeira (Gn 1), chamada sacerdotal, coloca no sexto dia a criação dos animais e do ser humano, coroando toda a obra da criação (Gn 1,24-31). A criação do ser humano é descrita com solenidade: “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança […] Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea ele os criou” (v. 26-28). Em vista da procriação o ser humano é especificado como “macho e fêmea”; por isso recebe a bênção divina (v. 28). A segunda narrativa (Gn 2) não se preocupa com a criação do mundo, mas com o ser humano e sua relação com demais criaturas criadas no 6º dia, ligadas ao mesmo chão (Gn 1,24-31). O ser humano e os animais são feitos da terra, da terra brotam as árvores do jardim plantado por Deus, e da terra nascem os rios que a fertilizam. A preocupação da narrativa é mostrar que, no projeto divino, o ser humano convive em harmonia no mesmo ambiente, com as plantas e os animais e com Deus. Com as plantas e os animais, bebe da mesma água, onde os peixes vivem. Com os seres vivos respira o mesmo ar, por onde as aves e pássaros voam; assim participa do mesmo “ecossistema”. Apesar disso Deus diz: “Não é bom que o ser humano esteja só. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda” (v. 18). De fato, embora feitos da mesma terra, os animais não são a companhia adequada para o ser humano. Deus coloca, então, o ser humano em sono profundo, tira-lhe uma costela e a transforma em mulher. Depois, apresenta-a ao ser humano. E ele exclama: “Desta vez, sim, é osso dos meus ossos e carne de minha carne”! A expressão indica parentesco. Desde então, o ser humano é visto como “homem” e “mulher”, ele com ela, numa comunhão de vida e de amor. Diante dela, o ser humano se reconhece como “homem”, ela como “mulher”. Ambos, ele e ela, se complementam, são um auxílio necessário um para o outro. Esta comunhão de amor, homem-mulher, é até mais forte que a união com os pais: “Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne”.

Salmo responsorial: Sl 127

       O Senhor te abençoe de Sião, cada dia de tua vida.

  1. Segunda leitura: Hb 2,9-11

Tanto o Santificador, quanto os santificados

descendem do mesmo ancestral. 

O autor escreve para judeu-cristãos e pagãos convertidos. Os cristãos eram discriminados e perseguidos por parte de pagãos e de judeus. Os sofrimentos e o adiamento da 2ª vinda do Senhor abalavam a fé em Cristo e a esperança na sua vinda. Aos desanimados o autor lembra que o Filho de Deus, ao assumir a natureza humana, tornou-se um pouco menor que os anjos. Solidarizou-se com os seres humanos, criados um pouco abaixo dos anjos (cf. Sl 8,6). Tornou-se assim nosso irmão, pois o “Santificador e os santificados” têm os mesmos antepassados. O “Santificador”/Jesus, nosso irmão, morreu por nós e foi glorificado, para “conduzir muitos filhos à glória” (cf. Fl 2,5-11). São palavras que ainda hoje reanimam nossa fé e reavivam a esperança, dando-nos a força do Espírito para vivermos com alegria o testemunho da vida cristã.

Aclamação ao Evangelho: 1Jo 4,12

          Se amarmos uns aos outros, Deus em nós há de estar;

            e o seu amor em nós se aperfeiçoará.

  1. Evangelho: Mc 10,2-16

O que Deus uniu o homem não separe.

Enquanto está a caminho de Jerusalém, Jesus continua ensinando a multidão que o segue. Os fariseus aproveitam a ocasião para provocá-lo e lhe perguntam se é permitido ao homem divorciar-se de sua mulher. Ao perguntar-lhes “O que Moisés vos ordenou” eles respondem: “Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedi-la”. Referiam-se a Dt 24,1-4, um texto casuístico, onde se determina o que fazer no caso de uma separação existente. Escrever uma certidão de divórcio, por um lado, significava uma declaração de falência de um matrimônio; por outro, declarava que a mulher estava livre para voltar à casa paterna, ou casar-se com outra pessoa. Na resposta Jesus diz que Moisés permitiu escrever a carta por causa da “dureza de vosso coração”. Jesus remete para outra parte da Lei atribuída a Moisés, ao livro do Gênesis, onde se fala do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, como “homem e mulher” – literalmente “macho e fêmea” (cf. Gn 1,28). E Jesus acrescenta: “Por isso, o homem [ele] deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher [ela] e eles serão uma só carne” (cf. Gn 2,24; 1ª leitura). Unindo dois textos, Jesus aponta para a dupla finalidade do matrimônio: para a geração de filhos e como complemento mútuo. Os dois são o auxílio necessário, um para o outro, do ponto de vista sexual, psicológico e na comunhão de amor entre eles e os filhos. Em casa (de Pedro), Jesus explica aos apóstolos que divórcio equivale a adultério.

A cena seguinte, que mostra Jesus abraçando as crianças, completa o projeto desejado por Deus para a família; isto é, a união homem-mulher e filhos. Diante da falência de muitos matrimônios o Estado pode e deve legislar. A orientação para os católicos, porém, vem da Igreja. O Sínodo dos bispos sobre a família renovou as orientações pastorais na busca da fidelidade ao ideal da família proposto por Jesus. Recomendou, também, que os recasados sejam acolhidos na Igreja com misericórdia.


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Fidelidade: fruto do Espírito Santo

Frei Clarêncio Neotti

Antes de vermos o problema do divórcio, lembremos que Marcos está apresentando as qualidades do verdadeiro discípulo de Jesus. E aqui ressalta a fidelidade ao plano, ao projeto que Deus tem para cada uma das criaturas. Quase podemos dizer que a história do ser humano é a história de sua fidelidade a Deus. Quantas vezes, no Antigo Testamento, Deus se queixou, e, às vezes, com amargura, da pouca fidelidade das criaturas. Cristo é o exemplo máximo de fidelidade: “Meu alimento é fazer a vontade do Pai” (Jo 4,34). Mais vezes, na Escritura, o casamento é posto como símbolo da nossa fidelidade a Deus (Os 2,21-22; 15 62,5; Jr 2,2). Deus faz uma aliança com a criatura humana, isto é, um pacto como no casamento, ao qual se espera fidelidade de ambos os lados.

Ao apresentar esse tema, Marcos quer acentuar que o discípulo de Jesus lhe deve ser fiel à custa de todos os sacrifícios, mesmo naqueles momentos em que as leis humanas lhe facultem caminhos diferentes (v. 5). Desde os Atos dos Apóstolos, os cristãos são chamados de ‘fiéis’, isto é, pessoas que guardam fidelidade ao Senhor Jesus (At 10,45; Ef 1,1). Para o Apóstolo Paulo, a fidelidade é um fruto do Espírito Santo, ao lado da caridade, da alegria e da paz (Gl 5,22). A alma da fidelidade é o amor e, ao mesmo tempo, a fidelidade torna-se a maior prova de amor (Jo 15,9ss). João, na sua segunda Carta, faz um trocadilho: amar é ser fiel aos mandamentos e o mandamento é viver no amor (2Jo 6).


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

O casal, um sonho de Deus

“Não é bom que o homem esteja só”

 

Frei Almir Guimarães

Duas das leituras deste domingo nos colocam diante do tema do casal, do homem e da mulher, de seu nascedouro, da beleza de uma união que pode continuar viçosa através dos anos que passam. Tema delicado e bonito e, ao mesmo tempo desafiador. O amor de um homem e de uma mulher é tema caro aos poetas. De outro lado, crimes passionais e tragédias conjugais costumam a fazer parte até mesmo das páginas policiais dos jornais.

Os judeus procuraram entender as linhas do projeto de Deus a respeito do casal. Segundo as linhas do livro do Gênesis em seus primeiros capítulos, o mundo está em construção. O Senhor Deus é o grande artífice. Os céus, as fontes, os animais estavam diante de Adão, Adama, aquele que veio da terra. Ele é o rei da criação. Cabe-lhe dar nome aos animais dos campos e às aves do céus. Um imenso desfile diante do olhos do Rei da terra. Mas, catástrofe, não havia ninguém igual a ele. Uma solidão terrível. “Adão não encontrou uma auxiliar semelhante a ele”. Uma lágrima furtiva desce rosto abaixo de Adão. Lágrima que suplicava que o Senhor continuasse sua obra. Um sono, uma ausência na consciência de Adão. Quando Adão adormeceu, o Senhor tira-lhe uma das costelas e fecha o lugar com carne. Depois, da costela tirada de Adão, o Senhor fez a mulher e conduziu-a a Adão.

Uma parte de Adão, que seria diferente de Adão. Uma parte tirada para complementar. Tirada do homem, não inferior ao homem, feita para que os dois vivessem juntos a aventura da vida. “Agora é para valer… osso dos meus ossos, carne da minha carne”.

Os dois se deram as mãos e caminharam pelas amplas alamedas do Éden…

Casamento, vida a dois, vida de família, todos esses temas se entrecruzam em nosso pensamento nesta hora de reflexão. Não é bom que o homem viva só. O Senhor resolve “dar-lhe uma auxiliar semelhante”.

Há os começos: Essa costela que foi tirada, faz falta. Será para sempre essa peregrinação do masculino para o feminino. Os dois se completam, os dois se atraem, os dois passam a ser companheiros. Há uma escolha, uma primeira conivência entre ela e ela.

Escolher bem. Não entregar-se por paixão voluptuosa, mas numa louca vontade de querer bem. Ninguém se casa para ser feliz, mas para amar de verdade… para fazer o outro feliz, na alegria, na tristeza, na complementação, no carinho, no ardor dos envolvimentos carnais, na alegria de ter filhos, tecendo a história dos dois com outras histórias. E acontece um sim que deverá ser refeito ao longo do tempo que a tudo desgasta.

Um homem e uma mulher, dois mistérios, ambulantes. Tudo indica que um casamento vai bem quando os parceiros se sentem companheiros, experimentam alegria simples com a presença do outro, um desejo de ser para de maneira simples, bonita, não artificial.

Uma fidelidade criativa. Não apenas evocar uma promessa de palavras de antanho. Mas na auscultação das batidas do coração desse o homem que é pintor de paredes, advogado, gari, mas companheiro da esposa. Orgulhar-se de tê-lo como companheiro. Essa mulher, companheira, com sua graça e seus talentos, essa profissional competente e mãe das crianças. Construção lenta da unidade na diversidade: na paciência de todos os dias, respeitando os silêncios eloquentes, abeirando-se com respeito da fragilidade que é comum a todos. Sem arrogância. Fidelidade da mente, do coração e do corpo.

Nada de ficarem encerrados entre as quatro paredes de uma casa, vivendo num mundo fechado, egoísta. Casal aberto… capaz de conviver com outros casais que constroem uma história bonita e aberta e não apenas olhando-se narcisisticamente um para o outro. “Nossa casa, nossos passeios, nossos negócios, nosso mundinho…”. Precisamos de casais maduros.

Perguntaram, certa feita a Lya Luft, o que seria um casal perfeito. Assim ela respondeu: “Imediatamente ocorreu-me que parceiros de um casal ‘perfeito’ precisam se querer bem como se querem os bons amigos, e temperar esse afeto com a sensualidade que distingue amizade de amor. Duas pessoas que compreendem sem ressentimento nem cobranças, a inevitável dose de peculiaridade do ser humano e sua dificuldade de comunicação. Em última análise, toda a sua complicação” (Perdas & Ganhos, Record, p. 77)

Casamento que é construção de todos os dias, que não acontece no dia do casamento, mais bem depois, no passar do tempo, na fidelidade de todos os momentos, na vontade de extinguir o egoísmo que tudo mata, lutando contra toda falsa “independência” dos dois. Casamento, realidade camaleão, com os filhos, os sucessos e os fracassos, os pais de um doente, os dias de sol e de tempestade, uma construção que não termina, casamento dos primeiros anos e no outono da existência.

Os cristãos que se amam, se unem no Senhor. Os dois que são discípulos de Cristo fazem de sua casa a Igreja doméstica. A celebração do sacramento do matrimônio realizam-na com simplicidade bela, com a presença dos amigos e daqueles que são exemplos de fé. Preparam-se espiritualmente para se unirem no sacramento do casal.

Tudo está feito e tudo está para ser feito. O casamento acontece depois de boa parte da caminhada. E os cristãos iluminam seus passos com a fé e constroem sua casa sobre a rocha: amam-se na qualidade do amor de Cristo por sua Igreja, alimentam-se juntos da Palavra todos os dias, iluminam outras vidas com a qualidade de seu amor, abrem o coração de seus filhos para o Evangelho e assim fermentam o mundo.

Não é bom que o homem viva só.


Texto seleto:

Desenvolver o hábito de dar real importância ao outro

Trata-se de dar valor à sua pessoa, reconhecer que tem direito de existir, pensar de maneira autônoma e ser feliz. É preciso nunca subestimar o que outro diz ou reivindica, ainda que seja necessário exprimir meu ponto de vista. A tudo isto subjaz a convicção de que todos têm algo para dar, pois tem outra experiência de vida, olham de outro ponto de vista, desenvolveram outras preocupações e possuem outras capacidades e intuições. É possível reconhecer a verdade do outro, a importância das suas preocupações mais profundas e a motivação que fundamenta o que diz, inclusive as palavras agressivas. Para isso, é preciso colocar-se no lugar do outro e interpretar a profundidade do seu coração, individuar o que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto de partida para aprofundar o diálogo (A alegria do amor, Papa Francisco, n. 138)


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

Os que se separam são os pais, não os filhos

José Antonio Pagola

Durante estes anos pude compartilhar de perto o duro caminho da separação de esposos e esposas que um dia se amaram de verdade. Eu os vi sofrer, duvidar e também lutar por um amor já desaparecido. Eu os vi suportar as censuras, a incompreensão e o distanciamento de pessoas que pareciam seus amigos. Junto a eles vi também seus filhos sofrerem.

Não é totalmente certo que a separação dos pais cause um trauma irreversível nos filhos. O que lhes causa dano é a falta de amor, a agressividade ou o medo que, às vezes, acompanha uma separação quando realizada de forma pouco humana.

Nunca se deveria esquecer que os que se separam são os pais, não os filhos. Estes têm direito a continuar desfrutando seu pai e sua mãe, juntos ou separados, e não há razão para sofrerem sua agressividade nem ser testemunhas de suas disputas e litígios.

Por isso mesmo não devem ser coagidos a tomar partido por um ou por outro. Eles têm direito a que seus pais mantenham diante deles uma postura digna e de mútuo respeito, sem denegrir nunca a imagem do outro; a que não os utilizem como “arma de ataque” em seus enfrentamentos.

Por outro lado, é mesquinho chantagear os filhos com presentes ou condutas permissivas, para conquistar seu carinho. Pelo contrário, quem busca realmente o bem da criança facilita-lhe o encontro e a comunicação com o pai ou a mãe que já não vive com ela.

Além disso, os filhos têm direito a que seus pais se reúnam para tratar de temas relativos à sua educação e saúde, ou para tomar decisões sobre aspectos importantes para sua vida. O casal não deve esquecer que, mesmo estando separados, continuam sendo pai e mãe de filhos que precisam deles.

Conheço os esforços que não poucos casais separados fazem para que seus filhos sofram o menos possível as consequências dolorosas da separação. Nem sempre é fácil, nem para quem fica com a custódia dos filhos (como é extenuante ocupar-se sozinho do cuidado deles) nem para quem precisa doravante viver separado deles (como é duro sentir sua falta). Esses pais precisam, em mais de uma ocasião, de apoio, companhia ou ajuda que nem sempre encontram em seu ambiente, em sua família, entre seus amigos ou na comunidade cristã.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.

O matrimônio segundo Jesus

Pe. Johan Konings

Os evangelhos deste período litúrgico constituem uma sequência que podemos resumir no termo “discipulado”. O evangelista Marcos mostra Jesus a caminho, subindo a Jerusalém (Mc 8,31-10,45). Caminhando, Jesus ensina o caminho do Filho do Homem: sofrimento, cruz e ressurreição. Este ensinamento itinerante de Jesus é balizado pelos três anúncios da paixão (8,31-32; 9,30-32; 10, 32-34). Esses anúncios são entremeados por ensinamentos que explicam em que consiste ser discípulo e seguir Jesus. Ora, também um casamento fiel faz parte do seguimento de Jesus, do discipulado. Esse é o evangelho de hoje.

A legislação matrimonial do Antigo Testamento era um pouco mais frouxa que a moral católica hoje. Não proibia o homem de ter diversas mulheres, apenas aconselhava que não fossem muitas. Permitia ao homem despedir uma mulher quando notava algo desagradável (o quê, isso era objeto de discussão entre os doutores). Moisés até ordenou que, no caso de a mulher ser despedida, ela recebesse um atestado dizendo que estava livre (Dt 24,1); uma carta de demissão para que procurasse outro emprego… Por isso, Jesus é radical: quem despede sua mulher para casar com outra comete adultério contra ela, é infiel a seu amor. E para arrimar sua opinião, Jesus invoca a primeira página da Bíblia, bem anterior à “jurisprudência” de Moisés: Deus os criou homem e mulher, o homem deixará pai e mãe, os dois serão uma só carne – uma só realidade humana – e o que Deus uniu o homem não separe (1ª leitura). Assim é que Deus quis as coisas desde a criação. Ora, Jesus é o Messias que vem restaurar as coisas conforme o plano de Deus. Tinha de falar assim mesmo. (Outra coisa é quando um governo civil admite o divórcio: o governo não é o Messias… Tem de fazer como Moisés: dar uma legislação para a fraqueza, para a “dureza de coração”, para limitar o estrago…)

O projeto de fidelidade absoluta no amor faz do matrimônio fiel um sinal eficaz do amor de Deus para seu povo: um sacramento. Em Ef, 5,22-33, Paulo relaciona o amor de esposo e esposa com o amor que Cristo tem para a Igreja e chama isso de grande mistério ou sacramento. Ora, neste mistério de amor está presente o caminho de Cristo: assumir a cruz nos passos de Jesus.

Essa sublime vocação do matrimônio indissolúvel é hoje fonte de violentas críticas à Igreja. Que fazer com os que fracassam? Objetivamente falando, sem inculpar ninguém – pois desculpa só Deus entende, e perdoa – devemos constatar que há fracassos, e que fica muito difícil celebrar um “sinal eficaz do amor inquebrantável de Jesus” na presença de um matrimônio desfeito… Por isso, a Igreja não reconhece como sacramento o casamento de divorciados. Teoricamente, se poderia discutir se o segundo casamento não pode ser aceito como união não-sacramental (como se faz na Igreja Ortodoxa). E observe-se que muitos casamentos em nosso meio são, propriamente falando, inválidos, porque contraídos sem suficiente consciência ou intenção; poderiam, portanto, ser anulados (como se nunca tivessem existido).

Em todo caso, o matrimônio cristão, quando bem conduzido em amor inquebrantável, é uma forma de seguir Jesus no caminho do dom total.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella